Revista Portuguesa de Ortopedia e Traumatologia
ISSN 1646-2122 ISSN 1646-2939
ARTIGO ORIGINAL
Hipocifose Torácica - Mito ou Realidade?
Diogo PascoalI; Pedro Sá CardosoI; Oliana MadeiraI; Cristina AlvesI; Inês BalacóI; Gabriel MatosI; Tah Pu LingI
I. Serviço de Ortopedia Pediátrica do Hospital Pediátrico - Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, EPE. Coimbra.
RESUMO
A importância do balanço sagital no tratamento cirúrgico da escoliose idiopática do adolescente tem tido uma relevância crescente na literatura. Evidência científica recente aponta para uma correlação entre a hipocifose torácica pós cirúrgica (flatback syndrome) e dor crónica. O nosso objectivo foi avaliar a existência de efeito hipocifosante em cirurgia de tratamento da escoliose idiopática do adolescente e a amplitude deste efeito na deformidade, com agravamento ou correcção. Foi realizado um estudo retrospetivo de doentes com escoliose idiopática do adolescente, submetidos a instrumentação transpedicular por via posterior num período de 6 anos, no qual foram medidas e analisadas variáveis demográficas e radiológicas no plano coronal e sagital. Foram seleccionados 107 doentes, divididos em 3 grupos de acordo com o grau de cifose pré operatória: Grupo I - Hipocifose (n=16), cifose média de 10.31º±6.14; Grupo II - Normocifose (n=50), cifose média de 31.85º±5.40 e Grupo III - Hipercifose (n=41), cifose média de 51.71º±7.89. A cirurgia de tratamento da escoliose influenciou com significância estatística a cifose pós-operatória (p=0.0002), e aos 15 meses de follow-up médio (p=0.04).
Verificou-se que a cirurgia permitiu corrigir eficazmente a deformidade cifótica: no grupo I - Hipocifose, com efeito cifosante (p=0.000007); no grupo III - Hipercifose, com efeito lordosante (p=0.00000004), no grupo II - Normocifose, grupo controlo, a normocifose foi preservada (p=0.38). Factores previamente apontados como potenciais influenciadores, como a idade (p>0.05), género (p=0.48), Cobb escoliótico pré- operatório (r=0.178), flexibilidade da coluna no plano coronal pré-operatória (r=-0.024) e índice de Cincinnati (r=-0.0009) não apresentaram correlação estatística. A cirurgia de correcção da escoliose idiopática do adolescente com instrumentação transpedicular posterior, para além da correcção no plano coronal, permite uma correcção eficaz no plano sagital.
Palavras chave: Escoliose, hipocifose torácica, equilíbrio sagital.
ABSTRACT
The importance of sagittal balance in the surgical treatment of adolescent idiopathic scoliosis is being increasingly relevant in the literature. Recent scientific evidence points to a correlation between post-surgical thoracic hypokyphosis (flatback syndrome) and chronic pain. Our objective was to evaluate the existence of hypokyphosing effect in surgery for the treatment of adolescent idiopathic scoliosis and the amplitude of this effect in the deformity, with aggravation or correction. The authors present a retrospective study of patients with adolescent idiopathic scoliosis who underwent posterior transpedicular instrumentation over a 6-year period, with evaluation of demographic and radiological variables in the coronal and sagittal plane. 107 patients were included, divided into 3 groups according to the degree of preoperative kyphosis: Group I - Hypokyphosis (n=16), mean kyphosis of 10.31±6.14; Group II - Normokyphosis (n=50), mean kyphosis of 31.85±5.40 and Group III - Hyperkyphosis (n= 41), mean kyphosis of 51.71±7.89. Surgical scoliosis treatment had a significant effect on post-operative kyphosis (p=0.0002), and at 15 months of mean follow-up (p=0.04). The surgery had an effective correction of the kyphotic deformity: in the group I - Hypokyphosis, with kyphosing effect (p=0.000007); in the group III - Hyperkyphosis, with lordosing effect (p=0.00000004); in the group II, control group, normokyphosis was maintained (p=0.38). Factors previously identified as potential influencers, such as age (p> 0.05), gender (p=0.48), preoperative scoliotic Cobb (R=0.178), preoperative column flexibility in the coronal plane (R=-0.024), and Cincinnati index (R=-0.0009) had no statistical correlation with kyphosis correction.
Surgical treatment for adolescent idiopathic scoliosis with posterior transpedicular instrumentation, in addition to correction in the coronal plane, allows effective correction in the sagittal plane.
Key words: Scoliosis, thoracic hypokyphosis, sagital balance.
INTRODUÇÃO
A importância do balanço sagital no tratamento cirúrgico da escoliose idiopática do adolescente (EIA) tem tido uma relevância crescente na literatura.
Ao contrário do passado, o foco do tratamento actual não é apenas a correcção da deformidade major no plano coronal, verificando-se uma importância crescente da correcção sagital1,2,3. Evidência científica recente aponta para uma correlação entre a hipocifose torácica pós-cirúrgica (flatback syndrome) e maus resultados clínicos4. Desta forma, o objectivo actual do tratamento cirúrgico da EIA é a obtenção da melhor correcção coronal, mantendo o equilíbrio sagital da coluna4,5.
Vários autores destacaram esta problemática na literatura. Em 2001, Lenke et al6, alertaram para a importância do equilíbrio sagital na cirurgia de escoliose, desta forma na sua classificação para além da estratificação da deformidade coronal foram definidos cut-offs para a deformidade sagital na curva torácica. Esta classificação define 3 grupos de cifose torácica baseados no ângulo de D5-D12:
hipocifose definida como ângulo de Cobb7 sagital inferior a 10º; hipercifose corresponde a um ângulo superior a 40º e normocifose, corresponde a um ângulo de 10-40º. Literatura mais recente2,8,9, bem como a Scoliosis Research Society10, defendem como intervalo para a normocifose torácica um ângulo Cobb sagital de 20-40º. Este foi o intervalo usado neste estudo por apresentar o maior consenso na literatura actual.
Suk et al11 demonstraram a eficácia da fixação transpedicular por via posterior na restituição da normocifose torácica numa série de 51 doentes.
Fletcher et al2 num estudo retrospectivo de 214 doentes, identificaram 2 potenciais factores de risco para hipocifose torácica pós operatória: hipocifose pré-operatória e uso de parafusos de diâmetro inferior a 5.5mm. Matsumoto et al3, verificaram efeito hipocifosante da cirurgia de EIA em 31% dos doentes numa série de 123. No entanto, não se verificou associação estatística entre hipocifose torácica e maus resultados clínicos. Newton et al12, sugerem num estudo retrospectivo de 251 doentes com EIA, a existência de um efeito hipocifosante nos doentes submetidos a instrumentação posterior (n=83) quando comparado com a instrumentação anterior (n=168), apesar do número relativamente menor de doentes na amostra submetidos a instrumentação posterior.
Apesar dos mecanismos e forças de correcção envolvidas na cirurgia da EIA estarem bem identificados, poucos estudos existem na objectivação da correcção do perfil sagital pós-operatório e seus factores influenciadores1,11,13,14,15.
O objectivo do presente estudo consiste em avaliar a existência de efeito hipocifosante em cirurgia de tratamento da escoliose idiopática do adolescente. Como objectivo secundário, avaliouse a amplitude deste efeito na deformidade sagital, com agravamento ou correcção e identificação de potenciais factores de risco.
MATERIAL E MÉTODOS
Critérios de inclusão:
Foram seleccionados doentes com escoliose idiopática do adolescente, com idades compreendidas entre os 10-18 anos de idade, submetidos a instrumentação transpedicular por via posterior, num período de 6 anos, de Janeiro de 2011 a Dezembro de 2016, com follow-up, mínimo de 6 meses.
Critérios de exclusão:
Foram excluídos do estudo doentes com escoliose idiopática infantil e juvenil, bem como escoliose de outras etiologias que não EIA: congénita, neuromuscular, paralisia cerebral, e patológica.
Tipo de estudo:
Estudo retrospectivo e observacional de doentes operados pela mesma equipa cirúrgica, numa mesma instituição.
Parâmetros considerados na recolha de dados dos doentes em estudo:
Foram medidas e analisadas as variáveis demográficas e radiológicas em 3 momentos: pré, pós-operatório e aos 6 meses de pós-operatório. No plano coronal, foi medido o ângulo Cobb e respectiva correcção, inclinação lateral9, flexibilidade9 e índice de correcção de Cincinnati9. No plano sagital foi medida a cifose e correcção cifótica pós-operatória9. Estas medidas foram determinadas segundo os parâmetros descritos por Vora et al9.
A cifose torácica foi medida, segundo Lenke et al6, entre D5-D12 no plano sagital, e normocifose torácica foi definida segundo a Scoliosis Research Society10: ângulo Cobb sagital de 20-40º. Os doentes foram divididos em 3 grupos de acordo com o grau de cifose pré-operatória: Grupo I - Hipocifose, Grupo II - Normocifose e Grupo III - Hipercifose.
Análise estatística:
A análise estatística foi realizada utilizando o software SPSS versão 20 (SPSS Inc., Chicago, IL) com um valor p inferior a 0.05 definido como estatisticamente significativo.
Considerações éticas:
Todos os procedimentos seguiram os padrões éticos, encontrando-se de acordo com a Declaração de Helsínquia de 1975, e sua revisão no ano de 2000.
RESULTADOS
Foram incluídos 107 doentes, 87 do sexo feminino (81.3%), 20 do sexo masculino (18.7%), idade média 14.39 (±1.73). Os doentes foram divididos em 3 grupos de acordo com o grau de cifose pré-operatória:
Grupo I - Hipocifose (n=16), cifose média de 10.31º±6.14; Grupo II - Normocifose (n=50), cifose média de 31.85º±5.40 e Grupo III - Hipercifose (n=41), cifose média de 51.71º±7.89. O grupo II, doentes normocifóticos, foi utilizado como grupo controlo (Tabela 1).
Verificou-se que globalmente a cirurgia de tratamento da escoliose influenciou a cifose pós-operatória (p=0.0002) e a cifose em consulta de seguimento com follow-up médio 15.01 meses (p=0.04). Verificou-se ainda uma correlação estatística positiva forte entre a correcção cifótica no pós-operatório e a determinada em consulta de seguimento (r=0.81).
Na nossa série, verificou-se que no grupo I a hipocifose foi corrigida de forma eficaz com a instrumentação (p=0.000007), com um efeito cifosante (Tabela 2). No grupo III, a hipercifose foi também corrigida (p=0.00000004), com um efeito lordosante (Tabela 2). No grupo II, grupo controlo, a normocifose não foi alterada com a instrumentação (p=0.38) (Tabela 2).
Não se verificou correlação estatisticamente significativa entre a correcção cifótica e a idade (p>0.05), género (p=0.48), nem com os parâmetros radiológicos coronais: Cobb escoliótico pré-operatório (r=0.178), flexibilidade da coluna pré-operatória (r=-0.024) e índice de Cincinnati (r=-0.0009).
DISCUSSÃO
O equilíbrio sagital em cirurgia de correcção da escoliose idiopática do adolescente é um tema controverso na literatura. A instrumentação transpedicular permite uma boa correcção no plano coronal, mas muitos autores referem ter notado uma tendência para hipocifose torácica pós cirúrgica (flatback syndrome) e consequentes maus resultados clínicos2,13,16,17.
Na nossa série, verificou-se que a cirurgia de correcção da escoliose para além da correcção no plano coronal, influencia de forma estatisticamente significativa a curva cifótica dorsal no plano sagital, evitando o flatback syndrome. Verificou-se que os doentes do Grupo I (n=16) hipocifóticos, sofreram uma correcção cifosante (Figura 1), no Grupo II (n=50), normocifóticos, houve preservação da curva cifótica fisiológica (Figura 2), e no Grupo III (n=41), hipercifóticos, foi obtida uma correcção com efeito lordosante (Figura 3). Os autores atribuem os resultados de correcção no plano sagital à técnica cirúrgica utilizada com instrumentação por grupos de parafusos, clusters, com níveis de transição (sem parafusos) e osteotomias de subtracção de Ponte17,18,19.
Factores previamente apontados como potenciais influenciadores da correcção sagital, como o ângulo Cobb pré-operatório, flexibilidade da coluna pré-operatória ou índice de Cincinnati não influenciaram os nossos resultados na população estudada. Salientamos, porém, que este estudo tem algumas limitações, sendo de referir a sua natureza retrospetiva e a ausência de avaliação funcional dos doentes.
CONCLUSÃO
A cirurgia de correcção da escoliose idiopática do adolescente com instrumentação transpedicular, para além da correcção no plano coronal, permite uma correcção eficaz no plano sagital.
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Conflito de interesse:
Nada a declarar
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Data de Submissão: 2018-07-25
Data de Revisão: 2018-09-12
Data de Aceitação: 2019-02-07