Introdução
Na década de 1950, os Établissements Antoine Chiris eram uma empresa multinacional com sede em França. Fundada em 1768 em Grasse, berço da tradição perfumista daquele país, a companhia crescera especializando-se na extração e comercialização de essências naturais para a produção de perfumes. Em 1955, um anúncio publicitário na revista La Parfumerie Moderne (publicação técnica com circulação em França, voltada a profissionais do setor) fazia alusão à abrangência da companhia, ao citar quatro importantes centros urbanos em que ela mantinha operações: Nova Iorque, Paris, Londres e São Paulo (Figura 1).
Quais atividades a Antoine Chiris mantinha em cada uma dessas localidades não é de grande importância para nós. A história da empresa é detalhada em Cocoual (2016, 2017) e em Perrin et al. (2016), e ali vemos que, por essa época, ela estava presente não apenas nessas, mas em muitas outras cidades da Europa, Ásia, África e Américas, atuando sempre com essências para a fabricação de cosméticos e perfumes.
Resulta interessante, no entanto, como forma de introduzir o nosso assunto, observar brevemente a forma como a cidade de São Paulo aparece retratada nesse anúncio publicitário. Um primeiro aspecto é a alta consideração que ela merece: entre dezenas de cidades em que a empresa mantinha presença, ela é uma das quatro destacadas, ao lado de Nova Iorque, Paris e Londres. Além disso, nada parece dever às outras três: o recém-inaugurado (em 1953) Monumento às Bandeiras surge equiparado a nada menos que a Estátua da Liberdade, o Arco do Triunfo e o Palácio de Westminster. Em uma peça publicitária que não era direcionada a público brasileiro, e que tampouco pretendia promover a cidade como destino turístico, isto sugere no mínimo um enorme prestígio desfrutado por São Paulo naquele momento.
Um segundo aspecto, igualmente interessante, diz respeito ao conjunto de signos utilizado para representar São Paulo. O já citado Monumento às Bandeiras é emoldurado ao fundo por modernos arranha-céus, semelhantes àqueles presentes na representação de Nova Iorque, e à frente por um canteiro de lírios, que tem para São Paulo o mesmo efeito de sentido que os jardins da avenida Champs-Elysées desempenham na ilustração de Paris. A São Paulo do anúncio é, portanto, moderna e dinâmica, mas também florida e bela. Tem o arrojo nova-iorquino dos arranha-céus, sem perder a ternura parisiense das flores. As quatro cidades do anúncio, por fim, compartilham um fundo quase idêntico: um céu profundo e amplo (ainda que um pouco mais fechado no caso de Londres, fazendo jus à fama de cidade nevoenta), o que vem reforçar a ideia de que elas compartilham uma mesma atmosfera, um espírito comum.
Trata-se de uma representação de São Paulo bastante afinada com a memória a respeito da cidade produzida no início dos anos 1950, por ocasião dos preparativos para o Quarto Centenário. Enxerga-se facilmente no anúncio uma síntese da metrópole cosmopolita, pujante e laboriosa, herdeira de um passado heroico (representando pelo monumento aos bandeirantes) e predestinada a um futuro de esplendor (arranha-céus), tão valorizada no discurso ufanista da época, e que sobrevive até hoje no imaginário paulistano, não sem uma grande dose de romantização. É a “cidade que mais cresce no mundo”, “que não dorme” e “que não pode parar”, que autores como Silvio Lofego (2000, 2006) e Esmeralda Moura (1994) estudam em detalhe, e que foi resultante em boa parte de um projeto de organização do passado empreendido pelas elites locais, por ocasião do Quarto Centenário da cidade, comemorado em 1954.
O assunto geral do presente trabalho é, portanto, a cidade de São Paulo na década de 1950 e suas representações.
Tema específico e desenho da pesquisa
No segundo semestre de 1952, um funcionário francês dos Établissements Antoine Chiris viveu temporariamente em São Paulo. Como detalharemos mais adiante, a identidade desse visitante é desconhecida, assim como o período exato de sua estada e a atividade profissional que foi desempenhar na cidade. Também desconhecemos o seu gênero: embora por simplicidade nos refiramos ao personagem no masculino, é possível que se trate de uma funcionária francesa, e não de um funcionário francês. Mas a sua existência é certa, e dela sabemos graças a um documento que por acaso chegou até nós: um conjunto de 48 fotografias que ele produziu durante a sua permanência na cidade. Por ser um registro bastante singular, em muitos aspectos dissonante dos discursos ufanistas hegemônicos sobre a São Paulo da época, este “álbum francês”1 merecerá nossa análise.
Mantidas, ao que parece, em arquivo particular por 60 anos, as fotografias foram encontradas em 2012, sem identificação de autoria ou procedência, à venda numa loja francesa de artigos usados. Um rápido exame não deixa dúvida: o autor ficou admirado com a cidade, a ponto de fotografá-la em dezenas de ângulos e anotar meticulosamente, nos versos das fotos, as suas impressões sobre o que descobria. E a São Paulo dos anos 1950 vivenciada por ele é muito diferente daquela a que estamos mais habituados, construída pelo discurso oficial e arraigada até hoje no imaginário saudosista. Se o anúncio institucional da Antoine Chiris (Figura 1) “compra” acriticamente esse discurso hegemônico, as fotos e as anotações de seu funcionário, feitas na vivência cotidiana da cidade, revelam, como veremos, um outro olhar.
O tema mais específico do presente trabalho é, portanto, a experiência cotidiana e anônima da cidade por esse visitante, procurando apreender sua vivência. A questão que a pesquisa pretende responder pode ser assim expressa: Como era vivenciada cotidianamente a São Paulo da época, e quais seriam as impressões experimentadas por uma pessoa comum, um visitante anônimo? Tal questão ganha relevância na medida em que, como retomaremos adiante, não são muitos os fotógrafos de rua a cuja produção se tem acesso que dirigiram um olhar documental às vivências cotidianas e aos personagens anônimos da cidade nessa época.
Procura de um enquadramento teórico
Ao voltar-se a um tema extremamente específico, ao menos à primeira vista de interesse restrito, a pesquisa é de certa forma inspirada pela abordagem da micro-história. O que define a postura micro-histórica não é somente a redução da escala a um nível muito específico, observando realidades localizadas que de outra forma seriam invisíveis à análise, mas também o interesse de, a partir dessa observação, articular níveis de análise e produzir interpretações a respeito de problemas mais amplos ou gerais (Levi, 1992; Vainfas, 2002). Isto está presente em nossa proposta: trata-se de, a partir do nível microanalítico (a experiência pessoal, extremamente localizada, restrita, de um visitante), ter acesso a aspectos da vida urbana que permanecem invisíveis às abordagens mais convencionais sobre a cidade no período em análise.
Outro elemento levado em conta para compor um quadro teórico é a constatação de que o indivíduo cuja experiência queremos conhecer explorou a cidade de um ponto de vista muito particular: o de um flâneur, assim como fazia na Paris do século XIX o flâneur baudelairiano, resgatado por Walter Benjamin (2007).
O flâneur é uma figura que originalmente habita a literatura, mencionado na obra do poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867). Em As Flores do Mal, livro de Baudelaire originalmente publicado em 1857, o flâneur aparece como uma espécie de andarilho que percorre a Paris do século XIX. Caracterizado por certa dose de inadaptação social, ele é um observador crítico da cidade e da vida moderna que nela se desenvolve. Paris está em mutação, tanto no aspecto físico (resultado das transformações urbanísticas promovidas por Georges-Eugène Haussmann) como nas relações sociais que ali se travam (resultado da urbanização, da industrialização e da chegada da modernidade), e o flâneur baudelariano, ao percorrer suas ruas e cafés, suas galerias e vida noturna, registra com olhar clínico as manifestações da vida em transformação, captando tanto seus encantos como suas misérias.
Algumas décadas depois de sua aparição na literatura, Walter Benjamin toma o flâneur emprestado dos escritos de Baudelaire e promove-o a objeto de interesse teórico. Em Passagens, obra deixada inacabada e publicada postumamente (Benjamin, 2007), o flâneur é apresentado como um arquétipo do espectador urbano moderno. Para Benjamin, a cidade é um texto a ser decifrado e o flâneur é seu leitor arguto. Ainda que nas suas deambulações ele esteja sempre envolto pela multidão urbana, é capaz de diferenciar-se desta, enxergando além do senso comum. Até mesmo quando percorre a sua própria cidade natal, o olhar que o flâneur lança sobre ela é sempre um olhar de estrangeiro, “o olhar do homem que ali se sente um estranho” (Benjamin, 2007, p. 983).
O ponto de vista do flâneur - ao observar a cidade “de dentro”, do interior da multidão, nos percursos cotidianos - e seu olhar aguçado e crítico fazem dele um privilegiado investigador, que se deixa levar pela cidade como forma de construir conhecimento sobre ela. Benjamim dirá que o flâneur é autor de uma verdadeira “botânica do asfalto” (Benjamin, 2007, p. 417). Esta é a relação que nosso visitante francês parece ter tido com São Paulo, ao observá-la em suas andanças e registrá-la em suas fotografias.
Em síntese, compreender o olhar desse indivíduo enquanto flâneur, procurando elementos da São Paulo que ele vivenciou, é do ponto de vista conceitual a tarefa a que nos propomos a partir daqui.
Procura de um método
Para interpretar os registros fotográficos produzidos pelo nosso flâneur, e a partir deles conhecer a cidade por ele vivenciada, precisamos recorrer a ferramentas de análise de imagens. Phillipe Dubois (1993) põe em perspectiva três diferentes concepções defendidas por teóricos quanto à relação entre fotografia e realidade. A primeira prevaleceu no século XIX, quando, ainda recém-surgida, a fotografia foi tomada como uma cópia exata e verdadeira do real. Ela teria uma propriedade mimética, procedente da sua natureza técnica, que permite captar imagens da realidade de maneira quase automática. A imagem fotográfica foi, assim, concebida como um espelho imparcial do mundo.
Essa atitude inicial de fé na objetividade fotográfica é superada num segundo momento, já no século XX, quando se tenta demonstrar que a fotografia não é um mero espelho do real, mas uma linguagem culturalmente codificada. Neste momento, segundo Dubois,
“qualquer imagem é analisada como uma interpretação-transformação do real, como uma formação arbitrária, cultural, ideológica e perceptualmente codificada. Segundo essa concepção, a imagem não pode representar o real empírico (cuja existência é, aliás, recolocada em questão pelo pressuposto sustentado por tal concepção: não haveria realidade fora dos discursos que falam dela), mas apenas uma realidade interna transcendente. A foto é aqui um conjunto de códigos, um símbolo nos termos peircianos (Dubois, 1993, p. 53).
Susan Sontag (2004), em ensaio escrito originalmente na década de 1970 que se tornou clássico sobre o assunto, pode ser considerada uma representante deste segundo momento. Para ela, a fotografia, apesar de basear-se na captura de imagens da realidade, está longe de poder ser considerada um espelho imparcial. A autora argumenta que, assim como outras formas de expressão (texto, desenho, pintura), a imagem produzida fotograficamente não é um “pedaço capturado do mundo”, mas uma interpretação. Mesmo que a fotografia à primeira vista pareça ter “uma relação mais inocente, e portanto mais acurada, com a realidade visível do que outros objetos miméticos” (Sontag, 2004, p. 16), essa relação é apenas aparente. Isto se dá na medida em que o fotógrafo exerce grande discricionariedade sobre a imagem, ao definir o ângulo, o enquadramento, ao preferir uma exposição a outra, e demais decisões que tornam a fotografia um discurso carregado de parcialidade.
Um terceiro momento, “em que se situam algumas pesquisas atuais” (Dubois, 1993, p. 27), corresponderia a um meio-termo ou síntese dialética entre as duas concepções anteriores. Esta terceira atitude surge do reconhecimento de que a fotografia, apesar de toda a linguagem codificada que carrega, ainda assim mantém uma relação física com o seu referente, o que a diferencia de outros modos de representação. Para Dubois, há na foto “um sentimento de realidade incontornável do qual não conseguimos nos livrar apesar da consciência de todos os códigos que estão em jogo nela e que se combinaram para sua elaboração” (Dubois, 1993, p. 26). Não se trata de retomar a crença na propriedade mimética, mas de reconhecer que a imagem fotográfica, por sua gênese técnica, contém “traços” de um real, convivendo com seu conteúdo codificado.
Quer nos filiemos à segunda ou à terceira concepção, o uso de fotografias como documento histórico exige em grande medida “recuperar uma construção ignorada” (Leite, 2001, p. 26), procurando compreender como e com que finalidade as imagens foram construídas e apreender o sentido nelas presente. Daí a necessidade de um método de análise. No nosso caso, para recuperar essa construção e ler as imagens produzidas pelo personagem francês, buscamos elementos do método iconográfico-iconológico proposto originalmente por Erwin Panofsky ([1955] 2011), e adaptado por Boris Kossoy (1999, 2012) especificamente para análise de fotografias.
Panofsky - que não se refere a fotografias, mas a imagens pictóricas em geral - propõe três níveis de interpretação que devem ser percorridos para a apreensão do significado, a saber:
O primeiro e mais superficial é a descrição pré-iconográfica, que consiste em identificar, da forma mais detalhada possível, todos os objetos e/ou eventos visíveis na superficialidade da imagem. Burke (2004) exemplifica: objeto pode ser uma árvore, um prédio, um animal, um conjunto de pessoas; evento pode ser uma refeição, uma batalha, uma procissão, etc.
O segundo nível é a análise iconográfica, em que o pesquisador relaciona os elementos pré-iconográficos identificados no nível anterior a assuntos ou conceitos de seu conhecimento prévio. Burke prossegue com o exemplo: trata-se aqui de reconhecer uma refeição como a Última Ceia, ou uma batalha como a Batalha de Waterloo, e assim por diante.
O terceiro e mais profundo é a análise iconológica, voltada à interpretação das circunstâncias que condicionaram a produção da imagem e que permitem sua leitura além da superficialidade, apreendendo seu “sentido intrínseco” - em última análise, o que ela “significa”.
Kossoy (2012), ao adaptar a proposta especificamente para imagens fotográficas, propõe que o exame das fotos se faça por meio de dois procedimentos: “análise técnica” e “análise iconográfica”. A separação, segundo o autor, “dá-se apenas para efeito didático. Na prática, esta dupla análise, que corresponde ao exame técnico-iconográfico, se realiza conjuntamente” (Kossoy, 2012, p. 81).
A análise técnica centra-se na materialidade do documento analisado: passa por verificar elementos como a técnica empregada pelo fotógrafo, os materiais usados na produção física do documento, e demais aspectos da configuração material desse artefato que possam fornecer indícios a respeito das condições de produção, autoria, data, local de produção, etc. Já a análise iconográfica concentra-se na informação visual presente na imagem e baseia-se no método de Panofsky. Na aplicação proposta desse método para o documento fotográfico, os dois primeiros níveis da proposta de Panofsky correspondem à apreensão da chamada “segunda realidade” (exterior ao fotógrafo, capturada e congelada pelo clique, contida nos limites bidimensionais da imagem), ao passo que o terceiro visa aproximar a “primeira realidade”, invisível na foto por ser interior ao fotógrafo. Esta “primeira realidade” está relacionada à intencionalidade, às circunstâncias e às condições de produção da imagem. Para Kossoy, “toda e qualquer imagem fotográfica contém em si, oculta e internamente, uma história: é a sua realidade interior, abrangente e complexa, invisível fotograficamente e inacessível fisicamente” (Kossoy, 1999, p. 36).
Capturar essa “história” ou “realidade interior” nas fotos do nosso visitante francês anônimo, a fim de apreender sua experiência da cidade de São Paulo, constitui objetivo da análise que faremos na seção seguinte.
Seguindo o flâneur: a experiência contada pelas fotos
Comecemos por uma breve análise técnica, isto é, pela configuração material do artefato analisado, seguindo Kossoy (2012). Nosso corpus documental é um conjunto de 48 fotografias em preto e branco, com anotações a tinta azul no verso. Não há dados a respeito de autoria ou procedência do conjunto de fotos, embora seja claro provirem todas do mesmo autor. A baixa qualidade técnica permite caracterizar o autor, claramente, como um fotógrafo amador. As fotos foram produzidas no período de setembro a novembro de 1952, e sabemos disso graças às anotações no verso. Há uma única exceção: uma das 48 fotos está datada de setembro de 1954, o que tanto pode indicar um erro na anotação manuscrita ou um retorno à cidade dois anos depois.
Em todas as fotos, a imagem mede 5,3 por 8,0 centímetros, o que é compatível com os filmes fotográficos de médio formato (Kodak 120 e similares) que eram de uso comum em câmeras portáteis na década de 1950. Parece tratar-se, portanto, de impressões de contato (isto é, sem ampliação) obtidas de negativos desse formato, o que era prática comum no mercado de revelação de fotografias amadoras. Todas as 48 fotos estão impressas em papel fotográfico brilhante com bordas serrilhadas, acabamento comum à época. Sabemos (a partir de diferenças de acabamento, variações na marca do papel fotográfico utilizado, carimbos de laboratórios fotográficos, entre outros detalhes materiais) que a revelação das fotografias não se deu em lote único, mas em momentos diferentes, conforme eram produzidas. Por fim, todas as fotos têm seus versos anotados com caligrafia e tinta azul idênticas. As anotações são feitas em francês fluente, embora às vezes intercaladas de palavras em português que, ao que parece, o fotógrafo aprendia durante a sua estadia. Não é possível saber, por fim, se estas 48 fotografias que nos chegam são todas as que o visitante produziu sobre a cidade, ou se existiram outras.
Quanto à identidade do autor, a pesquisa em arquivos de jornais e em literatura sobre a empresa Antoine Chiris permitiu identificar três profissionais (dois homens e uma mulher) que transitaram entre a França e o Brasil enviados pela empresa: Édouard Hache, técnico perfumista, Suzanne Foy, secretária-geral, e Léon-Antoine Chiris, herdeiro do conglomerado empresarial que se tornou seu diretor-geral a partir de 1953. Os dois primeiros, conforme noticiado em jornal2, estiveram em São Paulo em 1947, em data bastante anterior às fotos. Já o terceiro, segundo Perrin et al. (2016), teria estado em São Paulo na década de 1950, “onde organiza plantações, uma companhia e uma fábrica para a produção de matérias-primas” (Perrin et al., 2016, p. 224).
Embora não seja possível atribuir-lhe a autoria das fotos, um indício em favor de Léon-Antoine Chiris aparece numa delas, em que encontramos a imagem de um automóvel Peugeot 203 e, no verso, a seguinte anotação em francês: “Aos irmãos Carnot: também há 203 no Brasil!”. Segundo Cocoual (2016), a família Carnot era unida por parentesco à família Chiris, proprietária da empresa, em função do casamento dos irmãos François e Ernest Carnot com as também irmãs Valentine e Marguerite Chiris. Os “irmãos Carnot” da anotação podem tanto ser François e Ernest, ambos tios de Léon-Antoine, quanto descendentes de um dos dois. A anotação indica que o fotógrafo é alguém que goza da intimidade de membros da família proprietária da empresa, a ponto de conhecer seu interesse por automóveis e dirigir-se a eles tão informalmente. Não sendo isto suficiente, contudo, para atribuir a autoria, para efeitos da análise as fotografias serão tratadas como anônimas.
Quanto ao conteúdo (e aqui começamos a ingressar também na análise iconográfica proposta por Kossoy)3, nota-se de imediato que somente três fotos não retratam as andanças do francês pelas ruas da cidade: são imagens da entrada e dos interiores do Laboratório Antoine Chiris Ltda., local de trabalho do nosso sujeito. Pelo anotado em duas delas (figuras 2 e 3), sabemos que a empresa funcionava na rua Alfredo Maia, 468, no bairro da Ponte Pequena, e que o armazém ao fundo do terreno abrigava um laboratório, enquanto os escritórios da empresa ocupavam o prédio à frente, junto à rua. Em mais uma foto do local (figura 4), temos mais detalhes: “Meu posto de trabalho fica à direita e meus óculos estão sobre a mesa”, escreve o francês. Foi possivelmente partindo daqui que, entre um dia de trabalho e outro, o flâneur fez seus percursos pela cidade, produzindo as outras 45 imagens.
Daqui por diante, todas as imagens serão instantâneos de rua. Nem todas, no entanto, oferecem o mesmo interesse para análise. Em algumas delas, o que vemos são registros não muito diferentes daqueles encontrados em cartões postais ou outras fotos comuns da São Paulo da época. São cliques bastante convencionais, esperados de qualquer visitante ou turista que percorresse um roteiro obrigatório na cidade. Temos assim uma vista muito recorrente da Avenida São João em direção à Praça Antônio Prado, com os arranha-céus “nova-iorquinos” ao fundo, outra do Vale do Anhangabaú a partir do Viaduto do Chá, um registro da paisagem que se tinha a partir dos jardins do Museu do Ipiranga, e assim por diante.
Já em muitas outras, encontramos os registros incomuns que despertam o nosso interesse de análise. Para tanto, precisamos lidar com as dificuldades que, segundo Miriam Moreira Leite (2001), são inerentes à análise deste gênero de foto. São instantâneos anônimos, feitos muito rapidamente, sem nenhuma pose deliberada por parte do fotógrafo. Ao serem analisados “arrancados de redes de relações conhecidas” (Leite, 2001, p. 31), isto é, sem conhecimento preciso de sua autoria e do contexto de produção, eles estão sujeitos a possibilidades interpretativas muito amplas. Até aqui não foi difícil reconstituir esse contexto e supor o que moveu o fotógrafo: em algumas imagens (figuras 2 a 4) ele pretendeu fazer um registro ou lembrança de seu lugar de trabalho, ao passo que as demais mencionadas são “fotos de turista” em pontos de visita obrigatória. Já nas que estão por vir, aproximar o contexto de produção (ou intenções do produtor) requer um esforço analítico maior, e para tanto contaremos com o método discutido na seção anterior.
Como estratégia para esse esforço, optamos por fazer a análise das fotografias restantes por conjuntos temáticos. Examinaremos separadamente, então, imagens que à primeira vista contêm, como tema primário ou principal: (i) tipos humanos, (ii) moradia e locais populares, (iii) mobilidade e (iv) infraestrutura e obras públicas. As anotações do verso são de enorme valia para a análise, como veremos a seguir.
i. Tipos humanos
A São Paulo destacada pelo francês não é a cidade das casas comerciais e lojas de departamento modernas instaladas no centro, valorizadas pela propaganda oficial. Ao contrário, em várias das imagens saltam aos olhos os mercadores ambulantes, as carroças, os vendedores de frutas, o comércio informal. A figura 5 é uma das que nos mostram isso. Tentemos analisá-la, percorrendo para tanto os passos propostos por Panofsky (2011).
Numa descrição pré-iconográfica, primeiro nível de interpretação segundo Panofsky, cabe-nos enumerar os diferentes objetos e/ou eventos visíveis na fotografia. Vemos ali uma calçada cujo estado de conservação é relativamente precário, que ocupa quase todo o terço inferior da imagem, estando visíveis no canto inferior direito um trecho de meio-fio e uma porção do leito carroçável da rua, em paralelepípedos. A calçada em questão pertence a uma casa assobradada, da qual se vê a parte inferior da fachada, correspondente ao andar térreo. Uma abertura no lado esquerdo dessa fachada corresponde ao vestíbulo da casa, separado da calçada por degrau e portão baixo. Sobre essa abertura, uma pequena placa de numeração, em que se lê o número 532. À direita, na mesma fachada, há uma janela fechada (detrás da qual é visível uma cortina) e uma pequena abertura de ventilação (indicando a existência de um porão), sendo que ambas dão diretamente para a calçada. Mais à direita, a fachada de uma segunda casa, em que se repetem aproximadamente os mesmos elementos: degrau e portão, janelas (duas, neste caso), abertura de porão.
Completando a descrição pré-iconográfica, junto ao pequeno portão da primeira casa é possível distinguir quatro figuras humanas. Em pé no vestíbulo (isto é, para dentro do portão) há duas mulheres, uma das quais segura uma criança de colo. Um exame atento da imagem ampliada permite ver uma diferença de idade entre elas, sendo mais jovem a mulher da esquerda, que segura a criança. Voltado para elas, porém do lado de fora do portão, vê-se um homem de costas, único personagem visível de corpo inteiro. Ele traja calça clara e casaco e chapéu escuros, e leva apoiada nos ombros uma vara de bambu, da qual pendem ganchos com peixes de tamanhos variados. A postura corporal do homem e a atitude das mulheres sugerem que uma conversa está se desenvolvendo entre eles.
De posse dessa descrição pré-iconográfica, passamos ao nível seguinte: a análise iconográfica, em que, associando os elementos listados a conceitos ou referências do nosso repertório prévio, procuramos atribuir-lhes um sentido. Aqui nos cabe identificar o homem da imagem como um vendedor ambulante, e as duas mulheres, habitantes da casa, como suas freguesas. É possível ainda distinguir três espaços que ajudam a dar sentido à cena: há um espaço privado (interior da casa, protegido, inacessível à visão), um espaço público (calçada, rua) onde está posicionado o vendedor, e entre eles um espaço de transição (devassado, porém separado do espaço público pela barreira do portão), de onde as mulheres da casa conversam com o vendedor. A casa em questão, um sobrado modesto sem recuo em relação à calçada, é um tipo de habitação à época bastante comum, e até hoje existente, nos bairros paulistanos de classe média ou remediada.
A anotação no verso nos traz informações úteis e corrobora essa última leitura de pesquisador: por ela sabermos que o sobrado está na mesma rua Alfredo Maia mencionada nas figuras 2 e 3, no remediado bairro da Ponte Pequena. Vencemos assim o segundo nível de análise, atribuindo um sentido à imagem: o que vemos são duas mulheres pertencentes às classes médias, quiçá mãe e filha, moradoras de um típico sobradinho paulistano, retratadas em cena cotidiana associada a seus afazeres domésticos: escolhem o peixe do almoço ou do jantar enquanto cuidam da criança, e aproveitam para conversar com o solícito peixeiro.
No terceiro nível (análise iconológica), devemos procurar inferir as condições de produção da foto, isto é, as circunstâncias ou intencionalidades que levaram o visitante francês a fazer este registro. Trata-se de apreender o “sentido intrínseco”, nos termos de Panofsky, ou “a primeira realidade” de que fala Kossoy. Uma vez mais, a anotação feita pelo fotógrafo no verso é importante. A partir dela, podemos inferir que o principal objeto de interesse é o peixero (sic). “Pronuncia-se pe(i)cherro”, ele faz questão de detalhar, e complementa em tom entre admirado e irônico: “Il est bath le marchand de poisson!”. Bath é gíria francesa com sentido de bonito, elegante, bem-vestido, o que permite entender a anotação como algo próximo a: “Como é elegante o vendedor de peixes!”. Conhecemos assim algo das condições de produção da imagem, inerentes à “primeira realidade”: passando pela rua a poucos metros do seu local de trabalho (como vimos a empresa ficava no número 468, e a cena foi registrada no 532, da mesma rua), o visitante parece ter-se deparado com um tipo que lhe pareceu surpreendente ou exótico, muito pouco destacado ou mesmo ausente nas representações da São Paulo “moderna” tão comuns na época. Eis o sentido intrínseco (Panofsky) ou a realidade interior (Kossoy) da imagem, e o que ela nos conta da atitude do seu autor.
Resultados semelhantes, que sugerem sentidos relacionados à descoberta de tipos populares “exóticos” ou pouco contemplados no discurso hegemônico, estão presentes em várias outras fotos cuja análise, não reproduzida aqui, é muito semelhante à da figura 5. São personagens que encontram nas ruas e na economia informal suas formas de sustento e sobrevivência. Engraxadores, feirantes, vendedores de rua (figuras 6 a 10) são outros tipos populares aparentemente inesperados que o francês encontra em suas andanças, mas que não frequentam as representações hegemônicas de São Paulo com as quais ele estava habituado, o que deve tê-lo motivado a registrá-los.
Na figura 10, o visitante registou uma vendedora negra (“marchande négresse”) que oferece algum alimento que ela mesma elabora sentada na calçada, enquanto fuma seu cachimbo, em pleno canteiro central entre as faixas de rolagem da Avenida Tiradentes. A mulher surpreendeu o francês, a cujos olhos pareceu exótica, a julgar pelo uso do ponto de exclamação: “marchande négresse fumant la pipe!”4.
Além disso, négresse, o termo em francês usado para descrevê-la, tem uma conotação depreciativa e racista que não é captada na tradução livre para “negra”. Isto decerto diz sobre a mentalidade do nosso flâneur, um europeu de meados do século XX que trabalhava numa empresa que crescera na esteira do império colonial francês. Ao mesmo tempo, pode indicar certa surpresa desse indivíduo com a presença negra nas ruas da cidade, uma vez que, nas representações hegemônicas, essa presença era frequentemente apagada. Tal apagamento aconteceu nas comemorações do Quarto Centenário, em 1954 (Moura, 1994), bem como em diversas publicações comemorativas, inclusive em língua estrangeira, que antecederam os festejos5, nas quais a “capital bandeirante” é retratada de forma a valorizar a origem branca de sua população e algo do elemento indígena, mas jamais o negro (Marins, 2003; Lofego, 2000). Também eram comuns reportagens na grande mídia estrangeira sobre a metrópole sul-americana, todas ricamente ilustradas, nas quais indivíduos negros não apareciam retratados ou mencionados6. Exposto e habituado a descrições e representações deste tipo, parece natural o visitante tivesse a curiosidade atraída pela presença de negros nas ruas. Veja-se, por exemplo, como uma reportagem especial da revista norte-americana Life, em 1948, apagava a presença negra ao referir-se à população da cidade:
“The Paulistas are an energetic and cocky breed, the product of a real melting pot. Is addition to the blended Portuguese and native strains, the most recent census for the State of São Paulo revealed 234,000 Italians, 165,000 Portuguese, 123,000 Japanese, 130,000 Spaniards and 26,000 Germans”7 (Life, 5 abr. 1948, p. 89).
ii. Moradia e locais populares
Distinguindo-se da iconografia paulistana mais comum que nos chega da época, que retrata a área central e os grandes monumentos paulistanos, o visitante francês nos legou, entre suas fotos, alguns registros de lugares de trânsito e moradia populares. Além da já comentada figura 5, que mostrava duas donas de casa e um peixeiro no bairro da Ponte Pequena, outro exemplo é a figura 11.
Aqui a atenção não parece ter sido atraída por nenhum tipo humano em particular, embora três deles apareçam: uma mulher e dois homens, atravessando com aparente vagar uma rua com casas geminadas, de aparência residencial. A mulher leva consigo um pacote de compras ou embrulho de papel, e um dos homens, uma pesada sacola, o que indica terem sido captados durante afazeres cotidianos. Embora não haja qualquer interação entre os três, une-os o facto de serem os únicos elementos visíveis em movimento, o que acaba por realçar a imobilidade da restante imagem. A calma do lugar (que apenas pelo verso da foto sabemos ser a Rua dos Campineiros, no bairro operário da Mooca) parece ser, assim, a maior personagem da foto. A falta de pavimentação (somente uma das ruas do cruzamento está calçada), o barro abundante, as casas baixas, os poucos veículos encostados no meio-fio e uma carroça de tração animal que parece distinguir-se no fundo da imagem, contribuem para uma certa atmosfera pacata.
A quietude também é personagem principal da figura 12 , tirada em outra rua com perfil semelhante: a Lino Coutinho, no bairro do Ipiranga, aqui vista em sua primeira quadra, com a Rua dos Patriotas no fundo da imagem. Desta vez o francês escolheu enquadrar as construções fabris, deixando na sua retaguarda e fora de quadro, as residenciais ali também existentes.
No seu conjunto, a atmosfera das figuras 11 e 12 contrasta com a fama de metrópole industrial dinâmica e vibrante que São Paulo cultivava. Ao contrário, é mais coerente com a descrição que o geógrafo Pasquale Petrone fez, em 1955, dos bairros industriais da cidade. Segundo ele, dado que a “metrópole industrial” se baseava na indústria de transformação, com grande predomínio de fábricas de tamanho pequeno e médio,
“o que se presencia é a intercalação de estabelecimentos fabris no meio de residências proletárias e, consequentemente, o aparecimento de verdadeiros bairros mistos, industriais e residenciais a um só tempo. Dentro do perímetro urbano em zonas como o Brás, a Mooca e o Belenzinho [as casas são] quase sempre térreas sem nenhum jardim à frente, geralmente geminadas (duas a duas [ou] quatro a quatro), todas mais ou menos iguais, de estilo pobre ou indefinível. Estendem-se assim, em sua monotonia e em sua humildade, em filas intermináveis, que chegam a ocupar quarteirões inteiros. No meio delas, porém, surgem de quando em vez a pesada e característica fachada de uma fábrica ou, então, pequenas oficinas ou fabriquetas” (Petrone, 1955, p. 130).
Esse perfil misto é, por sinal, o mesmo que já tivemos oportunidade de ver no bairro da Ponte Pequena (figura 5), em que a própria fábrica da Antoine Chiris era vizinha de residências, com peixeiro à porta.
O contraste com a imagem cultivada também se dá em certos locais de intenso trânsito popular, pontos de acesso ao transporte público para estes bairros e também para novos subúrbios mais distantes, que já se desenvolviam à época. Nas imediações do Largo da Concórdia (figuras 13 e 14), onde quase tudo parece mover-se desordenadamente, o fotógrafo explicita o que lhe chamou a atenção: “Que bagunça…”, ele escreve no verso da figura 13 8.
A “bagunça” que assombrou o francês está ligada à rápida e desordenada expansão que a cidade vivia. Na mesma figura 13, vê-se à direita uma das famosas “porteiras do Brás”, no cruzamento em nível entre a via férrea e a Avenida Rangel Pestana. Trata-se de um ponto de estrangulamento numa área muito densamente povoada, com intenso trânsito de veículos rumo à zona leste em expansão, e de passageiros que chegavam à estação Roosevelt (atual estação Brás da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos).
Já na fotografia 14 nota-se um autocarro recolhendo passageiros nessa mesma área. O destino informado no letreiro (visível somente ampliando a imagem) não é atendido pelos comboios que partem da estação ali localizada: trata-se de Paraisópolis, a vinte quilômetros dali, na região do Morumbi, Zona Sul. O local, distante demais para ter sido visitado pelo francês, é hoje a segunda maior favela da cidade. Datam justamente de 1950, aproximadamente, as primeiras ocupações informais que originariam o seu crescimento nas décadas seguintes (Maziviero & Silva, 2018).
Mas em matéria de contrastes entre a cidade oficial e a vivenciada, o fotógrafo parece ter-se impressionado com o que viu na região central. A figura 15 registra um deteriorado conjunto de casas, ao que parece ocupadas como cortiços9, diante de uma via asfaltada. É nada menos que a Avenida 9 de Julho, uma das mais modernas e importantes da cidade. “Em pleno centro”, como anotado no verso, para aparente espanto do francês.
Em outro trecho na mesma avenida (figura 16) e também em diferentes pontos da região central, como o Largo do Arouche (figura 17) e o bairro do Bexiga (figura 18), novos contrastes são registrados: entre a precariedade dos cortiços e a modernidade dos edifícios de apartamentos, entre as velhas casas da cidade e as arrojadas estruturas de betão que se erguiam entre elas.
iii. Mobilidade
Os transportes são um aspecto da vida urbana fartamente fotografado pelo visitante francês. Numa cidade que crescia rapidamente, mas mantinha empregos e comércio concentrados no centro, as deslocações eram uma dificuldade. Várias fotografias parecem contradizer o lema, forjado na época, de que São Paulo é uma cidade que não pára. Parava sim, e bastante, pelo menos para aguardar o transporte.
A figura 19 é bastante eloquente. Nas fases pré-iconográfica e iconográfica da análise, reconhecemos muitos dos elementos que costumam frequentar as imagens hegemônicas de São Paulo à época. Se a foto fosse recortada de forma a só mostrar a metade superior, veríamos um esquema frequente em cartões postais e nas representações oficiais da cidade, semelhante inclusive ao do anúncio da figura 1: arrojados arranha-céus perfilados ao fundo e uma elegante vegetação à frente, conferindo à cidade uma imagem “nova-iorquina”. O elemento destoante vê-se na metade inferior: centenas de pessoas paradas em fila, atravessando a foto de margem a margem. Na análise iconográfica reconhecemos o local da foto como o Viaduto do Chá, e entendemos que a massa de pessoas aguarda o embarque nas paragens de autocarro localizadas na Praça Ramos de Azevedo, não mostradas na imagem. Iconologicamente, a enorme fila que começa nas laterais do Teatro Municipal e se prolonga pela extensão do viaduto é a “história” ou “realidade interior” que motivou a imagem. As pretensões de cidade desenvolvida, valorizadas em representações ufanistas, não combinam com a cena. “Os países onde se faz fila são os países em decadência!! (diz-se nos Estados Unidos)”, assinala o francês no verso.
Impressão semelhante resulta da figura 20, tirada também do Viaduto do Chá, porém desta vez em direção ao Vale do Anhangabaú. Veem-se ali outras longas filas, com as mesmas características da foto anterior. Nas anotações de ambas as imagens, os duplos pontos de exclamação (“países em decadência!!”, “filas para o autocarro!!”) indicam que foi a surpresa ou espanto face à situação o que motivou o registro.
E se o serviço de autocarro impressionou o francês pela precariedade, o dos elétricos não deixou por menos. Diferentes imagens têm elétricos como um elemento iconográfico central. Em algumas eles surgem apinhados, como nas figuras 21 e 22: deslocar-se de elétrico pela cidade significava, com frequência, viajar dependurado do lado de fora devido à superlotação.
Noutras imagens surgem deficiências de outras ordens, como na figura 23, em que um incidente corriqueiro sobre os trilhos interrompe por completo o trânsito de um grande número de elétricos. No verso, novamente a situação é associada pelo francês à ideia de atraso e decadência. Se no caso dos autocarros o registro foi feito com espanto, aqui ele faz uso de ironia: há muito tempo ele não via este tipo de “agréments des tramways”11, que a experiência de São Paulo lhe fez reviver.
iv. Infraestrutura e obras públicas
Em diversas fotos, o francês registra o precário estado de pavimentação de vias públicas. É o caso da Rua Francisca Miquelina, no bairro da Bela Vista (figura 24), em que lemos no verso: “Eis uma rua. Ela foi calçada só em parte, depois se cansaram e ficou como está!!”. A situação que chama a atenção do nosso fotógrafo repete-se na Avenida Brigadeiro Luís Antonio (figura 25). Neste último caso, a anotação no verso registra uma surpresa adicional: o facto de as ruas estarem em péssimo estado até mesmo no Jardim Paulista, “quartier chic” (“bairro elegante”) da cidade.
Do solo, o foco do francês se desloca para o ar. Nas fotos seguintes, entre os elementos que mais saltam aos olhos está a grande quantidade de postes e fios elétricos desfeando a paisagem. O incômodo é registrado pelo francês no verso das três imagens. A figura 26 é da Avenida do Estado, mas a fealdade dos postes está presente, segundo ele, “quase por todo lado”. A impressão se confirma na esquina entre as ruas Martins Fontes e Consolação (figura 27): “sempre os fios…”, observa ele. Por fim, na Consolação com Paulista (figura 28), ele compara: “[E pensar que] às vezes nos queixamos dos fios que estragam as paisagens em França!!”.
Além do solo e do ar, os problemas de infraestrutura urbana são registrados pelo flâneur também na água. A poluição dos rios urbanos, como ele nos faz notar, não é algo novo em São Paulo, embora apagada nos discursos hegemônicos da época. Nosso personagem o vivenciou e o registrou com singular clareza e poder de síntese, ao referir-se ao Tamanduateí como o “Rio Merde”12 (figuras 29 e 30).
O flâneur registra ainda mais duas situações que lhe parecem curiosas no que toca à infraestrutura da cidade. A primeira é a da figura 31. Como elementos pré-iconográficos principais, listamos aqui dois autocarros enfileirados (o de trás quase totalmente encoberto pelo da frente), estacionados junto ao meio-fio de uma movimentada avenida. Ao lado de ambos, sobre a calçada, a sinalização de trânsito indica que naquele ponto o estacionamento é proibido, para os autocarros poderem parar. O autocarro mais visível tem um letreiro frontal, em que se lê “Rio de Janeiro”. O quadro é completado por uma pequena aglomeração na calçada: vinte ou trinta pessoas estão em pé, com o olhar dirigido aos veículos.
Já na análise iconográfica, o observador atento e conhecedor da cidade reconhece a Avenida Ipiranga, junto ao cruzamento com a Avenida São João. A localização é confirmada pela anotação do fotógrafo no verso, que acrescenta: é dali que partiam os autocarros com destino ao Rio. De facto, sabemos que em 1952 a cidade de São Paulo ainda não contava com um terminal rodoviário: o primeiro foi inaugurado apenas em 1961. As chegadas e partidas dos autocarros de longa distância se davam em plena rua, em diferentes pontos da cidade. A empresa Expresso Brasileiro mantinha uma agência de venda de passagens localizada na Avenida Ipiranga 885, local da foto, e o embarque de passageiros para uma viagem de mais de quatrocentos quilômetros acontecia ali mesmo (Bazani, 2016), com o improviso que certamente chamou a atenção do francês.
Discussão dos resultados
Se a fotografia contém linguagem codificada e carrega um sentido a ser descoberto, a análise que empreendemos permite desvendar o sentido conferido pelo nosso visitante a São Paulo. Seu olhar aguçado e crítico de flâneur e sua disposição para documentar o que via fizeram com que ele legasse um conjunto de fotos bastante singular, transmitindo impressões, vivências e surpresas que o indivíduo comum, o observador anônimo, tinha daquela São Paulo que apostava na imagem de metrópole modelo, altamente desenvolvida. O olhar de flâneur foi capaz de captar, ainda na década de 1950 e na contramão do discurso hegemônico, certos problemas do modelo de desenvolvimento em que São Paulo investia, que hoje, revelado insustentável, necessita ser enfrentado e revertido (Bonduki, 2011; Rolnik, 2009).
Como argumenta Lofego (2006), se houve um momento em que a memória oficial da cidade de São Paulo teve grandes investimentos de produção, ele foi sem dúvida nas celebrações do Quarto Centenário. O olhar dissidente desse visitante estrangeiro claramente nos revela um “outro lado” da cidade oficial, no qual são visíveis realidades urbanas das mais diversas que o discurso hegemônico silencia. A cidade vivenciada por esse indivíduo é uma São Paulo bem menos esplendorosa, e ao mesmo tempo mais diversa, sobre a qual sobrevivem menos referências na memória histórica e coletiva acerca do período. O contraste entre esta cidade que o flâneur francês experimentou e a cidade do discurso hegemônico que ele talvez esperasse encontrar ao chegar é, em última análise, o “sentido intrínseco” (Panofsky, 2011), ou a “história” e “realidade interior” (Kossoy, 1999, 2012), que o conjunto de fotos oferece.
Ao descobrir esse contraste, o visitante expressou, em geral, juízos depreciativos. A cidade que vivenciou, e os elementos “exóticos” que o surpreenderam são frequentemente relacionados ao feio, ao precário, ao deficiente, ao desorganizado e ao “atrasado”. Ao julgar desse modo a diferença, o visitante revela um olhar dissidente mas ainda assim colonizador, da mesma forma em que também são impregnados de valores colonizados os discursos oficiais/hegemônicos que circulavam no imaginário ufanista da época, e ainda persistem na memória coletiva de São Paulo como uma metrópole moderna e cosmopolita.
E, para além da linguagem codificada, da realidade interior e do sentido construído pelo seu autor, objeto central da nossa análise, há também nas fotos certos “traços do real” (Dubois, 1993). São fragmentos da São Paulo de 1952 que não parecem ter despertado especial atenção do fotógrafo, mas que nos chegam à sua revelia. A figura 28 mostra uma curiosa visão da célebre esquina entre a Rua da Consolação e a Avenida Paulista, hoje irreconhecível dadas as alterações que a paisagem do lugar sofreu desde então. E a figura 14 transmite, diretamente de 1952, uma referência ao atual aglomerado subnormal de Paraisópolis. São elementos que teimam em chegar até nós, não como discurso do fotógrafo, mas como vestígios do real.
Considerações finais
Realizado o nosso percurso, cabe encerrarmos com considerações a respeito das contribuições, limitações e possíveis desdobramentos do presente trabalho. Quanto às primeiras, a própria descoberta do álbum pode ser considerada uma contribuição ao repertório iconográfico paulistano. Como já mencionado, são escassos os fotógrafos de rua que nos legaram registros documentais como estes, da vivência cotidiana e anônima da cidade dessa época. Hildegard Rosenthal (1913-1990) e Alice Brill (1920-2013) são os nomes cujas obras são mais conhecidas14. Para Yara Schreiber Dines, “estas fotógrafas expõem um olhar arguto, registrando o que parece esquecido aos paulistanos no seu dia a dia: o cotidiano, o simples. Elas o fazem salientando como o cidadão utiliza a sua cidade” (Dines, 2020, p. 45). O nosso visitante compartilha com as duas fotógrafas o olhar arguto e o enfoque dirigido à vivência cotidiana, assim como a condição de estrangeiro (ambas eram imigrantes recentes da Alemanha). Por outro lado, diferencia-se delas por não ser fotógrafo de profissão: produz suas imagens como testemunho espontâneo, e não como expressão artística ou como meio de vida. Disso resulta a semelhança temática, ainda que não caiba comparação do ponto de vista técnico ou estético. Uma comparação mais aprofundada entre as fotos do francês e a produção destas e de outros fotógrafos profissionais da cidade é um possível caminho de continuidade para a análise aqui apresentada.
A análise que empreendemos decerto tem limitações, e uma delas é o facto de ignorarmos se as fotografias a que tivemos acesso são todas as que o visitante francês produziu da cidade, ou apenas parte desmembrada de um conjunto maior. É possível que tenha havido mais fotos, de modo que o que aqui vimos seria apenas uma parte do percurso do flâneur. Esta limitação é difícil de ser contornada: assim como o acaso nos propiciou contato com este primeiro fragmento, apenas a sorte poderia revelar a existência de eventuais outros.
Uma segunda limitação diz respeito à identidade do fotógrafo, que não pôde ser determinada, ainda que tenhamos encontrado alguns indícios de possível autoria. Ter acesso a essa informação poderia aproximar-nos mais do contexto de produção, ou das “redes de relações conhecidas” de que fala Leite (2001, p. 31), com isto tornando menos amplas as possibilidades interpretativas. Ao contrário da anterior, esta limitação ainda pode ser contornada pela consulta aos arquivos remanescentes dos Établissements Antoine Chiris. Sabemos, por intermédio de Perrin et al. (2016), que a empresa existiu até 1967 e os documentos referentes à filial brasileira permanecem conservados em arquivo público francês15. A consulta a esses documentos não foi possível no escopo deste trabalho, mas talvez possa trazer novas informações sobre nosso flâneur (ou nossa flâneuse) e suas vivências em São Paulo.