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Comunicação e Sociedade

 ISSN 1645-2089 ISSN 2183-3575

        30--2024

https://doi.org/10.17231/comsoc.45(2024).4893 

Entrevistas

O Papel da Televisão na Definição da Democracia: Um Velho Sonho com um Grande Futuro?

1 Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, Braga, Portugal

2 Centre National de la Recherche Scientifique, Paris, França


Dominique Wolton (1947) dispensa apresentações no campo das ciências sociais e para lá da esfera anglo-saxónica. Há 35 trabalhos do sociólogo francês difundidos em 26 países e em 23 línguas. Fora da academia, o seu reconhecimento é igualmente abrangente, pertencendo, por exemplo, à Ordem Nacional da Legião de Honra, a mais alta distinção francesa criada por Napoleão e limitada a apenas 75 pessoas vivas. Com um doutoramento em Sociologia, Wolton admite que o seu principal objetivo é estudar comunicação em termos interdisciplinares, com enfoque na relação entre indivíduo, técnica, cultura e sociedade. Entre os livros que publicou, destacam-se: Éloge du Grand Public. Une Théorie Critique de la Television (O Elogio do Público em Geral: Uma Teoria Crítica da Televisão; Wolton, 1990); Penser la Communication (Pensar a Comunicação; Wolton, 1997); Internet et Après? Une Théorie Critique des Nouveaux Médias (Internet e Depois? Uma Teoria Crítica dos Novos Média; Wolton, 1999); Sauver la Communication (Salvem a Comunicação; Wolton, 2005); Informer N’est pas Communiquer (Informar Não É Comunicar; Wolton, 2009); e Communiquer, C’est Négocier (Comunicar É Negociar; Wolton, 2022).

1. Breve Introdução

Nesta entrevista1, Dominique Wolton reflete sobre o papel da televisão na formação da democracia e no ambiente mediático atual, retomando a sua função como um instrumento popular capaz de promover emancipação social.

Wolton faz uma breve resenha histórica do fenómeno e discute alguns dos seus desafios ao longo do tempo, salientando a busca da independência política e financeira. O autor salienta ainda a importância de preservar a diversidade na programação, sem perder de vista o interesse público.

Dominique Wolton fala também da importância do serviço público de média e o seu declínio em muitas regiões atualmente. No entanto, assinala que este serviço é vital, uma vez que é talvez a única forma de continuar a oferecer programas que podem não ter uma audiência muito ampla, mas que são interessantes e contribuem para a diversidade cultural.

A entrevista encerra com uma visão sobre o futuro da televisão, destacando a necessidade de um renovado enfoque nas pessoas e no interesse geral. Algo que hoje parece estar em declínio no atual ambiente social, que mais ou menos diretamente promove fragmentação e individualização. Para Dominique Wolton, a televisão, foi, é e deve continuar a ser uma abertura para o mundo, uma função democrática.

Abílio Almeida (AA): Por que é que decidiu, há vários anos, estudar o tema da televisão?

Dominique Wolton (DW): A primeira razão é esta: depois da rádio, o primeiro meio de comunicação social é a televisão. De facto, a televisão e a rádio são inseparáveis num projeto social de emancipação. A imprensa escrita foi indubitavelmente muito importante para o estabelecimento e amadurecimento da democracia, mas, gostemos ou não, até então, nós falávamos sempre de uma democracia de elite, e ainda mais assim no passado, com a elevada taxa de analfabetismo. A televisão foi, e é, portanto, um meio e um fenómeno de comunicação mais democrático do que a imprensa escrita.

Quando falamos de televisão, sabemos: (a) que as massas podem ser democráticas, ao contrário daquilo que se pensava no passado; (b) que consegue comunicar com todos os estratos sociais; e (c) que é algo que é acessível, virtualmente aberto a todos. Portanto, foi esta ideia de um projeto, que hoje está praticamente esquecido, de democracia e de comunicação de massas que me interessou e ainda interessa.

Além disso, a ideia daqueles que começaram a televisão, ou daqueles que começaram a rádio nos anos 1920, era fascinante: falavam em educar, educar e educar, mas também em entreter, ou seja, em lazer, política e formação de cidadãos. Ou seja, falávamos de uma ideia para um projeto social muito forte. E hoje, estamos cada vez mais conscientes disso porque, de algum modo, estamos todos a ser esmagados pelo individualismo da internet. Por outro lado, a televisão foi pensada para todos, esperando subir a fasquia através de cultura e conhecimento para todos. Bastava olhar para os programas para ver que esta ambição existia. Havia jogos, entretenimento, claro, mas também notícias e informação relevante.

O problema, o grande problema da televisão, durante muitos anos, foi o da independência política do governo: essa foi a primeira batalha. No entanto, hoje há um segundo problema. E sim, ainda falamos de independência. É igualmente uma batalha árdua. Na minha opinião a independência política foi alcançada. Mas não a independência financeira. De certa maneira, ganhámos essa batalha, mas só em parte. A guerra, como um todo, ainda não acabou, e não é só na rádio e na televisão, mas também na internet e em todas as indústrias culturais e de comunicação. Há muito dinheiro em jogo. Por isso, não raramente, embora esteja aparentemente preservada, a nossa pretensa liberdade é subtilmente manipulada por outros interesses. Posso dizer que, hoje em dia, praticamente não existe uma visão coletiva transmitida pelos média. A norma política na internet hoje é a liberdade individual. Não obstante, vale a pena referir que a liberdade individual, como conceito, surgiu no século XIX. É fundamental, é verdade, mas é menos ambiciosa para adquirir do que o é a democracia de massa.

AA: O que é que, na sua opinião, ainda faz da televisão um interessante fenómeno social relevante para o estudo?

DW: Duas coisas: (a) a oferta, a lógica da oferta, que também acontece no cinema ou no teatro; ou seja, os programadores e os produtores arriscam criar procura. Mas isso é um fenómeno muito mais completo do que o que parece. Enquanto que, nos primórdios da rádio e da televisão, havia o risco de propor e gerar procura, hoje, em geral, a oferta está mais alinhada com o que as pessoas creem, querem e esperam; e (b) A ambição social, ou antes falta dela. Atualmente com a internet, fala-se muito de liberdade individual e de classificação, mas não propriamente da noção de “emancipação social”. As pessoas costumavam dizer que a televisão era a escola do século XXI, o que era um pouco exagerado, mas, de facto, havia essa ambição. Havia uma ambição social.

AA: Fala sobre mudanças a emergir no fenómeno televisivo. Pode explorar um pouco mais este tema?

DW: O movimento que estamos a testemunhar hoje com a televisão, e mais ainda com a internet, é o da segmentação, da individualização. A grande descoberta da investigação é que a mesma mensagem enviada a toda a gente nunca teve o mesmo efeito em todos, porque todos os recetores são diferentes. A ideia de que as consciências são manipuladas é falsa, porque, em última análise, o recetor acolhe e rejeita o que quer. Portanto, o que me fascinou com a televisão foi a construção de uma lógica da oferta e do risco cultural.

AA: Risco cultural? Pode explicar um pouco melhor?

DW: Cultural, político, desportivo, o que quiser. A internet não traz nenhum progresso a este respeito, porque a internet é da lógica da procura. Podemos estar interessados em pescar ou em sexo ou em política, mas há, na lógica da internet, uma lógica de procura, nenhum incentivo à expansão. Na rádio e na televisão, como fenómenos, há essa ambição.

AA: Segundo o que nos diz, podemos dizer que a rádio e a televisão têm um valor geral maior que a internet?

DW: Sim. E também democrático e igualitário. Ao contrário do que se diz, a internet não está a matar a televisão, tal como a televisão não matou a rádio e o cinema não matou a televisão. Na realidade, os média estão a ajudar-se uns aos outros. No entanto, a ambição da televisão continua a ser muito mais forte do que qualquer outra. Se compararmos a internet e a televisão, como fenómenos, num temos oferta e no outro a procura.

Mesmo assim, houve aquilo a que se chama uma “fragmentação da oferta” em ambos [a internet e a televisão], com o aparecimento da televisão digital por cabo. Eu creio que existem atualmente três fases de comunicação: comunicação de massas com canais generalistas, canais temáticos e a internet. E a mais ambiciosa, intelectualmente, é a primeira, porque temos de ter uma grelha que possa agradar a todos. A falsa solução é a fragmentação. Não nos importamos realmente. Simplesmente vemos o que queremos. Portanto, já estamos numa lógica de procura. Aliás, a lógica da procura é a internet. Por isso, de facto, dependendo da proporção da oferta e da procura, o nível de compromisso para com um ou com outro destes meios é compreensível.

AA: Permita-me uma pequena provocação. No seu trabalho, fala muito sobre “salvar a comunicação” (Wolton, 2005), mas como pode a televisão, particularmente a televisão generalista que menciona, contribuir para isso?

DW: A evolução do conceito de “comunicação” tem-se baseado cada vez mais numa lógica desigual de poder ou silêncio. A rádio e a televisão ilustram isso perfeitamente. Portanto, o primeiro grande desafio é salvar a lógica da oferta e do interesse geral. Esta, na sua maior parte, já não é preservada. Com a profusão de técnicas e programas a que podemos aceder, muitos poderão inclusive dizer: “isto é, apesar de tudo, igual para todos”. No entanto, isso não é verdade, porque não temos programas designados para toda a população. A oferta é muito mais gigantesca, mas o espírito democrático já não a impulsiona. Por conseguinte, há cada vez mais confusão entre o cidadão e o consumidor. É necessária vontade política para manter diversidade na oferta.

AA: Estamos, portanto, a entrar no tema do serviço público, certo?

DW: Sim, e essa é outra batalha. Só a Europa é que ainda tem um serviço público audiovisual, o que é uma pena. Porque através do serviço público de rádio e de televisão, podemos fazer programas que podem não ter uma grande audiência, mas que são interessantes. A audiência não pode ser o único critério, mas infelizmente, esse é cada vez mais o caso. Algo que pode levar à tirania da procura.

AA: Qual é a maior lição que retira do seu trabalho sobre o fenómeno da televisão?

DW: O perigo da fragmentação, da segmentação. Daí que, e continuando o tópico anterior, o interesse do serviço público seja manter uma oferta diversificada para todos. Porque é a garantia do interesse geral, com o qual já ninguém parece preocupar-se, como lição a aprender, nós precisamos de reforçar a importância da diversidade cultural, porque os média italianos não são os espanhóis, os chineses ou os americanos. O interesse geral é conseguir fazer um programa para toda a gente. Na realidade, o conceito de “igualdade” não envelheceu. E o mesmo acontece com “escola” ou “saúde”. São conceitos que transcendem as eras. O facto de existirem tecnologias mais avançadas não exclui o facto de serem fundamentais.

Por exemplo, quando os média ou a internet dizem que não querem fazer política e que são um serviço para todos, isso é uma mentira! Porque isso é obviamente uma visão política. Podemos facilmente ver isso quando as pessoas dizem: “este é o objetivo para os jovens, para o mundo adulto, etc.”. É importante sublinhar e não esquecer o seguinte: na origem da rádio, da televisão e da imprensa escrita estava, antes de mais, o ser humano. Na origem da internet estavam as redes. Então o ser humano?

AA: E como vê, ou gostaria de ver, o futuro da televisão?

DW: O inverso da tendência atual. Que o foco esteja nas pessoas. A tendência atual é a internet, a segmentação, a individualização, a interação e a diversidade de comunidades e espaços. Penso que precisamos de revalorizar o interesse geral, o Estado e o serviço público. Portanto é precisamente o oposto. Sempre tivemos receio das audiências, dizíamos: “há demasiados espectadores, será que vão ser influenciados?”. Agora, com a internet, é ótimo ter muitos seguidores. Estamos, por isso, a falar de uma questão política, ideológica.

AA: Pode ser mais específico?

DW: De facto, é sobretudo uma questão ideológica, o que é mais grave. Julgo que os valores que motivaram a fundação da rádio e da televisão nos anos 40 e nos 60 não estão ultrapassados, o que não é extraordinário, porque, na sociedade, os grandes valores não mudam a cada 30 anos. O que muda a cada 30 anos é a técnica. É aí que surge a distorção, porque o ritmo da evolução tecnológica é percebido como a velocidade da transformação na própria essência da comunicação.

AA: Na sua opinião, isso pode conduzir à extinção da televisão?

DW: De modo nenhum. Porque mesmo que as pessoas não vejam televisão habitualmente, quando há um acontecimento importante, todos querem ver televisão. Além disso, há também a memória do tempo, porque há avós, tios, pais, e por aí adiante. E, após um período de exaustão, na interatividade da internet, muitos recorrem à televisão em busca de um ritmo mais lento.

AA: Finalmente, numa frase, o que é a televisão para si?

DW: Abertura para o mundo. Porque, no fundo, somos todos iguais, e isso é uma função democrática.

AA: Muito obrigado. Gostaria de acrescentar algo mais?

DW: Sim, está nas mãos das pessoas que lidam com os média derrubar o atual equilíbrio de forças, esta ideologia dominante que é a favor da internet e contra a televisão. Isso não faz sentido. Há lugar para ambos os média. A televisão faz coisas que a internet não pode fazer, e a internet faz coisas, nomeadamente para as redes, que a televisão não fará, mas não se pode ter uma sobre a outra e uma sem a outra. Mais, em todo o caso, a televisão não é menos importante como desafio político, porque levanta a questão da igualdade e da democracia.

Agradecimentos

Dominique Wolton, Damien Larrouqué, Anabela Delgado, Charles Bertram e Diana Reis.

Este trabalho é apoio por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e Tecnologia, I.P., no quadro do projeto UIDB/00736/2020 (financiamento base) e UIDP/00736/2020 (financiamento programático).

REFERÊNCIAS

Wolton, D. (1990). Éloge du grand public. Une théorie critique de la television. Flammarion. [ Links ]

Wolton, D. (1997). Penser la communication. Flammarion. [ Links ]

Wolton, D. (1999). Internet et après? Une théorie critique des nouveaux médias. Flammarion. [ Links ]

Wolton, D. (2005). Sauver la communication. Flammarion. [ Links ]

Wolton, D. (2009). Informer n’est pas communiquer. CNRS Éditions. [ Links ]

Wolton, D. (2022). Communiquer, c’est négocier. CNRS Éditions. [ Links ]

1Realizada a 1 de março de 2023.

Recebido: 19 de Junho de 2023; Aceito: 13 de Fevereiro de 2024

Tradução: Madalena Oliveira

Abílio Almeida, PhD em Ciências da Comunicação, é investigador do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (Universidade do Minho). Email: abiliogomesalmeida@gmail.com Morada: Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Minho, 4710-057 Gualtar, Braga, Portugal

Dominique Wolton é diretor do Centre National de la Recherche Scientifique, fundador e diretor da revista Hermès (CNRS Éditions) e presidente do Conseil de l’Éthique Publicitaire. Email: dominique.wolton@cnrs.fr Morada: 3 Rue Michel Ange, 75016 Paris, França

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