Introdução
Os questionamentos sobre a suposta crise da democracia não são novos e têm sido objeto de diversos estudos pelo mundo1. Entretanto, para se verificar a referida crise e analisá-la especificamente no contexto da pandemia da Covid-19, objeto deste ensaio, faz-se necessário revisitar a concepção de democracia, ressalvando-se, entretanto, sua complexidade e a impossibilidade de esgotamento de sua análise tendo em vista os limites estruturais de um ensaio.
Preliminarmente, cumpre notar que, referindo-se a uma experiência que, ao longo da história, recebeu diversas formas de concreção, o conceito de democracia demanda, inexoravelmente, uma abordagem que esteja atenta à sua historicidade e ao seu caráter polissêmico para que, a partir daí, seja possível identificar propostas teóricas adequadas ao perfil da sociedade contemporânea (Villas Bôas Filho, 2013, p. 688). Giorgio Agamben, por exemplo, sublinha a “ambiguidade preliminar” que, em seu entendimento, suscitaria mal-entendidos relativamente ao conceito de democracia. Segundo ele, isso ocorre porque aqueles que atualmente debatem acerca da democracia a concebem tanto como uma forma de constituição do corpo político, quanto como uma técnica de governo. Nesse sentido, o termo remeteria, ao mesmo tempo, a uma conceituação de direito público e a uma prática administrativa, uma vez que designaria tanto a forma de legitimação do poder político como as modalidades de seu exercício (Agamben, 2009, p. 9).
Assim, Kristin Ross ressalta o caráter “vago”, “elástico” e, portanto, destituído de acepção precisa do conceito de “democracia” (Ross, 2009, p. 101). A autora, inclusive, observa que, 1859, Auguste Blanqui já teria definido a democracia como un mot en caoutchouc. Trata-se, portanto, de um conceito complexo que procura exprimir uma experiência caracterizada por distintas formas de concreção histórica. Ademais, Wendy Brown ressalta que a democracia teria se tornado um “significante vazio”, que, na atualidade, serviria de arrimo a quaisquer sonhos e esperanças. Assim, todos, inclusive populistas autoritários, designam-se democratas na atualidade. Consequentemente, o próprio conceito de democracia acaba sendo esvaziado de qualquer conteúdo (Brown, 2009, pp. 59-60; 2015).
Logo, partindo dessas considerações, a investigação empreendida neste ensaio mobilizará uma concepção sofisticada da experiência democrática, que a considera irredutível à sua dimensão eleitoral (democracia de delegação), para, a partir dela, procurar explicitar em que medida o agravamento da situação de vulnerabilidade de diversos grupos sociais no contexto da pandemia da Covid-19 pode ser considerado expressão de um incremento do déficit democrático no Brasil.
Assim, partir-se-á do enfoque das formas de legitimidade (imparcialidade, proximidade e reflexividade) que, segundo Pierre Rosanvallon (2008), caracterizam a experiência democrática contemporânea para, a partir da concepção dessas como parâmetros analíticos, determinar de que maneira o aumento do número de cidadãos em situação de vulnerabilidade, por si só, exprimiria um déficit democrático, principalmente em relação à ideia de “legitimidade de proximidade”, cujo conceito implica a necessidade de uma relação entre os cidadãos e as instâncias de poder.
A degradação da legitimidade democrática, pela “invisibilidade” (Machado et al., 2020), assumida pela parcela mais vulnerável da população brasileira, que, conforme restará demonstrado, agravou-se no cenário da pandemia da Covid-19, exprimeuma situação que poderia ser caracterizada como uma forma de necropolítica, tal como definida por Mbembe (2016, 2018).2
Nesse âmbito, serão analisadas as políticas públicas adotadas pelo Estado brasileiro com o propósito de controlar a crise causada pela pandemia e mitigar as desigualdades sociais agravadas por essa. Serão examinados dados de pesquisa que revelam como a pandemia atingiu mais severamente as classes mais periféricas da sociedade e como isso se refletiuno número de óbitos.3
Ora, não apenas diretamente o Estado é capaz de determinar aqueles que vivem e aqueles que morrem, em seu chamado “necropoder”, mas indiretamente, diante de sua omissão em relação às situações que evidentemente determinarão o futuro, ou ausência desse, de uma população. Assim, a inércia do Estado em relação às esferas mais necessitadas da sociedade, cuja vulnerabilidade aos fatores externos as condena à vida ou à morte, especialmente diante de um cenário pandêmico, também revela uma necropolítica (Mbembe, 2016, 2018).
Portanto, a proposta deste ensaio é uma análise crítica da condução da pandemia pelo governo brasileiro, a fim de demonstrar o incremento do número de pessoas em situação de vulnerabilidade e o aumento das desigualdades sociais e econômicas que, historicamente, ocorrem no Brasil, sob o enfoque da legitimidade democrática segundo Pierre Rosanvallon e da necropolítica de Achille Mbembe. Para tanto, em primeiro lugar, será feita uma análise do modo como a atuação do Governo Federal Brasileiro em relação a determinados grupos sociais pode ser caracterizada como expressão de uma necropolítica. Em seguida, serão analisadas as políticas públicas implementadas pelo Governo Federal Brasileiro no contexto da crise pandêmica. Por fim, com base em Rosanvallon (2008, 2011, 2014) será enfocado o agravamento da situação de vulnerabilidade de diversos grupos sociais no contexto da pandemia da Covid-19 como expressão de um incremento do déficit democrático no Brasil.
1. A necropolítica de Mbembe e a pandemia da Covid-19 no Brasil
A partir do conceito de biopolítica de Michel Foucault, Mbembe (2018, 2020) propõe o conceito de necropolítica, alterando o horizonte analítico até então adotado pelo autor de Surveiller et punir - cujo estudo histórico e antropológico era focado na Europa e tratava das instituições, geralmente, sem vinculá-las diretamente ao Estado, de modo a concentrar-se nas microinstituições.4 Mbembe (2018) procura alcançar uma maior abrangência, elaborando seu conceito de necropolítica sob a ótica dos países colonizados e analisando-os sob a perspectiva de expressões históricas como o nazismo, a escravidão e o próprio colonialismo. Assim, “a necropolítica consistiria em questionar os limites da soberania do Estado, debater acerca de suas políticas, especialmente aquelas que determinam direta ou indiretamente quem deve viver e quem deve morrer” (Villas Bôas Filho, Failache da Silva, Amaral, 2021, p. 24).
De acordo com Mbembe (2016, p. 123), “a expressão máxima da soberania residiria, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer”. É possível afirmar que se trata justamente da situação ocorrida durante a pandemia da Covid-19, na qual os Estados, no desenvolvimento de suas políticas sanitárias, acabaram por deter o poder de determinar/decidir sobre a vida ou a morte de parcelas de sua população.5
Essa “decisão” sobre a vida ou morte de indivíduos pode se dar de maneira indireta, pela omissão do Estado em relação às situações de agravamento das vulnerabilidades e pela não adoção de políticas públicas capazes de proporcionar a devida assistência à população. Por exemplo, durante a pandemia, verificou-se que as pessoas com condições financeiras menos favorecidas não tinham o mesmo acesso às redes de saúde que detinham os mais afortunados, o que gerou uma desigualdade em relação ao número de óbitos entre zonas de uma mesma cidade, como aconteceu em São Paulo:
“De acordo com a Secretaria da Saúde Municipal, é longe do centro que estão os maiores números de óbitos suspeitos e confirmados da Covid-19. Até este sábado, 18, das 686 mortes ocorridas na cidade, ao menos 51 foram no distrito de Brasilândia, na zona norte, e 48, no de Sapopemba, na zona sudeste, seguidos por São Mateus e Cidade Tiradentes, ambos na zona leste e com 36 óbitos respectivamente. [...] é possível perceber que as cores apontam para mais suspeitas nos bairros periféricos e mais confirmações na região mais central, embora a prefeitura não tenha apresentado números com esse recorte. (Rossi, 2020).”
De acordo com a pesquisa “Comorbidades Sociais e Covid-19: a desigualdade como desafio da gestão pública em tempos de crises”, realizada pela Escola Nacional de Administração Pública (ENAP, 2021a), as “cidades brasileiras com baixo desempenho em indicadores socioeconômicos são mais afetadas pela Covid-19” (ENAP, 2021b) (Figura 1 e 2)
Logo, fica evidente que os fatores socioeconômicos foram determinantes para definir, ainda que indiretamente, quem morreria ou sobreviveria à pandemia e o grau das dificuldades enfrentadas pela população em razão dessa. Ainda que grande parte da população mundial tenha sofrido com os efeitos da pandemia, é um facto que as esferas mais vulneráveis da sociedade acabaram enfrentando dificuldades de nível basilar da dignidade humana, como fome e miséria.
Ademais, a forma como os governos locais lidaram com os problemas gerados pela pandemia, especialmente diante da ausência de uma linha de ação única e organizada pelo Governo Federal, contribuiu para que, no Brasil, diversas desigualdades regionais fossem percebidas, com Estados com números muito superiores de mortes em comparação a outros, além da adoção de diferentes políticas de enfrentamento (Segatto, Santos, Bichir, & Morandi, 2022, p. 312).
De certo que as desigualdades sociais e econômicas do povo brasileiro não encontram sua origem na pandemia da Covid-19, mas na construção e no desenvolvimento históricos do país,6 que, apesar de prever expressamente em sua constituição, como um de seus objetivos fundamentais, a erradicação da pobreza, da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais7, não tem conseguido superar esse cenário de profunda segregação, intensificada pelas sucessivas crises econômicas, sociais, políticas e entretanto agravado pela pandemia.
Especificamente em relação à pandemia da Covid-19, um dos fatores que agravou a situação de crise e prejudicou o controle da disseminação do vírus foi exatamente a dicotomia entre a necessidade de se fazer o distanciamento/isolamento social e a impossibilidade de muitas pessoas desenvolverem as suas atividades laborais à distância, o que acabou gerando não apenas uma onda de desemprego, como uma recessão na economia e o elevado nível de contaminações.8
Nesse contexto, desenvolveu-se uma controvérsia política e social, na qual o lado que necessitava trabalhar presencialmente para garantir seu sustento e de seus familiares, acusava aqueles que defendiam a política do isolamento total (movimento que ora se chamará de “fica em casa”) de falta de empatia. Por conseguinte, se por um lado, o isolamento social total constituía uma possibilidade de mitigação da transmissão do vírus e a redução do número de infectados, por outro lado, a existência de uma população que simplesmente não poderia parar de trabalhar, sob pena de não ter o mínimo para seu sustento, acabava por comprometer essa política. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - (“IBGE”) explicitam essa situação (Figura 3 e 4).
Como tal, serviços que requeriam um esforço físico braçal foram os mais prejudicados na pandemia, já que não podiam ser realizados remotamente, tais como obras e serviços de limpeza. E, historicamente, sabe-se que tais trabalhos acabavam sendo atribuídos às esferas mais pobres da sociedade (Santos, 2018, p. 114) (Tabela 1).
Características | Média da pandemia em 2020 (em milhões) | Percentual (%) |
---|---|---|
Gênero | ||
Homem | 3,583 | 43,9 |
Mulher | 4,585 | 56,1 |
Raça/cor | ||
Branca | 5,357 | 65,6 |
Preta ou parda | 2,812 | 34,4 |
Escolaridade | ||
Sem instrução ao fundamental incompleto | 0,057 | 0,7 |
Fundamental completo ao médio incompleto | 0,135 | 1,7 |
Médio completo ao superior incompleto | 1,883 | 23,1 |
Superior completo ou pós-graduação | 6,094 | 74,6 |
Faixa etária | ||
14-19 | 0,083 | 1 |
20-29 | 1,686 | 20,6 |
30-39 | 2,599 | 31,8 |
40-49 | 2,044 | 25 |
50-59 | 1,218 | 14,9 |
60-69 | 0,451 | 5,5 |
70-79 | 0,083 | 1 |
80 ou mais | 0,006 | 0,1 |
Setor | ||
Setor Público | 2,95 | 36,1 |
Setor Privado | 5,219 | 63,9 |
Fonte: IBGE - PNAD Covid-19, 2020 apud. IPEA, 2021.
Diante dessa problemática surgiram, ainda que de maneira discreta e insuficiente, os programas de auxílio financeiro emergencial do Governo Federal, que buscaram suprir esse mínimo necessário para as famílias que não poderiam simplesmente deixar de trabalhar. Entretanto, a pandemia durou mais do que as finanças públicas, a economia, o sistema de saúde e o Brasil, como um todo, poderiam aguentar. Por conseguinte, o resultado foi um cenário de crise generalizada, com hospitais lotados, pessoas morrendo sem atendimento, milhares de desempregados e em estado de miséria.
“Desemprego e pobreza contribuem para o agravamento da discriminação social de toda ordem: racial, etária, cultural e de gênero. Na ausência de um forte ataque, de forma a conduzir igual oportunidade de trabalho via programas sociais de combate à pobreza e o desemprego, uma solução, via mercado, poderá resultar em fracasso por razões óbvias. A persistência da pobreza no meio de um verdadeiro esmagamento da habilidade para produzir, constitui um problema econômico fundamental nas economias capitalistas [acometidas pelo Covid-19].” (Carvalho et al. 2019, p. 4 apud. Cutrim Carvalho, Ferreira Carvalho & Silva dos Santos, 2020, p. 148)
A disparidade econômica assumiu feições tão extremas que situações de intensa iniquidade passaram a ser cotidianamente presenciadas. Assim, tornou-se recorrente a situação de fome e de miséria em que um enorme contingente de pessoas passava o dia aguardando caminhões de lixo em busca de restos de comida e alimentando-se de ossos, contraposta à manutenção e ao crescimento de um mercado de luxo exorbitante.9
De acordo com o Relatório Final da “Comissão Parlamentar de Inquérito” (CPI) da Pandemia, em decorrência das políticas e estratégias adotadas pelo Governo Federal na gestão da pandemia da Covid-19, 120 mil vidas que poderiam ter sido salvas, foram perdidas (Senado Federal, 2021b, p. 1275), com três estudos estimando que 12.663 pessoas com 60 anos ou mais não teriam falecido caso o Ministério da Saúde tivesse contratado, em tempo útil, o fornecimento das vacinas (Senado Federal, 2021b, p. 1277). Ainda conforme esse relatório, com base em estudo elaborado pelo IPEA, o Brasil teria registrado 89,3% mais mortes por Covid-19 do que os demais 178 países analisados pela Organização Mundial de Saúde, o que seria um reflexo da má-gestão da Pandemia pelo Governo Federal (Senado Federal, 2021b, p. 1278). Destaca-se ainda outra importante conclusão no relatório e que revela como a adoção de determinadas políticas ou a sua omissão podem desvelar a existência de um necropoder:
“Quando a pandemia chegou, o vírus foi mais uma arma, a mais mortífera, nessa campanha que já estava em curso. Estudos demográficos mostram como os indígenas, que são uma pequena parcela dos mortos em termos absolutos, foram mais intensamente atingidos em todas as faixas etárias que o restante da população, com exceção da que vai de 30 a 39 anos. O governo se recusou a fornecer insumos vitais, como a água, e usou a pouca assistência oferecida como álibi para tentar esconder as omissões deliberadas no seu dever de proteger. Sempre que foi instado, mesmo judicialmente, a criar planos robustos de proteção, manteve uma atitude ambígua e recalcitrante. Mesmo a prioridade dada aos indígenas na vacinação foi parcial, abrangendo apenas os aldeados, que são metade do total. Quando o Supremo Tribunal Federal determinou a vacinação abrangente, o governo resistiu.” (p. 1284) (g.n.)
Como se depreende do trecho acima, a omissão do Governo Federal brasileiro em oferecer assistência aos povos indígenas acabou por sentenciá-los à maior mortalidade, já que eles não tiveram meios de se defender contra o vírus, seja por ausência de informações, seja pela falta de recursos básicos de saúde, como máscaras de proteção, álcool em gel e, acima de tudo, pela impossibilidade de acesso ao sistema de saúde.
Por conseguinte, tudo isso evidencia como a ação e a omissão do Governo Federal em relação a determinados grupos pode acabar sentenciando-os à morte diante do contexto pandêmico vivido, sendo as escolhas políticas fatores determinantes para a sobrevivência da população, conforme passará a ser enfocado no capítulo seguinte, mediante a análise das medidas adotadas pelo Governo Federal brasileiro no combate à pandemia do Covid-19.
2. Políticas públicas e pandemia da Covid-19
De acordo com o estudo realizado pela Escola Nacional de Administração Pública (ENAP), as políticas públicas adotadas pelo Estado na pandemia foram fator determinante para o agravamento das consequências econômicas e, principalmente, sanitárias dela resultantes:
“São apresentadas evidências de que, entre os Estados selecionados para o estudo, os Estados do Amazonas (AM), de Pernambuco (PE) e do Ceará (CE) sofrem substancialmente mais, em decorrência da descoordenação, do que os Estados de São Paulo (SP) e do Rio de Janeiro (RJ). Essa heterogeneidade nos efeitos se mostra particularmente mais acentuada quando analisada em relação ao número total de mortes resultantes das epidemias, indicando que as principais consequências da descoordenação sobre os Estados mais vulneráveis são de caráter, acima de tudo, sanitário.” (ENAP, 2021).
A Controladoria-Geral da União sintetizou, no site oficial do Governo Federal10, as principais medidas e informações produzidas pelo Governo Federal para o enfrentamento do coronavírus no Brasil, dividindo-as em seis grandes áreas: (i) saúde; (ii) sobre a doença; (iii) leitos e equipamentos; (iv) profissionais e gestores de saúde; (v) aeronave e embarcações e (vi) boletins epidemiológicos. Quanto a esse respeito, Failache da Silva (2021, pp. 148-149), destaca algumas das medidas adotadas pelo Governo até então (2020) para frear os efeitos danosos da pandemia:
Instituição de auxílio emergencial de R$ 600,00 para trabalhadores informais, desempregados, microempreendedores individuais (MEIs) de famílias de baixa renda e trabalhadores intermitentes que estejam inativos no momento e, portanto, sem receber;
Publicação das Medidas Provisórias 935 e 936 que visou a preservação dos empregos e garantir a complementação de salários para os trabalhadores que poderiam ter suas cargas horárias e remunerações reduzidas por até três meses. Dessa forma, as MPs instituem o benefício emergencial de preservação do emprego e da renda que tomou como base o valor mensal do seguro-desemprego que trabalhadores teriam direito caso fossem demitidos;
Publicação Medida Provisória 924 que redirecionou mais de R$ 5 bilhões para o Orçamento do Ministério da Saúde, via crédito extraordinário, para o combate ao coronavírus.
Isenção do Imposto para Operações Financeiras (IOF) para as operações de crédito por 90 dias.
Alteração na forma de contribuição para PIS/Pasep, para a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Confins) que incide sobre a receita das empresas e da contribuição previdenciária patronal que precisa ser paga pelas empresas e pelos entes públicos
Redução do custo tributário de produtos utilizados na prevenção e tratamento do coronavírus.
Publicação da Medida Provisória 932 (em vigor) que oficializa, por três meses, a redução em 50% das contribuições das empresas para o chamado “Sistema S”
Criação de uma linha de financiamento a juros reduzidos para pequenas e médias empresas no valor de R$ 40 bilhões. O objetivo é custear a folha de pagamento dessas empresas e garantir empregos. Pela iniciativa, o governo vai arcar com os salários de funcionários no valor de até dois salários-mínimos (R$ 2.090) durante dois meses.
Lançamento de plataformas digitais dos canais de atendimento da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH) para enfrentamento à violência doméstica durante a pandemia.
Cadastramento dos abrigos de idosos com o objetivo de garantir repasses do Governo Federal para ações de combate à pandemia do novo coronavírus.
Publicação de cartilha sobre o Covid-19 para pessoas com doenças raras.
Disponibilização de guia de prevenção a acidentes domésticos e primeiros socorros, com orientações importantes a respeito de acidentes domésticos que podem acontecer com mais frequência, devido ao maior tempo que as famílias tem passado dentro de casa.
Lançamento de cartilha com orientações sobre o novo coronavírus para pessoas com deficiência.
Entrega de material têxtil reutilizável para a população em situação de rua, em parceria com os Correios e o Programa Pátria Voluntária.
Campanha Delivery Solidário busca incentivar as empresas a fazer doações. (g.n.)
Note-se que, formalmente, a maioria dessas medidas buscou (i) atender a população em situação de vulnerabilidade11, seja por meio de doações, auxílios financeiros ou pela melhora no acesso à saúde ou simplesmente levando informações básicas; e (ii) sustentar o funcionamento do mercado econômico, auxiliando as empresas com linhas de crédito e redução de encargos tributários. Entretanto, a efetividade dessas medidas deve ser questionada. Afinal, por melhores que tenham sido as intenções e as propostas formuladas, é preciso analisar de que maneira elas foram de facto implementadas e como conseguiram lidar na prática com o cenário de pandemia.
Como visto, a situação dos grupos de maior vulnerabilidade só aumentou ao longo da crise pandêmica. Relativamente a eles, a crise instaurada se afigurou tanto econômica, como política e social, com milhares de pessoas desempregadas e a viver na rua, sem contar os tantos que, por ausência de atendimento médico adequado, faleceram.
De fato, não se pode atribuir exclusivamente ao Governo brasileiro a culpa pela situação que se instaurou no país. O mundo inteiro entrou em recessão devido à Pandemia da Covid-19. Entretanto, o que se deve questionar é se (i) todas as medidas possíveis foram efetivamente tomadas e (ii) se o Governo Federal Brasileiro poderia, com base nas informações que detinha até então e com base nos dados mundiais fornecidos pelos outros países, ter lidado de modo mais adequado e eficiente com a situação.
Quanto a esse respeito, um dos principais pontos a ser considerado refere-se à vacinação que, no decorrer da pandemia, demonstrou ser a medida sanitária de maior eficiência no combate ao vírus, conforme, aliás, o demonstra o quadro abaixo, extraído do site da Organização Mundial da Saúde (OMS, 2021) e ora adaptado (linhas em vermelho) (Figura 5).
Conforme consta no portal de notícias do Senado Federal (Agência Senado, 2021), as vacinas começaram a ser distribuídas no Brasil em 18 de janeiro de 2021, tendo, entretanto, o diretor do Instituto Butantan, responsável pela sua fabricação, afirmado que a primeira oferta de vacinas feita ao Ministério da Saúde teria sido em 30 de julho de 2020.
Em razão da demora e da ineficiência do Governo Federal em organizar e efetivamente negociar o início da vacinação no Brasil, com suspeitas de interferências políticas e ideológicas nas negociações, foi aberta uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), instituída pelos Requerimentos nº 1.371 e nº 1.372, de 2021, chamada “CPI da Pandemia”, cuja finalidade foi:
“apurar, no prazo de 90 dias, as ações e omissões do Governo Federal no enfrentamento da Pandemia da Covid-19 no Brasil e, em especial, no agravamento da crise sanitária no Amazonas com a ausência de oxigênio para os pacientes internados; e as possíveis irregularidades em contratos, fraudes em licitações, superfaturamentos, desvio de recursos públicos, assinatura de contratos com empresas de fachada para prestação de serviços genéricos ou fictícios, entre outros ilícitos, se valendo para isso de recursos originados da União Federal, bem como outras ações ou omissões cometidas por administradores públicos federais, estaduais e municipais, no trato com a coisa pública, durante a vigência da calamidade originada pela Pandemia do Coronavírus "SARS-CoV-2", limitado apenas quanto à fiscalização dos recursos da União repassados aos demais entes federados para as ações de prevenção e combate à Pandemia da Covid-19, e excluindo as matérias de competência constitucional atribuídas aos Estados, Distrito Federal e Municípios.” (Senado Federal, 2021) (g.n.)
O Relatório Final12, aprovado pela Comissão em 26 de outubro de 2021, possui 1288 páginas e poderia, por si só, ser objeto de inúmeras análises. Contudo, em decorrência das limitações inerentes à de um ensaio, optou-se por delimitar a análise às conclusões do mesmo, o qual consigna expressamente que a CPI teria colhido “elementos de prova que demonstraram sobejamente que o governo federal foi omisso e optou por agir de forma não técnica e desidiosa no enfrentamento da pandemia do novo coronavírus expondo deliberadamente a população a risco concreto de infecção em massa”. (Senado Federal, 2021, pp. 1270-1271).
De acordo com o referido Relatório, teria havido deliberado atraso na aquisição de imunizantes. Desta forma o governo teria assentido com a morte de brasileiros, uma vez que aderiu, paralelamente, a uma política de saúde pública pautada pela tese da “imunidade de rebanho”, de acordo com a qual a população se imunizaria naturalmente pela contaminação em massa. Segundo o Relatório, essa estratégia teria levado o Presidente Jair Bolsonaro a “resistir obstinadamente à implementação de medidas não farmacológicas, tais como o uso de máscara e o distanciamento social e, sobretudo, a não conferir celeridade na compra de imunizantes” (Senado Federal, 2021, pp. 1271).
Outro ponto de destaque das conclusões do Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito refere-se à ausência de articulação entre o Governo Federal e os demais Entes da Federação, tanto em relação às ações para aquisição de recursos estratégicos para a fabricação das vacinas como para a elaboração de planos tático-operacionais, o que é demonstrado especialmente pela inexistência de um planejamento do Ministério da Saúde para combate a pandemia até maio de 2021. (Cf. Senado Federal, 2021, pp. 1274-1275).
Ainda de acordo com o Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito, “se medidas não farmacológicas tivessem sido aplicadas de forma sistemática no País, poderiam ter reduzido os níveis de transmissão da Covid-19 em cerca de 40%, o que significa que 120 mil vidas poderiam ter sido salvas até o final de março de 2021”. (Senado Federal, 2021, p. 1276). Considerando que essas mortes se concentram em determinados extratos da sociedade brasileira, especialmente nos grupos vulneráveis, tais como os povos indígenas e a população de baixa renda, fica configurada a situação que, conceitualmente, pode ser descrita em termos de necropolítica, no sentido em que Mbembe (2018) a define.
3. Legitimidade democrática segundo Pierre Rosanvallon e o cenário de vulnerabilidades
Analisado o agravamento das vulnerabilidades sociais pela pandemia da Covid-19 e a ineficiência do Estado em combater a crise instaurada, passa-se agora a analisar de que maneira a desconsideração dessa população mais necessitada das políticas públicas de assistência engendra a sua invisibilidade de modo a, inclusive, comprometer a legitimidade democrática no cenário pós-pandêmico.
Rosanvallon (2008) propõe o debate sobre a relação entre democracia e sua legitimidade, construindo uma concepção histórica da democracia, baseado principalmente na análise dos sistemas norte-americano e francês. Apesar de começar tratando inicialmente do princípio da maioria, o autor, em suas conclusões, ao apontar a descentralização dos sistemas democráticos, enfatiza a impossibilidade de redução da democracia apenas a um sistema de competitividade eleitoral que culmina no domínio da maioria.13 Consequentemente, é possível afirmar que
“Segundo Rosanvallon, com o fim do século XX, a complexidade social teria levado ao desmoronamento das antigas formas de apreensão da “generalidade social”. Nesse contexto, a legitimação pelas urnas teria começado a se tornar progressivamente insuficiente. Observar-se-ia, assim, uma espécie de “dessacralização da função da eleição”. Com isso, a eleição começaria a experimentar uma redução de sua função, deixando de fornecer uma espécie de legitimação a priori das políticas desenvolvidas pelo governo eleito. Assim, as eleições teriam progressivamente assumido uma função mais reduzida: a validação de um modo de designação dos governantes.” (Failache da Silva, 2021, p. 18)
De acordo com Rosanvallon, a causa raiz da desilusão com a democracia seria a ausência de identificação dos líderes com a sociedade, isto é, a ausência do “ideal democrático”, pois se a identificação com um candidato é uma das razões básicas para a escolha do eleitor, a relação funcional entre líderes e pessoas, no entanto, permaneceria distante. (Rosanvallon, 2008).
Nesse núcleo, surge o conceito trazido por Rosanvallon de legitimidade de proximidade, que sugeriria ausência de hierarquia e formalismos; acessibilidade e facilidade de comunicação. Logo, um governo seria próximo de seus cidadãos a partir do reconhecimento de que se deve buscar relações mais flexíveis e diretas com o povo e da insuficiência das instituições formais para tanto (Rosanvallon, 2008). Conforme explica o autor, a proximidade não é entendida como uma questão de distância decrescente, mas como abertura, como a capacidade de participar s do relacionamento de revelação mútua entre governo e sociedade (Rosanvallon, 2008). Da mesma forma, a proximidade deixa de ser vista como uma variável de posição associada a um status (o do funcionário eleito); é antes vista como uma qualidade de interseção. Os cidadãos não estão mais satisfeitos apenas em votar. (Rosanvallon, 2008). Nesse sentido, é possível afirmar que:
“Conforme Pierre Rosanvallon, após a conquista fundamental do sufrágio universal, o desenvolvimento do ideal democrático articulou-se historicamente ao redor de duas grandes ambições. Em primeiro lugar, a de tornar a democracia mais participativa, ou seja, não restringir a intervenção dos cidadãos apenas ao momento eleitoral. Em segundo lugar, a implementação de uma democracia deliberativa, inserindo as decisões públicas em um “debate cidadão vivo”. O objetivo, em ambos os casos, consistiria em passar de uma “democracia intermitente” (démocratie intermitente) a uma “democracia permanente” (démocratie permanente) e, simultaneamente, de uma “democracia por delegação” (démocratie de délegation) a uma “democracia de implicação” (démocratie d’implication). Evidentemente que, como ressalta o autor, haveria ainda muito o que se fazer nessas duas direções. Contudo, a sua posição é a de que seria necessário refundar a democracia não apenas como regime político, mas também como forma de sociedade.” (Villas Bôas Filho, Failache da Silva & Amaral, 2021, p. 20)
Em outras palavras, a democracia de proximidade exigiria uma participação ativa do cidadão. Assim, na atualidade, com o desenvolvimento das novas tecnologias14, houve um novo câmbio de informações, que serviria para o governo como um instrumento, enquanto para a sociedade representaria uma forma de reconhecimento. Essa interação aproximaria o governo dos cidadãos, que se sentiriam ouvidos, enquanto tornaria a sociedade menos imprevisível do ponto de vista das lideranças (Rosanvallon, 2008).As novas “democracias interativas” teriam duas funções: a justificação e o câmbio de informações. Isso porque a interação implica, antes de tudo, que os líderes reajam às preocupações da sociedade. O autor sublinha ainda que essas mudanças transformam completamente a relação entre líderes e pessoas, um vez que os líderes são instados a interagir cada vez mais depressa com todos os riscos que esse novo recurso implica.” (Rosanvallon, 2008).
Nesse âmbito, a justificação seria a capacidade de participarnuma troca de opiniões entre sociedade e governo, o que possibilitaria a “aproximação através do confronto”, explicando que os mandatos seriam superados por esses processos interativos que estabeleceriam uma relação muito mais forte e muito mais rica entre cidadãos e líderes, sendo mais substancial e durável; transcendendo o aspecto de controle de representante pelo representado do mandato (Rosanvallon, 2008).
Porém, nota-se que no Brasil dos dias atuais e talvez, ousa-se dizer, de todos os tempos, os cidadãos seguem distantes dos centros de poder e não são ouvidos. Calados pela vulnerabilização que lhes tira a voz e, consequentemente a sua capacidade de participar de forma efetiva e democraticamente do Governo, esses grupos vulneráveis são inviabilizados. As trocas de poder e sua recorrente vulnerabilização social fazem com que a população menos favorecida padeça de uma moeda de troca capaz de atrair a atenção dos poderosos para suas necessidades.
Assim, o que se verificou durante a pandemia do Coronavírus foi o agravamento das situações de vulnerabilidade e, consequentemente, o distanciamento da própria concepção dos indivíduos, como seres humanos, dignos de direitos e proteção. Ora, com tamanha segregação entre Governo e sociedade, com cidades inteiras15 abandonadas ao acaso face a uma crise mundial, como afirmar que os cidadãos se sentem ouvidos? O ponto de interseção entre esse ideal de legitimidade democrática de Rosanvallon (2008) e o tema tratado neste ensaio consiste exatamente na incapacidade dos vulneráveis de se fazerem ouvir, de conseguirem interagir como iguais perante o Estado e a própria sociedade, o que, de acordo com os critérios de Rosanvallon, comprometeria a própria concepção de democracia.
Verifica-se que o acesso aos centros de Poder pela população mais vulnerável também foi dificultado durante a pandemia, muito em decorrência da implementação das medidas de isolamento social, sem uma alternativa de acesso totalmente democrática. Sabe-se que muitos dos serviços de atendimento à população migraram para os meios digitais, sem que houvesse o devido apoio à população para que conseguisse aceder a eles . De acordo com a pesquisa TIC Domicílios 2019, realizada pelo Centro Regional para o Desenvolvimento de Estudos sobre a Sociedade da Informação (CETIC), 26% da população brasileira ainda estaria desconectada da Internet, com grandes diferenças no acesso nas áreas urbanas (77%) e rural (53%), além da diferença entre brancos (75%), pardos (76%), negros (71%), amarelos (68%) e indígenas (65%) (Valente, 2020).
Logo, nota-se que o acesso à internet foi um verdadeiro divisor de águas durante a pandemia, sendo ele, entretanto, determinante para o acesso tanto ao Governo como à própria sociedade. Se se considera que os benefícios de assistência social, bem como a manutenção das aulas do sistema educacional e até mesmo o acesso à justiça foram majoritariamente oferecidos por meio de mídias digitais, evidencia-se a situação de desigualdade gerada àqueles que não possuíam acesso à internet ou que o tinham de maneira limitada.16 Aliás, quanto a esse aspecto, Conceição e Silva (2020) enfatizam que a exclusão digital decorrente das desigualdades sociais pode acentuar condições de subcidadania.17Nesse sentido:
“(…) o plano de fundo das ferramentas e propostas supracitadas é o uso de ferramentas tecnológicas. Nesse sentido, é cediço que a forma pela qual o Poder Judiciário buscou manter a efetividade de seus serviços foi através da Internet. Por conseguinte, a falta de acesso às tecnologias acabou por dificultar ainda mais o acesso à Justiça, sobretudo por pessoas e grupos mais vulneráveis. (…) percebe-se que a tecnologia impacta no acesso à justiça de grupos vulneráveis, seja pelo agravamento das vulnerabilidades em decorrência da pandemia, seja por dificuldades relacionadas com a ausência de habilidades tecnológicas para manuseio das ferramentas virtuais de acesso, destacando-se nesse grupo os denominados analfabetos digitais.” (Moita, Gurgel, Rodrigues & Souza, 2022, p. 13
De acordo com Smanio (2009, p. 19), a cidadania seria a “base de participação política no Estado de Direito, através do exercício dos direitos fundamentais”. Ora, considerando a privação dos direitos fundamentais dos indivíduos durante a pandemia, torna-se impossível sustentar que essa parcela da população possa ter podido gozar do exercício desses direitos e exercer de maneira efetiva suas participações políticas.18 Logo, revelaram-se, durante a pandemia, ameaças e violações, aos direitos humanos e ao Estado Democrático de Direito. Por conseguinte, na perspectiva de Rosanvallon (2008), o aumento da vulnerabilidade da população e seu afastamento da efetiva participação política pode ser entendido como revelador de um déficit de legitimidade da democracia brasileira.
Conclusão
Com base nos dados compilados e no estudo realizado, constatou-se que os fatores socioeconômicos foram determinantes para definir, ainda que indiretamente, quem morreria ou sobreviveria à pandemia e o grau das dificuldades enfrentadas pela população em razão dessa. Desse modo, ainda que grande parte da população mundial tenha sofrido com os efeitos da pandemia, o facto é que as esferas mais vulneráveis da sociedade acabaram enfrentando dificuldades de nível basilar da dignidade humana, como fome e miséria, tornando-se evidente o agravamento das situações de vulnerabilidade e, consequentemente, o distanciamento da própria concepção dos indivíduos como seres humanos, dignos de direitos e proteção.
Constatou-se, ainda, que a concentração de mortes em determinados extratos da sociedade brasileira, especialmente grupos vulneráveis, tais como povos indígenas e população de baixa renda, configura a situação que, conceitualmente, pode ser descrita em termos de necropolítica, no sentido em que Mbembe (2018) a define. Ademais, também foram analisados o agravamento das vulnerabilidades sociais pela pandemia do Covid-19 e a ineficiência do Estado em combater a crise instaurada, de modo a ser apontar o decorrente engendramento da invisibilidade de parte significativa da população brasileira, de modo a, inclusive, comprometer a legitimidade democrática no cenário pós-pandêmico (Rosanvallon, 2008).
Apesar de afastada a atribuição exclusiva ao Governo brasileiro da culpa pela situação que se instaurou no país (afinal, o mundo inteiro entrou em recessão em decorrência da Pandemia da Covid-19), questionou-se neste ensaio se (i) todas as medidas que poderiam ser tomadas foram tomadas e (ii) se o Governo, com base nas informações que detinha até então e com base nos dados mundiais fornecidos pelos outros países, poderia ter lidado com a situação de modo mais eficiente e adequado.
Assim, um ponto de destaque, não obstante as devidas ressalvas políticas essenciais em relação a esse documento, foram as conclusões do Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito, referentes à ausência de articulação entre o Governo Federal e os demais Entes da Federação, tanto em relação às ações para aquisição de insumos estratégicos como para a elaboração de planos tático-operacionais, o que é demonstrado, especialmente, pela inexistência de um planejamento do Ministério da Saúde para combate à pandemia até maio de 2021. (Senado Federal, 2021, pp. 1274-1275).
Verificou-se que as medidas de isolamento social, apesar de necessárias, foram implementadas de uma maneira que acabou agravando as desigualdades sociais e regionais, pois respaldaram-se em grande medida nos meios digitais o que implicava acesso à internet. Contudo, um quarto da população brasileira ainda não possui total acesso ou conhecimento (analfabetismo digital) para aceder a esses meios.
Nesse contexto, analisou-se o ponto problemático de interseção entre o ideal de legitimidade e democracia propugnada por Rosanvallon (2008) e a vulnerabilidade da população, destacando-se a incapacidade desses de se fazerem ouvir, de conseguirem interagir como iguais perante o Estado e a própria sociedade, o que, de acordo com os critérios de Rosanvallon (2008), comprometeria a legitimidade da democracia brasileira, especialmente no que tange à questão da proximidade.