Introdução
A síndrome da junção pielo-ureteral é uma patologia tipicamente pediátrica, de origem congénita ou adquirida. Resulta de uma obstrução do trato urinário ao nível da junção pielo-ureteral, que pode ser parcial ou total intermitente. As causas congénitas podem estar relacionadas com alterações anatómicas (vaso renal inferior acessório ou aberrante, por exemplo) ou com distúrbios funcionais do ureter (como a hipoplasia ureteral). As causas adquiridas incluem a fibrose por manipulação cirúrgica prévia do ureter ou neoplasia.1-4 É uma entidade mais frequente no sexo masculino e afeta predominantemente o rim esquerdo, consistindo na causa mais comum de hidronefrose no período pré-natal.1-2 Para isto contribui a maior complacência dos tecidos corporais nesta fase do desenvolvimento, uma vez que possibilitam uma maior acomodação de volume.3 Quando não identificada durante a vigilância pré-natal pode manifestar-se na infância, com dor no flanco ou abdominal intermitente, com ou sem náuseas ou vómitos e hematúria. Esta entidade clínica aumenta o risco de dano renal após traumatismos minor e é, ainda, fator de risco para litíase renal e hipertensão nesta faixa etária.1-2 Outras vezes, acaba por ser um achado incidental em exames de imagem realizados por outras razões.1
Em Portugal, um estudo com recém-nascidos verificou uma incidência de dilatação pielo-calicial congénita de 2,7%, dos quais apenas 2% necessitou de correção cirúrgica.5 Quanto aos adultos entre os 18 e os 24 anos de idade verificou-se, nos Estados Unidos da América, uma taxa de internamento por síndrome da junção pielo-ureteral de 0,7 por 100.000 durante o ano 2000.6 Não sendo, portanto, frequente nestas faixas etárias, o seu diagnóstico depende de uma correta avaliação clínica do utente sintomático, o que justifica a pertinência da apresentação deste caso.
Descrição do caso
Jovem adulto do sexo masculino, com 21 anos de idade, caucasiano e de nacionalidade brasileira. Vive com a mãe numa estrutura familiar monoparental, tendo imigrado para Portugal aos sete anos. Atualmente é empregado de mesa. À data do caso clínico, o utente não tinha antecedentes patológicos pessoais e familiares relevantes, não tinha medicação crónica prescrita e também não existiam alergias medicamentosas conhecidas.
Recorreu ao serviço de urgência por dor lombar moderada à esquerda, disúria e hematúria macroscópica com algumas horas de evolução. Ao exame objetivo apresentava estabilidade hemodinâmica, apirexia, dor à palpação do flanco abdominal esquerdo e punho-percussão do ângulo costo-vertebral dolorosa ipsilateralmente. Do resultado dos meios complementares de diagnóstico realizados não se objetivaram alterações no hemograma, ionograma e na função renal, sendo que a PCR estava discretamente aumentada (4,5mg/dl). A avaliação sumária da urina mostrou hemoglobina positiva (3+), 75 leucócitos por campo e nitritos negativos. Realizou ainda radiografia abdominal antero-posterior em ortostatismo, descrita como não tendo alterações de relevo (Figura 1). Neste contexto, o utente foi tratado sintomaticamente e, após melhoria das queixas álgicas, encaminhado para o seu médico de família para investigação e avaliação de eventual cálculo renal.
Passados três dias, o utente agendou consulta na sua unidade de cuidados de saúde primários dando conta do episódio de urgência e referindo manutenção das queixas. Apurou-se ainda que a dor referida ao flanco esquerdo tinha irradiação lombar, era de intensidade moderada e contínua. Para além de hematúria referiu ainda disúria, polaquiúria, urgência miccional e urina com cheiro fétido. Ao exame objetivo mantinha-se apirético, no entanto sem dor à punho-percussão do ângulo costo-vertebral. Também em contraste com a avaliação prévia em serviço de urgência, a palpação abdominal, para além de dolorosa nos quadrantes esquerdos, permitiu ainda verificar a existência, nessa localização, de uma massa imóvel com cerca de 15 por 20cm, de consistência duro-elástica e de limites mal definidos. Assim, as características do exame objetivo do abdómen não permitiam excluir claramente a existência de defesa abdominal. Tendo esta avaliação em conta levantaram-se as hipóteses diagnósticas de pielonefrite aguda, tumor intra-abdominal em relação com o sistema urológico ou abdómen agudo, o que motivou a referenciação a serviço de urgência tendo em vista a reavaliação analítica e imagiológica abdominal.
O utente foi reavaliado no mesmo dia em contexto de urgência, sendo que os resultados analíticos foram sobreponíveis aos anteriores. Do ponto de vista imagiológico realizou ecografia abdominal, que mostrou o rim esquerdo completamente substituído por bolsas hidronefróticas de conteúdo não puro e bexiga pouco preenchida, mas de conteúdo puro. Posto isto, decidiu-se complementar esta avaliação com tomografia computorizada urológica, que confirmou rim esquerdo consistindo em volumosas bolsas hidronefróticas com 17 por 15cm de dimensão, encontrando-se parênquima renal apenas residual desse lado (Figuras 2 e 3). O bacinete ipsilateral media 11cm de diâmetro sem que se observasse ureter a jusante, assim como também não se verificou existência de lesão a causar obstrução. O aparelho renal à direita não evidenciou alterações. Assim, firmou-se o diagnóstico de síndrome da junção pielo-ureteral à esquerda. Posto isto, decidiu-se pelo internamento para cateterização ureteral do lado afetado, procedimento que decorreu sem intercorrências. Realizou ainda urocultura da urina do rim esquerdo que não apresentou crescimento de patógenos, mas a análise do sedimento urinário apresentou abundantes leucócitos e células de descamação. Assim, teve alta ao fim de quatro dias, aguardando renograma em ambulatório e medicado com flavoxato 200mg três vezes por dia.
Passados cinco dias da alta de internamento hospitalar agendou nova consulta em cuidados de saúde primários, onde informou sobre o internamento e afirmou ainda alguma dor abdominal residual, apesar de evolução bastante favorável da sintomatologia. Após explorar eventuais incertezas e dúvidas referentes ao diagnóstico e processo terapêutico futuro concluiu-se que o utente estava esclarecido e a lidar bem com o processo patológico. Prorrogou-se o período definido no certificado de incapacidade temporária e agendou-se consulta programada para continuação dos cuidados.
Passadas algumas semanas realizou renograma, que confirmou função renal residual à direita, pelo que se propôs nefrectomia em consulta de urologia, a qual, à data da redação deste relato de caso, o utente se encontra a aguardar.
Comentário
Na vigência de hematúria macroscópica no jovem adulto, a infeção do trato urinário e a litíase renal devem ser diagnósticos a ter em conta, uma vez que são as suas causas mais frequentes.7-8 Não obstante, do diagnóstico diferencial de litíase renal faz parte a síndrome da junção pielo-ureteral, para além da infeção do trato urinário (incluindo pielonefrite aguda, cistite e uretrite), peritonite, rotura de aneurisma da aorta, hérnia inguinal e lombalgia.9 Ao passo que os últimos puderam ser excluídos com a avaliação clínica e analítica realizada durante o primeiro episódio de urgência, a síndrome da junção pielo-ureteral necessitava de um exame de imagem adequado para a sua identificação.
Perante a suspeita de cólica renal, a tomografia computorizada renal sem contraste é identificada por várias sociedades científicas como o gold standard para o diagnóstico de litíase renal.10-12 Permite ainda, caso não se confirme patologia obstrutiva litiásica, a identificação de outras possíveis causas de dor abdominal.10 O uso de ecografia como primeiro método de imagem é aceitável quanto se tratam de crianças11 ou como método de avaliação primária, com realização de tomografia computorizada subsequente para confirmação do diagnóstico.12 Uma recomendação europeia recente defende a realização de tomografia computorizada renal num período não superior a 14 horas em doentes com suspeita de cólica renal sem outras complicações.10 É ainda recomendada a avaliação imagiológica imediata caso se verifique febre, rim único ou dúvida no diagnóstico.10,12 Este fator realça ainda mais a importância de um exame objetivo correto como fator decisor de estudo complementar. Mesmo com tempos de consulta reduzidos, que se podem apresentar como obstáculo, um exame objetivo realizado de forma cuidadosa permite, muitas vezes, levantar hipóteses de diagnóstico importantes e decidir sobre a necessidade de tratamento urgente. Em contexto de urgência, a elevada exigência e a escassez de recursos que frequentemente impera podem apresentar-se também como obstáculos à realização de uma consulta eficaz e eficiente, dada a sua relação com o burnout13 e a eventual associação deste com uma menor qualidade dos cuidados de saúde.14
Tendo em conta que a tomografia computorizada realizada não identificou nenhuma estrutura que pudesse justificar a obstrução, é possível que este caso de síndrome da junção pielo-uretral se configure de etiologia congénita, uma vez que o volume da hidronefrose e o grau de involução do parênquima renal sugerem um longo período de evolução.4 Do ponto de vista da fisiopatologia, a apresentação tardia que se verificou neste caso pode justificar-se com uma evolução muito insidiosa da obstrução, condicionando o aumento muito gradual do volume de urina retido no aparelho renal, permitindo a adaptação dos tecidos do bacinete ao elevado volume de forma indolor. Geralmente estas alterações tornam-se sintomáticas por intercorrência de outras doenças como, por exemplo, a infeção do trato urinário, que não se chegou a confirmar neste caso.15
De um ponto de vista mais centrado no utente, é importante considerar que passará a ser um doente jovem com rim único, pelo que nas próximas consultas será importante gerir as suas expectativas e da sua família, nomeadamente informando, eventualmente desmistificando e ainda planeando a vigilância futura. Por outro lado, este caso acaba por evidenciar a longitudinalidade dos cuidados em medicina geral e familiar. Com efeito, é um médico de família da unidade do utente que orienta de forma adequada o processo diagnóstico, promovendo o desenrolar de um procedimento terapêutico mais apropriado e termina gerindo a convalescença e as necessidades adicionais do doente. Realça ainda a importância da confirmação dos diagnósticos prévios, que algumas vezes acompanham os utentes, assim como a necessidade de confirmar as queixas e sinais apresentados pelos mesmos.
Tendo em conta a implementação de programas de vigilância da gravidez a nível nacional, que incluem a realização de ecografia obstétrica periódica em associação com a cada vez maior qualidade dos aparelhos de ecografia, é expectável que os diagnósticos de síndrome da junção pielo-ureteral congénita em idade adulta se tornem cada vez mais raros. Com efeito, a maioria dos casos deverá ser detetada ainda durante o período fetal e orientada durante a infância ou adolescência.4-6
Em suma, este caso é um exemplo de patologia caracteristicamente pediátrica que se pode apresentar em idade adulta, ilustra a importância da confirmação dos diagnósticos prévios e da validação das queixas do utente e pode realçar a necessidade de condições adequadas para a realização da consulta, quer em ambiente de urgência quer em ambiente de cuidados de saúde primários.