Revista :Estúdio
ISSN 1647-6158
ARTIGOS ORIGINAIS
ORIGINAL ARTICLES
As paisagens obscuras de Lizângela torres: incursões noturnas como método
The dark landscapes of Lizângela Torres
Clóvis Martins Costa*
*Brasil, artista visual e professor universitário. Professor do Curso de Artes Visuais da Universidade Feevale – Novo Hamburgo/RS. Mestre em Poéticas Visuais. Graduado em Artes Plásticas.
AFILIAÇÃO: Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Porto Alegre/RS Brasil). Instituto das Artes. Programa de pós Graduação em Poéticas Visuais. Rua Senhor dos Passos, 248, CEP 90020-180 – Centro – Porto Alegre, RS. Brasil.
RESUMO:
Este artigo versa sobre experiências em paisagens noturnas como escopo para uma investigação no campo da arte. A noção de indeterminação é observada na ação geradora de imagens, bem como na proposição de situações expositivas que exploram formas de apresentação diversas: produções textuais, fotografias, vídeos e trabalhos in situ.
Palavras-chave: noite / experiência / indeterminação / fotografia.
ABSTRACT
This paper discusses some experiences in night landscapes as base for a research in the field of art. The notion of indeterminacy is observed on the actions which generate the images, as well as in the proposition of the exhibition situations, exploring a range of presentation forms: textual productions, photography, videos and works in situ.
Keywords: night / experience / indetermination / photography
Incursão inicial
Um passeio à noite deflagra um circuito de procedimentos calcados na experiência. Lizângela Torres opera neste lugar instável, onde qualquer forma de racionalização barra na espessura característica do breu noturno. A paisagem aqui é este campo de passagem no qual o corpo avança, atravessando o que a artista denomina zona de indeterminação (Figura 1). Lembremos então que a noção de paisagem nesta poética remonta aos tempos arcaicos da experiência humana, onde a noite (e porque não dizer, a natureza) consistia em um espaço a ser vencido, repleto de perigos e devires, espaço povoado pelas sombras. Sua obra, portanto, advém de um impulso volitivo rumo ao desconhecido, à desrazão que envolve a grande noite, cosmos onde a consciência se evade.
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Lizângela aciona seu corpo através de incursões noturnas para a captura desta ação por meio da fotografia. O meio empregado se coaduna com o conceito operacional, noite, uma vez que a substância noturna é aquela que compõe a caixa preta, lugar do aparelho fotográfico que "deve ser impenetrável para o fotógrafo, em sua totalidade" (Flusser, 2011: 43).
Neste mistério da aparição/desaparição da imagem no ambiente escuro, reside o escopo de suas investigações, como se o operador adentrasse a câmara-noite no enlevo de decifrar seu mistério, ou ao menos se lançar em sua direção. Como simulacro da noite, a fotografia é experienciada pelo outro através de projeções de imagens, caixas de backlight, textos ou objetos, todos instalados em espaços escuros (Figura 2). O sujeito que participa da noite transfigurada no momento da fruição, completa a experiência artística, deflagrada na paisagem e transportada ao espaço de montagem.
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1. A noite proposta
Segundo Lizângela, a montagem in situ dos desdobramentos da experiência na noite, promove um campo de investigação onde a procura pela imagem sublinha o caráter indeterminado das suas proposições:
O espaço é elaborado para a experiência do fruidor, contando com a ação do público para o assomo da obra. Instalada em um ambiente escuro, a fotografia, projetada, ou através de backlight, ilumina sutilmente o espaço, abrindo rasgos de luz, de forma a incentivar o deslocamento do observador pelo ambiente enegrecido. Banhado por um véu de luz, o corpo do observador se move pelo espaço escurecido, num processo investigativo, em busca de imagens (Entrevista com a artista em agosto de 2013).
Observa-se a intenção de distender a experiência na paisagem noturna por meio de uma situação instalada. As formas de apresentação utilizadas pela artista variam, como que proliferadas pelo seu lugar de origem. Se a noite é o espaço da indeterminação, esta estratégia se releva eloqüente. O outro, que adentra esta noite transfigurada, protagoniza novos acontecimentos obscuros. De certa forma, este sujeito é arremessado ao espaço vertiginoso das forças que compõem a paisagem noturna: espaço do fora, diante do qual o arrebatamento é inevitável.
O trabalho Incursões noturnas – Ibiraquera (Figura 3, Figura 4), composto pela captura do deslocamento de um automóvel numa estrada de chão durante a noite, apresenta a experiência do trajeto percorrido nesta zona indiscernível que aparece à frente do para-brisas do veículo. A imagem resultante da iluminação do farol do automóvel parece descolar-se do campo visual, produzindo uma atmosfera densa na qual a experiência se condensa. A paisagem, portanto, torna-se um amálgama do composto sujeito/fora. Evasão dos sentidos no caldo negro da noite. De fato, é no momento do contato com os trabalhos (sejam eles fotografias, vídeos, objetos ou textos) que a noite proposta por Lizângela alcança a espessura necessária para que os afetos adentrem a hora do lobo, ápice da noite, hora intensa, noite abissal.
Tony Smith, artista referencial para a pesquisa da artista, relatou que a experiência noturna em uma auto-estrada constituiu-se como um momento revelador, como se a perda dos referenciais seguros da paisagem, ao se dissolverem na escuridão, inaugurassem uma nova concepção de arte. Didi-Huberman comenta esta situação de embate como:
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...uma experiência em que a privação (do visível) desencadeia, de maneira inteiramente inesperada (como um sintoma), a abertura de uma dialética (visual) que a ultrapassa, que a revela e que a implica. É quando fazemos a experiência da noite sem limite que a noite se torna o lugar por excelência, em pleno meio do qual somos absolutamente, em qualquer ponto do espaço onde nos encontremos. É quando fazemos a experiência da noite, na qual todos os objetos se retiram e perdem sua estabilidade visível, que a noite revela para nós a importância dos objetos e a essencial fragilidade deles, ou seja, sua vocação a se perderem para nós exatamente quando nos são mais próximos (Didi-Huberman, 1998: 99).
2. Ocaso
Termos obscuros compõem o repertório conceitual desta pesquisa pela noite enquanto escopo, lugar de prospecção e campo de ativação de sentidos. Noite, Breu, Ocaso e Zona de indeterminação são alguns enunciados que apontam para a dimensão da escrita no trabalho de Lizângela Torres. A paisagem explorada aqui se constitui como lócus do aparecimento dos conceitos. Da criação destes, podemos aferir o grau de intensidade da noite experimentada. Haveria uma relação aqui entre universos heterogêneos, o dentro e fora, a luz e a sombra, o dia e a noite. Nesta zona de embate, está o corpo, anteparo da luz projetada ou instrumento da ação. A zona indeterminada pertence ao domínio do litoral, linha divisória entre o real e o sujeito. Mistura, portanto, de onde emerge a palavra. A escrita seria então a produção resultante desta fricção entre díspares, contato entre o fora e o dentro. Nesta borda indeterminada situada entre a artista e seu campo de ação (paisagem noturna), abre-se o abismo do qual a palavra emerge.
Capturado nas incursões noturnas, o termo ocaso, que, segundo Torres, está em processo de delimitação conceitual, apresenta-se como instrumento investigativo para a reflexão sobre o seu trabalho. Este momento crepuscular, onde se dá a transição do dia para a noite, vem a ser a duração da experiência artística na ocasião da exibição, do acesso ao outro. Trata-se, portanto, como nos informa a artista:
...do momento que precede a noite, tensão entre dia e noite; zona mestiça; cruzamento entre diferenças; momento trágico dionisíaco/apolíneo; entre a embriaguez e a razão; aparição da desaparição; presença da reverberação de uma ação ausente. Podendo significar, também, a morte, o fim, o declínio, a ruína, OCASO está diretamente relacionado com a mudança, com o vir a ser outro diferente, indeterminado, impensado (Comunicação pessoal, agosto de 2013).
A apresentação da paisagem noturna, em consonância com a delimitação do conceito operacional ocaso está presente no trabalho intitulado Kínesis (Figura 5, Figura 6). Uma instalação formada pela projeção da imagem da noite em estado de aparecimento, o dia escoando para dentro da noite. O entardecer é capturado em um vídeo realizado no terraço de um edifício, apreendendo uma tomada de 360º. Projetado sobre uma parede na qual foram instalados diversos
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Noite afora
As paisagens aqui experimentadas ativam as noções pelas quais o trabalho da artista/pesquisadora se orienta nesta noite densa. Por meio da delimitação de conceitos e enunciados, Lizângela cria espécies de fontes luminosas, como o farol do carro que ilumina a estrada ou o seu próprio corpo nas incursões noturnas. As palavras, aos rasgarem o breu, projetam sobre as zonas de indeterminação trilhas possíveis para o acesso à noite, e porque não falar de uma noite-outro, o sujeito adiante do qual se projeta uma existência. Sair à noite pode ser entendido, desta forma, como o exercício da alteridade: sair de si para adentrar o ocaso da experiência.
Referências
Didi-Huberman, Georges (1998). O que vemos, o que nos olha. Rio de Janeiro: Ed. 34. ISBN: 85-7326-113-7 [ Links ]
Flusser, Vilém (2011). Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Annablume. ISBN: 978-85-391-0210-5 [ Links ]
Artigo completo recebido a 9 de setembro e aprovado a 24 de setembro de 2013
Correio eletrónico: clovismartinscosta@gmail.com (Clóvis Martins Costa)