Introdução
Lia do Rio, artista atuante na cidade do Rio de Janeiro, investe esforços nos espaços cotidianos - cenas da cidade, paisagens locais ou álbuns de família, constituindo experiências que atraem por amplitude cognitiva em alta densidade que objetivamos descrever: Elementos destacados dos contextos ordinários são revertidos de seu sentido banal. Pressupostos do tempo são libertados do prejuízo constante de vivermos em dessintonia, aturdidos pelos projetos agigantados da modernidade em falência acelerada. Estamos todos feridos pela flecha do tempo. Em desvio, como numa esfera existencial outra, ela cuidadosamente recolhe folhas nos bosques da cidade. Elemento material de tantos trabalhos, a folha, possuindo uma simbologia extensa, especialmente ligada ao tempo natural e à sua passagem, serve como recurso à inversão radical: Na arte de Lia, o tempo não existe (Figura 1). O que subsiste é a ação construtiva que se faz passagem para um outro entendimento, um plano ideacional onde as vivências superam suas perdas e invitam ao campo da atemporalidade.
Os trabalhos criam relações abrangendo o universo físico de maneira ampla, quando evocam princípios da Land Art. Em um deles, a artista propõe um novo eixo da Terra, uma coluna que atravessa o globo virtualmente: feita de vidro e recheada de folhas, reúne as propriedades comuns de cada polo (Figura 2). O cilindro parece retificar, assim, a inflexão do globo (Frade, 2014).
Em contrária grandeza, na obra Tempo (Figura 3), uma semente adquire incomensurável força. Vermelha, expande-se como pura vibração em seu isolamento. Única e total. Ela contém, em si mesma, todas as árvores que ela já foi e que ela será. Sua ocorrência é sutil e libertadora. Cápsula transgressora, absorve a matéria enquanto agência-signo requalificada, tocando no cerne mesmo da premência da arte.
A convergência do tempo como modo existencial
A libertação dos gestos inúteis, o completo abandono de traços alóctones que se interpõem no campo artístico é, segundo Manzoni (2006), a necessária tarefa para a passagem ao estado da arte. Há os que cruzam essa senda na fundação de seu próprio estatuto, na construção do arcabouço de um universo ideacional inaudito, ambiente único onde o espectador é convocado a fruir, como a entrar em um outro domínio: "A arte não é verdadeira criação e fundação senão quando cria e funda lá onde as mitologias têm seu próprio fundamento último e sua própria origem" (Op. Cit.: 35). No caso da artista carioca Lia do Rio, essa formulação pode ser invertida, pois a passagem se dá para o nosso mundo mesmo, para um desencarnar de formulações preconcebidas sobre a realidade vivida e o convite para o reconhecimento das condições elementares da existência. Nesse sentido, a atemporalidade é o eixo existencial de onde se desenvolvem muitas de suas intervenções.
O desdobrar dos elementos temporais a partir de novas relações formais criam o estado de suspensão: libertando o presente de sua função mediadora entre passado - futuro, o espaço e o tempo se tornam dimensões absolutas, na produção de um locus onde o tempo é concentrado em um único ponto, na pluridimensionalidade do agora. Esse sítio é ponto de confluência, gérmen do tempo onde as coisas se contraem em um eterno presente; é Aion, a medida plena do acontecimento.
A artista instaura um momento expandido e, silenciosamente, reúne uma série de ocorrências sincrônicas, alinhando-as em superposição, organizando-as em um continuum. "Deste portal chamado Momento, uma longa, eterna estrada leva para trás: às nossas costas existe uma eternidade. (...) Porque aquilo que pode caminhar, deverá ainda uma vez, percorrer também, essa longa estrada que leva para frente!" (Nietzsche Apud Do Rio, 2014: 88). Ao nos trazer esse fragmento de Nietzsche, Lia faz-nos pensar que tudo se reúne no aqui e no agora, na reverberação das camadas sutis de cada uma das ocorrências, alinhavo conceitual proposto pelos muitos trabalhos com as folhas, com as sementes, com as árvores, com os lagos, com as montanhas. Nessa crescente amplitude semente/montanha todo o espaço é equalizado, tornando-se energia pulsante do eterno presente. E é na natureza que esse encontro poético se dá.
Como relata a artista, na feitura cuidadosa da obra Tempo sobre Tela (Figura 4), ao acompanhar as ocorrências de um bosque sobre um tela circular disposta no solo, vai processando essa incomensurável condição, pois "nada realmente acontecia como passagem, tudo estava lá, reunido sobre essa superfície" (Do Rio, depoimento).
A modalidade do eterno presente
A natureza é o conjunto de elementos dispersos ao nosso redor, estamos imersos nela, envolvidos em seus ciclos, sendo cooptados por suas forças. Lia nos acorda para essa realidade última dos terrestres, que é sermos regidos por um eixo no qual estamos a circular - quando a forma nos faz experienciar que o tempo não existe, ele é o campo dos movimentos e das ocorrências diversas que teimamos em equalizar e uniformizar para vivermos em um espectro de insensibilidade contínua, operacional, organizando as sequências dos fatos como causalidades únicas, irrepetíveis e finitas. Esse é o tempo capitalizado pelo modo produtivo hegemônico que nos faz andar sempre em direção a um estado futuro, aquele onde receberemos uma recompensa ou um consolo pela perda do presente.
Na obra ...otemponãopassa... (Figura 5), o moto contínuo é denunciado pela via performativa que circunda uma grande árvore. Para aqueles que acompanham a sua obra e reconhecem o percurso para além da temporalidade ordinária das folhas, sementes e frutos, essa relação com o eixo vertical da árvore implica em muitas nuances e remete a outras vivências de transtorno do senso comum. Quando nos faz girar sobre um único sentido, ela nos propõe a experiência dessa realidade circular dos eventos e nos retira da malha aprisionante do produtivismo calculista. O tempo, segundo a artista, nada fabrica; assim, ela nos permite viver o eternamente agora, que é o que verdadeiramente existe.
Conclusão: à pele do tempo
A ciência das grandes massas estelares nos explicita sobre esses recursos da modulação matéria/tempo/espaço: "No nosso universo, o tempo e o espaço surgiram juntamente com a matéria, constituindo um todo indissolúvel." (Gleiser, 2016:171). Na modelagem astrofísica, o tempo nasce com a expansão da matéria que cria o espaço e, na perspectiva humana, é a possibilidade elaborada para encontrar um sentido nos acontecimentos, na percepção dos movimentos e transformação das coisas. Lia mergulha na "sopa cósmica", construindo vias de acesso à plenitude ao explorar essas relações.
A fruição é atributo colhido no deslocamento permitido para os que se deixam capturar por suas delicadas texturas. É através delas que somos convidados a penetrar nesse âmbito. Os apelos sensuais são delicados, inversamente proporcional é a força que deles provêm. Os olhos deslizam pelas superfícies rendadas (Figura 6); paradoxalmente, é como se pudéssemos sentir a pele do tempo.
Sua relação com o tempo, não é só metafórica, mas de uma potência vivenciada a máxima, e até a mínima potência, age com uma ética soberana ao lidar com elementos naturais, para não falar do transitório, mas não só, Lia nos conta sobre o transcendente e do seu poder de transubstanciar a matéria até que ela seja só arte. (Fonteles, 2019: s/p).
A condição ambígua nos leva para a ordem das insistências, da recorrência que se abriga na potência do devir transformacional de cada matéria, dos elementos físicos que compõem uma realidade em constante transformação. Deleuze (2003:4), refletindo sobre os acontecimentos, refere-se aos Estóicos a partir de sua apreensão do tempo presente como infinito: “diremos que só o presente existe, que ele reabsorve ou contrai em si o passado e o futuro e, de contração em contração cada vez mais profundas, ganha os limites do Universo inteiro para se tornar um presente vivo Cósmico.”
Em desvios luminosos, algumas vezes translúcidas, cortinas de sombras ou camadas de um livro (Figura 7 e Figura 8) desafiam sua condição efêmera, são simples folhas. À mercê do desgaste, desafiam, já pereceram e sobreviveram, revelam rastros de uma vida insistente. Espalham-se, reúnem-se, arrastam-se sobre o chão ou colam-se sobre as coisas, levadas que são pelos ventos e pelas chuvaradas, gerando seus próprios desenhos.
A artista é também uma potência telúrica nessa poética da terra. Ao cozê-las, ao bordá-las, ao varrê-las, no organizar esse aparente caos, suspeita de uma outra forma mais complexa e com ela dialoga. Virtual espírito do mundo, que dispõe em grandes a diminutas escalas, implicando os grãos e as silhuetas das montanhas em um mesmo princípio: o tempo não existe.