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Revista Crítica de Ciências Sociais

versão On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.105 Coimbra dez. 2014

https://doi.org/10.4000/rccs.5825 

DOSSIER

Perdidos no Mediterrâneo: Teorias, discursos, fronteiras e políticas migratórias no Mare Nostrum

Lost in the Mediterranean: Theories, Discourses, Borders and Migration Policies in the Mare Nostrum

Perdus dans la Méditerranée: théories, discours, frontières et politiques migratoires dans le Mare Nostrum

 

Iside Gjergji

Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra . Colégio de S. Jerónimo, Largo D. Dinis, Apartado 3087, 3000-995 Coimbra, Portugal isidegjergji@ces.uc.pt

 

RESUMO

O Mediterrâneo tornou-se, durante largo tempo, um espaço por excelência da ação política e da reflexão. Em consequência disso, tem-se assistido de forma crescente a um debate em torno da sua história, cultura e perfil antropológico específicos. Mas uma boa parte desse debate tem-se revelado incapaz de descrever e analisar convenientemente a realidade do Mediterrâneo contemporâneo. Através do prisma dos movimentos, políticas e práticas fronteiriças de natureza migratória, o presente artigo propõe-se estilhaçar a imagem de postal ilustrado do Mare Nostrum. Com apoio nos estudos interdisciplinares, põe-se, assim, em destaque as contradições gritantes que caracterizam atualmente os debates teóricos e sociopolíticos em torno do Mediterrâneo.

Palavras-chave: culturas, fronteiras, Mediterrâneo, migrantes, multiversalismo

 

ABSTRACT

For quite some time the Mediterranean region has been a prime arena for political action and reflection. As a consequence, a growing debate has emerged on its particular history, culture and anthropology. However, a good deal of this debate has proved incapable of successfully describing and analyzing the contemporary Mediterranean. Taking migratory movements, policies and bordering practices as its perspective, this article aims to shatter the picture postcard image of Mare Nostrum. Engaging with interdisciplinary studies, it highlights the stark contradictions operating within current theoretical and socio-political debates on the Mediterranean.

Keywords: borders, cultures, Mediterranean, migrants, multiversalism

 

RÉSUMÉ

La Méditerranée est devenue, durant fort longtemps, un espace par excellence de l’action politique et de la réflexion. En vertu de ce fait, il nous a été donné d’assister de façon croissante à un débat concernant son histoire, sa culture et son profil anthropologique spécifiques. Mais une bonne partie de ce débat a démontré être incapable de décrire et d’analyser convenablement la réalité de la Méditerranée contemporaine. Par le truchement du prisme des mouvements, des politiques et des pratiques frontalières de nature migratoire, le présent article se propose de briser menu l’image de carte postale illustrée du Mare Nostrum. Grâce à l’appui d’études interdisciplinaires, nous mettons ainsi en relief les contradictions criantes qui caractérisent actuellement les débats théoriques et sociopolitiques à propos de la Méditerranée.

Mots-clés: cultures, frontières, Méditerranée, migrants, multiversalisme

 

O olhar sobre o /Mediterrâneo/

Em Postmodernism, or, the Cultural Logic of Late Capitalism (“O pós-modernismo, ou a lógica cultural do capitalismo tardio”), Fredric Jameson sublinha o modo como, na análise dos conteúdos semânticos, a linguística se serve de um recurso curioso que consiste em “assinalar uma dada palavra como sendo ‘palavra’ ou ‘ideia’, colocando-a entre barras oblíquas ou entre aspas, conforme o caso” (Jameson, 1991: 260). Este recurso, que Jameson lamenta não existir no âmbito da análise ideológica, pode revelar-se de grande utilidade nesta nossa viagem – ainda que breve e concisa – pelo Mediterrâneo. Torna-se, assim, necessário distinguir aquilo que a palavra /Mediterrâneo/ designa – com as respetivas raízes etimológicas e as diferentes flexões ao longo dos séculos – do significado do vocábulo “Mediterrâneo” tal como é entendido no contexto do presente debate político-cultural. Distinguir estes dois níveis de análise, ou seja, o nível simbólico e o nível real, poderá ser útil para evitar que a análise se afunde em noções vagas e difusas, em que o “Mediterrâneo” enquanto imagem, visão ou metafísica se sobrepõe a tudo o mais, por vezes a ponto de fazer com que o /Mediterrâneo/ concreto, entendido como espaço físico e temporal, acabe por se desvanecer.

Enquanto método de investigação, uma tal divisão do processo analítico poderia, à partida, parecer fácil, capaz de esclarecer todas as contradições teóricas e de resolver, como que por magia, muitas da dúvidas que nos assaltam. No entanto, basta olhar para a bibliografia vasta e diversa recentemente publicada sobre o Mediterrâneo para perceber que essa via será tudo menos simples. O “Mediterrâneo” político-cultural amplamente referido nos textos dos “mediterranistas” inspira-se e afirma radicar a sua força, validade e justificação exatamente no /Mediterrâneo/ físico. Um dos pontos cardeais da bússola interpretativa dos principais participantes do debate em causa consiste, justamente, na análise das caraterísticas físicas, isto é, da própria natureza do /Mediterrâneo/ concebido como uma realidade ontológica primária da qual (quase) tudo depende, incluindo a humanidade. Com efeito, a antropologia do Mediterrâneo é frequentemente vista como consequência direta e necessária do /Mediterrâneo/ físico.

Fernand Braudel foi dos primeiros estudiosos a apontar essa ligação especial. O Mediterrâneo de Braudel, que o autor começa por descrever como uma paisagem multifacetada e irregular: “Mil coisas ao mesmo tempo. Não uma mas inúmeras paisagens…” (1999: 7), vai crescendo e ganhando contornos cada vez mais ricos até assumir a dimensão de um “sistema”, um sistema em que tudo, natureza e humanidade, se concilia, proporcionando uma “boa oportunidade” de abordar a história de uma maneira diferente e original.

Para Braudel, as caraterísticas do meio físico constituem o pressuposto essencial e (quase) suficiente para a construção de certos traços de uma determinada formação histórico-social. Posteriormente, outros estudiosos importantes adotaram esta linha de pensamento. Para estes, o Mediterrâneo também surge marcado por essa particular convergência entre natureza e espírito, que advém da tradição filosófica mediterrânica. Essa ligação parece ter dado origem a uma antropologia diferente, oposta à que foi gerada pela modernidade, segundo a qual – supostamente – o domínio exercido sobre a natureza por parte de um sujeito humano privilegiado só é concebível no que ao sentido da “visão” e ao “saber” diz respeito. De acordo com estas teorias, o homem gerado pela modernidade, inteiramente entregue à racionalidade e ao progresso científico e “privado” dos demais sentidos do corpo, vê-se, assim, obrigado a criar uma perspetiva abstrata, mecanicista e quantitativa da vida:

Graças à tradição das filosofias do Mediterrâneo – que não termina com o “ponto de viragem” gerado pela modernidade –, pudemos aprender que existe uma dimensão espiritual do cosmos; que esta dimensão se expressa na bìos e, por fim, que a prodigiosa criatividade da vida forja e enrijece as formas da consciência. (Alcaro, 2006: 203)

A natureza, a localização geográfica, a configuração geofísica e as condições climáticas do Mediterrâneo representam, portanto, a condição sine qua non, “a premissa necessária”, o “impulso de que se alimenta” (Cassano, 2007: 79) o discurso político-cultural sobre o “Mediterrâneo”:

Três continentes viveram, desde sempre, voltados de frente para o Mediterrâneo, e essa sua convergência num único espaço acabou por diluir as diferenças, dando lugar a uma hibridização do diferente, esse grande antídoto contra os fundamentalismos e as purgas étnicas. A unidade física do Mediterrâneo não é uma invenção turística, mas antes um cais ao abrigo das divisões, o cais físico e concreto de uma grande casa comum, raiz feita de pedra e mar, mais forte do que as diferenças das margens, do que a deriva continental, do que as religiões e os orgulhos étnicos de onde, sem cessar, se ergue a tentação fundamentalista. (Cassano, 2000: 19)

A unidade física do /Mediterrâneo/ torna-se, assim, uma unidade ideal. A circunstância de muita gente viver voltada para um único espaço “dilui as diferenças” e obriga, quase que espontaneamente, à “hibridização”, levando ao reconhecimento mútuo e à aceitação das “diferenças”.

O atual debate científico em torno do “Mediterrâneo” centra-se precisamente nesta ligação peculiar entre o ser humano e a natureza, que ali teria ocorrido ao longo dos séculos. Acredita-se, nessa conformidade, que essa relação estreita e imediata teria engendrado um desenvolvimento social e histórico “diferente”, “original” e alicerçado na “razoabilidade”, por oposição às formações sociais e históricas do Norte, as quais, fatalmente influenciadas pelo clima severo e pela geografia, se teriam sobretudo alicerçado sobre uma “racionalidade” (auto)destrutiva (Latouche, 1999).1

O “Mediterrâneo” tornou-se, deste modo, terreno fértil onde se produzem teorias ético-políticas novas:

O Mediterrâneo é um espaço esquivo, com contornos nem sempre fáceis de discernir. O Mediterrâneo é mais do que um simples mar entre massas de terra, um ‘continente’ marinho com traçado fácil de reconhecer no mapa, iludindo todas as tentativas de reducionismo geográfico. Apela ao imaginário, formando um mundo constituído por múltiplas narrativas, que despertam e ao mesmo tempo instilam em nós uma certa inquietação política. Mistura geocultural cujas coordenadas variam segundo o tempo histórico e os ritmos da memória, o mundo mediterrânico desafia as regras aceites e os discursos arreigados que nele não veem mais do que uma fronteira da Europa ou mesmo uma espécie de arrabalde nebuloso. (Bechev e Nicolaidis, 2010: xi)

A presença e “coexistência” de numerosas culturas são caraterísticas da região do Mediterrâneo, tendo-se transformado num leitmotiv do debate em curso. Dito de outro modo, o Mediterrâneo é, assim, retratado como um verdadeiro “multiverso de civilizações, culturas, línguas, universos simbólicos e expressivos, passível de ser contraposto como alternativa político-cultural às derivas ‘oceânicas’ da globalização” (Cassano e Zolo, 2007: 17).

Estas representações do Mediterrâneo (aqui expressas de forma necessariamente sintética e, por conseguinte, com todos os riscos inerentes em relação ao que seria a sua correta reconstituição) deparam com dificuldades lógicas evidentes quando se considera que o conceito de “natureza” em que radicam continua fortemente alicerçado apenas na natureza primeva, ou seja, numa natureza naturalista, extra-humana e extra-histórica, que o mesmo é dizer, no reino do puro acaso, de que estão ausentes a consciência e a intencionalidade. De facto, não há uma preocupação com aquilo que, numa perspetiva historicista-dialética, ou hegeliano-marxista, é a “natureza” enquanto “segunda natureza”, ou seja, todo o conjunto de automatismos sociais – como o mercado e a acumulação de capital – que, na época contemporânea, constitui algo que antecede, molda e influencia o agir social consciente dos indivíduos ao mesmo tempo que escapa ao seu controlo.

Há que dizer também que as premissas metodológicas e epistemológicas dessas singulares representações do Mediterrâneo se revelam precárias quando se considera o conceito de “geografia” ou de “espaço” a que se referem. O “espaço Mediterrâneo” é frequentemente desligado das dinâmicas sociais e históricas, ou seja, não se dá a ênfase necessária aos vínculos materiais existentes entre a geografia e os processos político-económicos do Mediterrâneo. Com efeito, não é dada a devida atenção ao facto de “não se poder atribuir ao tempo nem ao espaço significados objetivos independentemente dos processos materiais, e de só através do estudo destes ser possível escorar devidamente as nossas conceções a respeito daqueles” (Harvey, 1989: 204). Assim, importa observar e analisar o /Mediterrâneo/ com base nessa conceção materialista das categorias cognitivas, segundo a qual as “conceções objetivas de tempo e espaço resultam, necessariamente, de práticas e processos materiais que servem para reproduzir a vida social” (ibidem).

A conexão ‘original’ estabelecida entre humanidade e natureza mediterrânica, entre bìos e espírito, e portanto entre o “Mediterrâneo” simbólico e o /Mediterrâneo/ físico, evidencia fraturas diversas e significativas logo que o olhar sobre o /Mediterrâneo/ adota a necessária perspetiva histórico-social. Rapidamente esse “Mediterrâneo” ligeiro e fluido acaba por se revelar uma mera excrescência ideológica, uma representação supérflua ou decorativa do /Mediterrâneo/ concreto.

 

O policiamento das fronteiras do Mediterrâneo

Na verdade, ao invés de ser um espaço de encontro das diferenças, o Mediterrâneo transformou-se numa fronteira permanente, móvel e envolvente, que impede o encontro e divide as pessoas, especialmente os ricos e os pobres, os que tudo possuem e os que nada têm de seu, os “brancos” e os “de cor”, a Europa e a África. O Mediterrâneo de hoje assemelha-se mais a uma zona militarizada do que a um lugar feliz ou um laboratório de práticas políticas novas e inclusivas. Patrulhas militares usando balas reais contra homens desarmados, mulheres e crianças escalando vedações de arame farpado, comandantes de embarcações despejando a carga humana no mar quando detetados pela Marinha, barcos abandonados à morte e deportações em massa em pleno mar alto: não são cenas da Segunda Guerra Mundial, mas do Mediterrâneo dos nossos dias. Não obstante as grandes empresas e a economia mundiais estimularem a transferência ininterrupta de bens e dinheiro a nível planetário, e a elite internacional se sentir igualmente à vontade em Roma, Lisboa, no Cairo, Marraquexe ou em Tunes, aqueles que têm a infelicidade de haver nascido no lado errado da bacia, ou simplesmente de pertencer à parte da humanidade que nada tem, confrontam-se com enormes obstáculos à liberdade de movimentos.

As gentes do Mediterrâneo – especialmente as de África – vivem, no seu quotidiano, presas numa permanente vivência de fronteira. Presentemente esse é um espaço povoado por aqueles a quem é negado o acesso à “Fortaleza Europa”, aqueles que se defrontam com fronteiras móveis que “podem estar em qualquer lado” (Guild, 2003: 103).

Um universo de fronteiras, eis o melhor prisma para ver o Mediterrâneo contemporâneo em toda a sua complexidade. Como refere Pierre Vilar, é “a partir da fronteira que melhor se pode observar a história do mundo” (1985: 23), porque “as fronteiras deixam ver os fenómenos políticos, militares, culturais e económicos” (Pradeau, 1994: 17), ou seja, elas facultam uma informação mais profunda sobre aquela “segunda natureza” (hegeliano-marxista) a que temos de atender para compreender a “natureza” do Mediterrâneo e da Europa. Assim, é observando e analisando o que se passa no Mediterrâneo que poderemos explorar as novas dimensões da desigualdade, da dominação e da exclusão na Europa e na região mediterrânica.

A criação da Frontex (2004) – a Agência Europeia de Gestão da Cooperação Operacional nas Fronteiras Externas dos Estados-Membros da UE – e, mais recentemente, da Frontex Plus – a nova operação policial para a região do Mediterrâneo, promovida por aquela Agência – diz bem da obsessão da Europa relativamente ao controlo das fronteiras e da sua incapacidade para encontrar soluções diferentes para os problemas sociais (Jorry, 2007). A externalização das fronteiras é resultado desta política. As parcerias e as iniciativas de cooperação entre os países da UE e países terceiros abrangem “um leque diversificado de domínios que passam pela interdição, pelo controlo de fronteiras, a readmissão, a dotação de capacidade de proteção, e a própria negociação da ideia de ‘centros off-shore para tratamento de situações de trânsito’” (Betts, 2006: 2). O que basicamente é pedido aos países não membros da UE é que, a troco de ajuda financeira, contenham os migrantes em situação irregular, impedindo a sua entrada no território europeu. Desta forma, o controlo fronteiriço vai muito para além das fronteiras físicas da Europa. Como assinala Balibar, “as fronteiras já não ficam na fronteira” (1998: 217-218); pelo contrário, elas encontram-se “dispersas” (Balibar, 1999). Para Balibar, no entanto, o facto de as fronteiras se encontrarem esbatidas não significa que tendam a desaparecer. Pelo contrário, elas tendem, isso sim, a tornar-se ubíquas (Coluccello e Massey, 2007; Paoletti, 2009).

Ao longo das últimas décadas, os acordos sobre a gestão das fronteiras têm estado no centro das políticas para o Mediterrâneo: Itália e Líbia, Itália e Tunísia, Itália e Egito, Espanha e Marrocos, França e Argélia, França e Tunísia, e Grécia e Turquia são apenas alguns dos numerosos exemplos desta tendência, que acaba por reproduzir, no Mediterrâneo, a divisão Norte-Sul.

A retórica política e pública retrata os migrantes como sendo um perigo para a saúde, a segurança, a identidade e o bem-estar europeus, uma presença inumana que vai engrossando junto à fronteira sul da Fortaleza Europa. Assiste-se à construção política de sentimentos hostis para com os migrantes, numa subtil estratégia de manipulação social. Por toda a Europa se faz dos migrantes o bode expiatório do desemprego, numa visão que os encara como uma espécie de agente poluidor nacional. Daí também as reações primárias perante a insegurança social e a crise económica, incentivadas pelo preconceito dos meios de comunicação social e pelo discurso público (Basso, 2010).

Neste cenário, as fronteiras e as zonas raianas vivem num ambiente de permanente crise e de emergência, de vigilância e controlo. O estado de exceção é o paradigma dominante de governo em contextos de crise ou emergência. Por força do estado de exceção, os migrantes deixam de ser considerados sujeitos de direito, vendo-se assim reduzidos, na expressão de Agamben (2005), à vida nua, vendo-se permanentemente proscritos:

[a] relação de exceção é uma relação de proscrição. Aquele que foi proscrito, na verdade, foi não só colocado fora da lei e votado à indiferença dela, mas efetivamente por ela abandonado, quer dizer, deixado ao desamparo e às ameaças nesse limiar em que vida e lei, o fora e o dentro, se tornam indistintos. (Agamben,1998: 27)

De facto, os migrantes que atravessam o Mediterrâneo têm vindo muitas vezes a ser indiscriminadamente “recambiados” (quantas vezes para os mesmos sítios onde antes sofriam os abusos, a prisão e a tortura), ou simplesmente abandonados a morrer em alto mar,2 e algumas dessas vezes, por paradoxal que pareça, ao mesmo tempo que, em nome dos direitos humanos, a apenas algumas milhas de distância forças navais da Europa travavam uma guerra (como sucedeu contra o regime de Kadhafi) ou efetuavam manobras militares. As palavras proferidas por Tineke Strik, membro do Conselho da Europa, resumem na perfeição este imenso paradoxo:

Bem podemos falar sobre os direitos humanos e a importância de cumprir as obrigações internacionais, mas se ao mesmo tempo deixamos gente morrer – talvez porque não lhes conheçamos a identidade, ou porque sejam africanos –, fica a nu a falta de sentido dessas palavras. (The Guardian, 2012)

 

Conclusões: será o “Mediterrâneo” simbólico uma alternativa efetiva?

Finalmente, após esta curta mas esclarecedora viagem pelo /Mediterrâneo/, é tempo de voltar à questão das contradições entre o Mediterrâneo real e o “Mediterrâneo” simbólico. Como já ficou dito atrás, o “Mediterrâneo” tornou-se um local em que se produzem novas teorias ético-políticas, e há que enfrentá-las. Não obstante o facto de o Mediterrâneo se ter praticamente transformado num cemitério pós-moderno e não obstante a circunstância de o quotidiano dos seus povos ser efetivamente marcado, ano após ano, por disparidades (entre as margens Norte e Sul) no que se refere a mortalidade infantil, esperança de vida, índices de analfabetismo, despesas individuais com saúde, percentagem da população a viver abaixo do limiar da pobreza, e índices de desemprego, em certos estudos culturais sobre o Mediterrâneo a região continua a ser considerada um lugar privilegiado em que as diferenças e as pluralidades coexistem em paz, o lugar onde diferentes “civilizações” triunfam sobre o espaço e o tempo, dando, assim, origem a um “multiverso” cultural. Muitos autores olham hoje para o Mediterrâneo como um lugar em que “se jogam muitos jogos no mesmo campo ao mesmo tempo” (Cassano, 2007: 95), um laboratório político-cultural, que não é passível de ser reduzido a universalismos e que, por isso, estará em condições de desenhar o modelo social, político e antropológico capaz de salvar a humanidade da “intolerância” e do “colonialismo”.

Esta aversão ao universalismo constitui, na verdade, um dos princípios basilares do discurso teórico elaborado sobre o “Mediterrâneo”. As atitudes de “resistência” suscitadas em conexão com o Mediterrâneo, recorrentemente sublinhadas na bibliografia relevante, resumem-se a duas: a “comunitarista” e a “dialógica”. A primeira apoia o seu eixo teórico na essencialização da cultura e na defesa da “cultura local”, do folclore, como algo que é “heterónomo” e “resistente” à “globalização atlântica” e como expressão máxima da autonomia do sujeito. Quanto à abordagem “dialógica”, aparentemente oposta à primeira, tem como palavras-chave a “hibridação” e a “diluição das identidades”, que no entanto só poderão ser concretizadas na condição de se libertar as “culturas” das relações de poder, isto é, “do dilema entre a aceitação subalterna do outro e a reação de alergia e intolerância para com ele” (ibidem: 93).

Ambas as alternativas merecem alguns comentários. Primeiro que tudo, há que fazer notar que, se atendermos ao conceito de “cultura” e de “harmonia” social em que ambas assentam, elas encontram-se muito menos afastadas do que normalmente se presume. Num e noutro caso, a “cultura” é tomada, antes de mais, como uma essência preestabelecida ou já constituída, e na perspetiva “dialógica” – que contudo permanece não dialética – as “culturas” limitam-se a “dialogar” e (quase) só no campo cultural é que e se busca a “harmonia”.

Ultimamente, o movimento teórico subjacente à perspetiva “dialógica”, mais difundida do que a perspetiva “comunitarista” (que parece tender mais para um “fechamento cultural”), conheceu um assinalável desenvolvimento, tendo vindo, com o tempo, a assumir uma importância crescente no âmbito do debate público. Mas o sistema baseado no “diálogo” entre culturas – quase equivalentes –, ou no diálogo entre “universos simbólicos” diferentes, não parece constituir alternativa real ao “universalismo atlântico”, uma vez que parece reproduzir, ainda que em menor escala, condições idênticas àquelas a que se opõe. Com efeito, no seio das “culturas” locais – independentemente de entre si travarem diálogo ou não – funciona toda uma estrutura de poder que leva a cabo uma idêntica dialética de normalização, disciplina e autodisciplina dos indivíduos por ela abrangidos, levando consequentemente à quase radical exclusão de todos os demais. Além disso, parece claro que uma visão assente no “diálogo cultural”, e nomeadamente na tolerância do outro (um conceito clássico do “liberalismo atlântico”, diga-se de passagem) não poderá senão encobrir as assimetrias e os conflitos latentes, sem para eles achar qualquer tipo de solução. Alguém afirmou, de facto – se bem que com referência a uma perspetiva de análise diversa –, que “a tolerância não é concedida sem ceticismo e, porventura, sem cinismo; ou sem a aceitação de um estado de conflito, inclusivamente trágico, que é afinal uma intolerância interiorizada” (Fortini, 1990: 88).

Assim, o “multiversalismo” mediterrânico não só não é um modelo “alternativo” e “de resistência” ao processo atlântico/liberal de globalização económico-cultural, como, pelo contrário, se lhe parece ajustar na perfeição. Na verdade, se, como afirma Harvey, um determinado regime de acumulação, para existir, necessita de um mecanismo de reprodução coerente, precisando portanto que a “materialização do regime de acumulação assuma a forma de normas, hábitos, leis, redes de regulação, etc., que assegurem a unidade do processo, quer dizer, a devida adequação dos comportamentos individuais ao mecanismo de reprodução” (1989: 122), o “multiversalismo” mediterrânico (visto como um sistema que agrupa muitos “universos simbólicos” autónomos) surge como um elemento necessário de um tal mecanismo de reprodução. A atual reorganização do capitalismo, com a transição do fordismo para o pós-fordismo e a descentralização das empresas, está efetivamente a ser exponenciada não apenas pela pulverização das unidades produtivas mas também pela fragmentação do “cultural” em segmentos isolados, que mal (ou só superficialmente) comunicam entre si. O modelo económico do capitalismo tardio aproveita, deste modo, práticas políticas e formas culturais que garantam a manutenção do seu dinamismo extremo e, simultaneamente, a aquisição de caraterísticas cuja combinação lhe permita um funcionamento coerente. Por outras palavras, parece que – graças à considerável impermeabilidade do esquema concetual em que cada cultura (não obstante dialogar) supostamente assenta – as teorias “multiversalistas” do Mediterrâneo acima mencionadas conferem sustentação apenas aos processos mais ínfimos e localizados da infindável acumulação de capital.

O “multiversalismo” nega, portanto, radicalmente a estrutura universal da experiência humana, uma vez que a experiência é sempre considerada como estando dependente de uma particular visão do mundo, que por sua vez decorre da “cultura de pertença”. O facto de o “multiversalismo” à partida varrer do horizonte teórico (e prático) a possibilidade de reivindicação uníssona, pela totalidade dos seres humanos, de um sistema socioeconómico global diferente, faz com que as questões de caráter coletivo desapareçam. A experiência humana organiza-se na base de um determinado esquema concetual, e isso torna de facto impossível a sua tradução para qualquer outro esquema, porquanto os dados experienciais de um poderão não ter correspondência equivalente no outro. Assim, com base nesta abordagem teórica não existe mundo, mas tão-somente múltiplas representações dele, todas elas irredutíveis entre si.

Afigura-se necessário, portanto, determo-nos sobre mais um aspeto das teorias “multiversalistas”: a relação entre o indivíduo e a “cultura a que pertence” e a relação entre o indivíduo e os vários sujeitos pertencentes às diferentes culturas. A negação da existência de um horizonte comum (mais ou menos amplo, mas não inteiramente ausente) põe em causa qualquer hipótese de acordo e interação entre os indivíduos. Com efeito, a relação entre estes seria sempre profundamente influenciada pelos sistemas culturais constituídos pela “cultura de origem” (temporal e espacialmente imutável) e portanto destituída de qualquer hipótese real de reconhecimento através de estruturas de relacionamento individual.

O que é negado, ou não levado em consideração, é a definição de subjetividade através daquela particular dialética do reconhecer/renegar o outro que não eu. Com efeito, ela acaba por se ver negligenciada devido à circunstância de o sujeito

não ser nunca um pressuposto, como reclamam a metafísica do liberalismo – através da visão do indivíduo como sujeito original da liberdade – ou a metafísica cristã – através da visão do ser humano como “criatura criada”; o sujeito, pelo contrário, é antes um posicionamento, isto é, o resultado de um devir e, concretamente, o produto de uma conjugação de estruturas de relações. (Finelli, 2005: 26-27)

O sujeito que decorre das produções teóricas “mediterranistas” – não obstante a terapia do ‘diálogo cultural’, que funde as identidades e atenua as expressões agressivas e grosseiras da ‘cultura de origem’ – continua a ser um sujeito presumido, incapaz de evitar o “esquema de origem” concetual, que necessariamente o informará, e incapaz também, portanto, de estabelecer uma relação dialética com respeito a outros indivíduos. Deste ponto de vista, o “multiversalismo” mediterrânico não representa de todo uma alternativa efetiva ao “tsunami atlântico”.

Por último, não pode deixar-se de fazer notar que das teorias “mediterranistas” desaparece toda e qualquer referência a classes sociais, se bem que a questão do “diálogo entre culturas” não pareça ser suscitada com relação aos sujeitos das classes dominantes mais altas. Este grupo criou uma classe social transversal, que não depende da “pertença cultural”, nacional e religiosa, e que consegue, de um modo geral, desfrutar dos mesmos padrões e estilos de vida, dos mesmos níveis de consumo e educação, e dos mesmos lugares de diversão e de encontro. Trata-se, em suma, de uma classe que vive completamente à parte do quotidiano vivido pelas pessoas comuns nos seus países.

É precisamente neste ponto que o atual debate sobre o “Mediterrâneo” revela estar a uma distância intransponível relativamente à vida real e pertencer ao mero domínio das superestruturas, enquanto a realidade /Mediterrâneo/ continua a ser da específica responsabilidade de economistas, políticos, empresários profissionais e, ça va sans dire, dos militares. O fosso existente entre o /Mediterrâneo/ concreto e o “Mediterrâneo” simbólico não nos permite conhecer, nem, por conseguinte, analisar, a realidade dos Mediterrâneos.

 

Referências

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Artigo recebido a 19.12.2013 Aprovado para publicação a 27.10.2014

 

NOTAS

1Serge Latouche salienta que “O razoável – a phronesis – implica um certo grau de astúcia (métis) e dá lugar à rivalidade (agón), uma vez que vive do diálogo e do confronto, ao passo que a racionalidade procura impor-se sem discussão. Não obstante, o razoável não consiste na busca do êxito a qualquer preço, não se restringe à técnica. A propensão para o bem está sempre presente nele. Por essa razão, a redescoberta do razoável, da phronesis, será especialmente útil para se sair da crise contemporânea. A prudência (phronesis) é, indiscutivelmente, mediterrânica, desde Aristóteles a Cícero; pressupõe um conhecimento apurado da condição trágica do homem e, simultaneamente, um estado de permanente alerta em relação aos limites de cada situação” (Latouche, 1999: 53).

2 Há um acontecimento que deixa perceber bem as condições trágicas e desconcertantes com que os migrantes africanos se defrontam quando atravessam o Mar Mediterrâneo. No caso hoje conhecido como o do “barco abandonado à morte”, 72 emigrantes fugidos de Trípoli numa embarcação em 27 de março de 2011 foram deixados à deriva durante 14 dias, sem água e sem comida a bordo, até que acabaram por aportar de novo às costas da Líbia; 63 emigrantes morreram, apesar da significativa presença naval e aérea na zona devido à intervenção militar na Líbia. Durante dias a fio ficaram sem resposta os pedidos de socorro dos emigrantes, que foram escutados na Itália. Uma investigação de nove meses levada a cabo pelo Conselho da Europa trouxe à luz atuações a nível humano e institucional que acabaram por condenar os ocupantes do barco ao seu desfecho fatal.

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