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Medievalista

 ISSN 1646-740X

     

 

RECENSÃO

Recensão: MONGELLI, Lênia Márcia; FERNANDES, Raúl Cérsar G.; MAUÉS, Fernando (Eds.) – Francisco de Moraes, Palmeirim de Inglaterra. São Paulo: Ateliê Editorial / Unicamp, 2016 (744 pp.)

Geraldo Augusto Fernandes*

* Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades / Departamento de Literatura, 60.160-060, Fortaleza, Brasil. E-mail: geraldoaugust@uol.com.br


 

Fábula bem escrita, ainda que não tenha força de verdade,
tem uma ordem de razão.

Francisco Rodrigues Lobo[1]

 

Os editores da obra, inédita no Brasil, Palmeirim de Inglaterra informam que custaram-lhes onze anos para a edição definitiva desta novela de cavalaria portuguesa, pertencente ao “ciclo dos Palmeirins” – expressão que designa uma série de novelas que tem origem em Espanha com o primeiro do ciclo, Palmeirín de Oliva, de 1511, provavelmente de Francisco Vásquez, de Salamanca. Deste nasceram outras seis continuações, três delas portuguesas, as outras espanholas. O Palmeirim recentemente editado é da autoria de Francisco de Moraes e aparece pela primeira vez em 1547[2]. Diferente das novelas de cavalaria primevas, que tinham uma forte conotação religiosa e eram permeadas por ensinamentos cristãos implícitos no enredo das histórias, refletindo o culto à vida espiritual, a busca pela perfeição moral, e a valorização de qualidades morais, as novelas quinhentistas, à parte algumas influências em itens como a honra, bravura, castidade, lealdade, generosidade e justiça, que prevalecem, primam pelo teor profano. Isso, é claro, não impede que os textos sejam permeados por uma certa religiosidade, mas muito mais contida – haja vista essas novelas surgirem na ascensão das ideias renascentistas do século XVI.

O extenso e espesso volume – seu formato é 18 x 27 cm – traz em 744 páginas, além do texto narrativo, informações riquíssimas que ajudam o leigo a melhor entender o fenômeno que agradou a um público leitor inumerável, em grande parte constituído por mulheres, na época um “grande consumidor do assunto”. O primeiro assunto abordado na introdução intitula-se “O ciclo dos Palmeirins” apresentando toda a historiografia e cronologia dos ciclos arturianos; seguidamente, nas “Informações biográficas”, procura-se definir e descrever o autor (cujos dados são ainda nebulosos), profícuo escritor de cartas, diálogos, relações informativas, textos narrativos outros e poesia, além, certo, de narrativas cavaleirescas, cujo Palmeirim é o destaque; segue-se uma extensa e valorosa discussão sobre a questão do fingimento, peculiaridade das novelas de cavalaria – “narração fictícia ou mentirosa, sem garantia histórica, lendária; irrealidade, mentira” (p. 23), como sugere a etimologia de fábula. Além dessa “Introdução”, seguem-se explicações sobre a edição atual, bem como a bibliografia selecionada. Antes do texto propriamente dito, esta edição inclui ainda belos fac-símiles das primeiras edições do Palmeirim. Da página 77 à 684, deliciam o leitor as inúmeras narrativas eivadas de aventuras e desaventuras, como não podia deixar de acontecer neste tipo de texto. Compõem ainda o volume um necessário “Glossário” (uma vez que o léxico é ainda quinhentista) com explanações de palavras que hoje não são mais usadas (e.g. trouver em lugar de trazer) e uns “Índices Onomásticos” que explanam as personagens e os topônimos da obra. Entremeiam o texto ilustrações estilizadas de Audifax[3] (cuja referência mais precisa se ressente no texto) – diferentemente de se tomarem figuras ou iluminuras próprias da Idade Média, os desenhos modernos, de refinadíssimo bom gosto, trazem um prazer especial à obra.

Em qualquer narrativa cavaleiresca, nenhum herói consegue conquistar sua dama sem antes “provar sua experiência bélica, sua retidão espiritual” (p. 29) – e é esse excesso de aventuras para o feito da conquista que pode afastar o leitor de hoje, uma vez que, por causa do maravilhoso que cerca as novelas, esse mesmo excesso leva a duvidar se a ficção não foi forjada. O extenso enredo do Palmeirim é aparentemente simples: nos primeiros 41 capítulos o autor dá continuidade à história de D. Duardos e de Flérida, pais dos dois heróis gêmeos da novela: Palmeirim e Floriano, raptados por Salvage, e criados por este numa ermida. Os 131 capítulos seguintes entregam-se às aventuras de inumeráveis mini-enredos, que poderiam ser denominados de digressões, que avolumam a obra e, em certa medida, trazem certo cansaço ao leitor desacostumado. Mas o foco da novela é a batalha final entre cristãos e turcos, em que, dos dois lados, computam-se perdas de relevância. Apenas como digressão, e não é exagero, já que se trata de novela cavaleiresca, as batalhas finais nada ficam a dever às batalhas hollywoodianas em que a quantidade de sangue e de mortos excede a racionalidade (o que vai ao encontro da verdade e parte para o essencial do texto cavaleiresco: o fingimento ficcional).

Ao longo das aventuras, o leitor se surpreende pela ekphrasis – os lugares descritos são espaços e geografias bem detalhados, desde florestas que se aproximam do real àquelas encantadas, uma viagem por países que, no modo de relatar, parecem cada um fazer esquina com o outro, castelos ora assombrados ora que beiram a realidade.

Outra questão interessante, e concernente com o estilo de Moraes, é a verborragia para as narrações e descrições. Mario Vargas Llosa, no Prólogo ao Tirant lo Blanc, diz que, além de várias razões de seu deslumbramento pelas novelas de cavalarias, o Tirant em especial, é a descoberta de que as protagonistas da obra são as palavras. É o óbvio em se tratando de literatura. Mas, para o autor peruano, no Tirant, “todos falam até pelos cotovelos, desde o narrador até a última personagem e tudo – as guerras, os desafios, as viagens, as festas, o amor a religião, o prazer, os sofrimentos, é pretexto para intermináveis efusões retóricas”[4]. A isso nada deve o Palmeirim de Inglaterra. Se não pela extensão do texto, também pelo uso esmerado do léxico que Moraes faz. No entanto, há de se considerar alguns pontos quanto a essa verborragia: períodos longuíssimos, inversões e excesso de orações coordenadas dificultam, e muito, a leitura. Além disso, registrem-se os inúmeros flashbacks para, entre as narrativas, encaixar outras narrativas. Se isso agrada (pois o jogo do mise-en-abyme tem por peculiaridade trazer novas expectativas) e provoca alívio no decurso enunciativo, para além de amarrar as pequenas histórias ao assunto central, também resulta em certo tédio na degustação da leitura. A inclusão de novas narrativas vem geralmente explicada pelo narrador por frases como “aqui deixa a história de falar neles e torna aos outros” – o que constitui outro recurso muito usado pelos textos narrativos cavaleirescos.

Voltando a Llosa, o que mais lhe impressionou no Tirant foi a proficuidade de lágrimas e prantos que perpassam por todo o texto. Diz o autor:

“o pranto tem aí ligação exclusivamente com as lágrimas e não com os sentimentos e as emoções, pois estes não existem separados de sua expressão formal, de seu emblema: esses olhos que derramam ‘vives llàgremes’. Por isso nesse mundo se chora amiúde socialmente, por razões de cortesia e de mera encenação, como ocorre com o rei Escariano que, ao ver a imperatriz chorando, também se pôs a chorar para fazer-lhe companhia” (p. L).

Isso não acontece absolutamente no Palmeirim, apesar das emoções que enlaçam as narrativas; o único momento de pranto em excesso vai ocorrer nos capítulos finais, aquando das duas batalhas entre cristãos e turcos, cujo resultado é um vale de lágrimas escorridas por todos e quaisquer personagens.

Ainda quanto ao estilo, Moraes pratica a metalinguagem ao explicar o nome do gêmeo de Palmeirim, Floriano: “Floriano do Deserto, assi pola floresta em que nascera se chamar do Deserto, como por ser em tempo que o campo estava coberto de flores e ele em si tão fermoso, que o nome parecia dino dele e ele do nome” (p. 87). Recurso, claro, mais poético que metalinguístico... Outra recorrência própria dos textos cavaleirescos é a inserção de conselhos, ditos, máximas, ao longo da narrativa (ex: “porque o homem que, vencido de sua vontade, vai contra a virtude, não se deve atrever no merecimento de suas obras” [p. 90]), mas principalmente no final de cada capítulo, como este do Capítulo 45: “que assi são as mudanças desta vida: curar os grandes descontentamentos com descontos de alegrias, e as alegrias torvá-las com descontentamentos; assi que, em suas cousas, pola mor parte sempre pesar vence o prazer” (p. 205).

Muito chama a atenção nas novelas cavaleirescas a descrição da violência nas batalhas, tanto as coletivas quanto as feitas a pares. Como exemplo, leia-se o enfrentamento de Vernau com o gigante Pândaro, no Capítulo 15:

“Pândaro e ele se andaram ferindo tão bravamente, que Vernau quebrou a espada por o punho nos arcos de ferro na borda do escudo do gigante, de que Pândaro não ficou pouco satisfeito. E deixando cair o seu pelo poder melhor ferir, tomou a maça com ambas as mãos (porque, ainda que Primaleão lhe cortara quatro dedos da mão esquerda na batalha que com ele houve, depois que foi são, a necessidade o ensinou a servir-se dela com engenhos que pera isso buscou); Vernau, que viu sobre si o golpe, juntou-se tanto com ele que lho fez ficar em vão.[5]

Outro fato a registrar, consiste numa certa comicidade na escolha dos exuberantes nomes das personagens: Avandro, Armião, Drapos, Dramusiando, Frisol, Floramão, Pompides e uma centena de outros, todos exóticos e inverossímeis. Muito interessante, como em qualquer novela de cavalaria, são os motivos (pelo menos uma boa parte deles) dos enfrentamentos: por exemplo, a beleza da mulher servida é tão maior de que qualquer outra, mesmo que todas belas. Esse simplório motivo é o cerne do amor cortesão que perpassa qualquer texto cavaleiresco. Essa questão está ligada ao tema da “contemplação” da amada. Se na poesia trovadoresca a dama era mais imaginada do que real, nas novelas a mesura existe de modo formal, como que um tópico próprio desse tipo de texto. “Nos romances e nas novelas de cavalarias, são conhecidas as “provas” por que têm de passar os cavaleiros enamorados se quiserem receber o galardon de estar com aquela dame sans merci que conheceram não poucas vezes só por ‘efígie’”[6], conforme escreve Lênia Márcia Mongelli. No Palmeirim essas provas são constantes, mas, ao lutar pelo amor dessa dama servida, o herói não mede esforços para contar como venceu essas provas.

Por ser profano, o texto recorre, não com muita intensidade, a situações eróticas, como podemos ver com Floriano do Deserto, num trecho onde é identificado por uma de suas personas, o Salvage, num dos episódios em que salva uma donzela. Ao tirar seu elmo, mostrou-se moço e gentil-homem, o que agradou à moça. Num jogo de olhos e gestos, ora se mostrava ela tímida ora libidinosa. Aparentemente, isso lhe fazia sofrer, mas, como conta o narrador:

“o amor nas mulheres, antes de dar fim ao desejo, não sabe o nome à tristeza; por isso, leda e contente tornava logo a mostrar-se, por não descontentar a ele. Pois como o Cavaleiro do Salvage fosse mestre destes acidentes, com amorosas palavras e afagos necessários a começou tentar, e achando-a mais branda na prática, deu uma pequena de ousadia às mãos, tocando-a nas mangas da roupa e outros lugares onde não parecia desonesto. E sentindo-lhe a vontade entregue, satisfez com seu desejo, de maneira que, quando o escudeiro tornou, era feita dona e bem contente” (p. 393).

Palavras dissimuladas, mas de puro erotismo...

Neste instigante Palmeirim, outras e muitas alusões e reflexões podem ser feitas para se entender ora o que remete ao real ora o que remete ao fingimento ficcional. Entram no conto as posições do senso comum medieval quanto ao papel do velho, como sábio, mas também como instrumento de crítica do autor; não desmerece o fato de o livro, assim como a maioria dos textos medievais, vir eivado de misoginia, apesar de a força da mulher ser evidente por ser o motivo das aventuras e lutas, ela ainda é vista como ser inferior; o preconceito também se revela no texto, principalmente contra a França, caso que aparece em vários capítulos, principalmente naqueles em que se relata a aparição de quatro damas francesas que, belíssimas, levam a lutas pela conquista de seu amor. Também interessante é observar certa volubilidade por parte dos heróis que ora lutam pelo amor de uma dama ora por outras, apesar de, no caso dos dois gêmeos principais protagonistas, o seu objetivo era aquelas damas as quais pela primeira vez tocaram-lhes o coração.

O Palmeirim não apenas deve ser lido. Deve ser apreciado e permitir ao leitor de hoje – não somente os estudiosos do gênero – conhecer os germes do romance moderno. Apesar de ele ser mais do que isso.

 

COMO CITAR ESTE ARTIGO

Referência electrónica:

FERNANDES, Geraldo Augusto – “Recensão: MONGELLI, Lênia Márcia; FERNANDES, Raúl Cérsar G.; MAUÉS, Fernando (Eds.) – Francisco de Moraes, Palmeirim de Inglaterra. São Paulo: Ateliê Editorial / Unicamp, 2016 (744 pp.)”. Medievalista [Em linha]. Nº 23 (Janeiro – Junho 2018). [Consultado dd.mm.aaaa]. Disponível em http://www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/MEDIEVALISTA23/fernandes2314.html

 

Data recepção do artigo: 1 de Abril de 2017

 

NOTAS

[1] LOBO, Francisco Rodrigues – Corte na aldeia. Lisboa: Verbo, 1972, p. 16.

[2] De acordo com os organizadores do volume, “é provável, contudo, que a obra tenha sido impressa pela primeira vez em 1544, edição recentemente descoberta, em português, mas talvez realizada fora de Portugal, em França”, p. 12.

[3] Trata-se de Audifax Rios (1946-2015), escritor, cordelista e artista plástico cearense, ultimamente cronista do jornal O Povo.

[4] Veja-se “Prólogo. TirantloBlanc: as palavras como atos”. in MARTORELL, Joanot – Tirant lo Blanc. São Paulo: Ateliê, pp. LI-LII.

[5] Observe-se neste trecho a dificuldade que se apresenta ao leitor, um trecho eivado de inversões e de palavras pouco usuais hodiernamente.

[6] Veja-se Revista Signum 17 (2016), p. 151 (Resenha).

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