Com mais de um século de utilização, a imunoterapia específica com alergénios constitui a estratégia terapêutica fundamental no tratamento da doença alérgica mediada por IgE. É absolutamente espantoso que tenha sido implementada muito antes da descoberta da IgE e com um gap esmagador do sistema imune, tal como o conhecemos na atualidade, e dos intricados mecanismos imunoinflamatórios, de muitas das populações celulares e de mediadores, dos aspetos genéticos, ou das características moleculares dos alergénios, entre outras.
Abordar o tema imunoterapia com alergénios significa abordar a imunologia, pois à medida que se escrutinam novos intervenientes celulares novos mediadores, novas interfaces de comunicação e correlação entre células e entre estas e estruturas matriciais mucosas vêm a implicar impacto no mecanismo imunomodulador presente na imunoterapia e acrescer comprovação na eletividade ao tratamento. De facto, é muito gratificante para o especialista em Imunoalergologia, detentor por formação de diferenciado conhecimento imunológico, saber que é o detentor e manuseador de uma estratégia de tratamento diferenciada, a primeira terapia biológica disponível em medicina, num momento em que inúmeros fármacos biológicos de síntese têm vindo a ser disponibilizados para inúmeras outras patologias.
A imunoterapia com alergénios no momento atual atingiu, desde há muito e em inúmeras expressões clínicas de doença alérgica, o patamar de Medicina de Precisão. Este pressuposto diferenciador deverá ser merecedor de orgulho pelo vanguardismo, mas quiçá pouco reconhecido entre os nossos pares e na comunidade científica em geral.
É um repto e uma responsabilidade para todos quantos prescrevem, manuseiam e monitorizam esta terapêutica, eletiva, eficaz e com patamares de segurança imediata e a longo termo profusamente reconhecida, dar a conhecer o nosso know how e expertise cujos beneficiários são os doentes alérgicos e a saúde pública em abstrato.
O atual momento pandémico vivido à escala planetária foi avassaladoramente disruptor para a doença não
COVID-19, particularmente nos seus primeiros meses. Os doentes alérgicos não foram exceção. Apesar de não ter sido uniforme a resposta à continuação do tratamento com imunoterapia nos serviços de imunoalergologia nacionais, muitos deles suspenderam a continuação dos tratamentos com extratos de aeroalergénios, suportados por orientações nacionais e internacionais, mas também porque muitos dos doentes recusaram a deslocação a ambientes hospitalares por recearem riscos de infeção. Em contraponto, apesar de terem ocorrido diferenças entre as regiões do país, muitos doentes sob tratamento subcutâneo realizado em cuidados primários de saúde, sob a natural orientação do especialista prescritor, mantiveram sem interrupções o seu plano por intuírem menor risco de eventual contágio.
Neste contexto, é absolutamente merecido um particular agradecimento e reconhecimento aos centros de saúde nacionais que possibilitaram a continuação de um tratamento cuja interrupção teria tido potenciais contratempos na eficácia e na própria exacerbação inflamatória das vias aéreas desses doentes. Esta conduta permitiu reduzir drasticamente a sintomatologia respiratória aguda, que poderia ter uma incorreta interpretação clínica e constituir um fator adicional de maior distúrbio dos cuidados de saúde no nosso país.
A enorme maturidade e profissionalismo nos Cuidados Primários de Saúde neste grupo de doentes foram, tal como em muitas outras situações, claramente diferenciadoras do que veio a suceder em muitos outros países europeus.
Este número da Revista Portuguesa de Imunoalergologia brinda- nos com três artigos originais referentes a imunoterapia.
Um estudo de análise retrospetiva referente a parâmetros de farmacovigilância e respetivos fatores de risco no esquema ultra-rush com venenos de himenópteros. Este tratamento com enorme eficácia em patologia de elevado risco, tem permitido com estes regimes de indução um efeito terapêutico muito mais precoce, com efeitos adversos controlados, mas que requerem elevada diferenciação técnica e científica e centralizados em serviços e profissionais hiperespecializados. Com este procedimento, as reações sistémicas ocorreram em 13% dos doentes, maioritariamente reportadas a veneno de Apis mellifera, como classicamente descrito na literatura. O pré-tratamento com omalizumab e anti-histamínicos H-1 para maximizar a segurança do procedimento para este tipo de extrato vem a ser demonstrado neste estudo, à semelhança do que tem vindo a ser proposto na literatura.
Outros dois artigos originais, casuísticos, reportam a realidade observada no tratamento com imunoterapia com aeroalergénios num serviço de imunoalergologia de um hospital central universitário durante o primeiro estado de emergência que decorreu entre 18 de março e 3 de maio de 2020. O período de suspensão do tratamento decorreu entre 11 e 13 semanas. O agravamento da sintomatologia respiratória foi observado em 7% dos doentes. Da leitura destes dois trabalhos resulta uma complementaridade informativa de enorme importância, nomeadamente quanto a alguns aspetos psicoafectivos nestes doentes, o reequacionar das pautas de tratamento, a taxa de faltas a consultas para retoma, bem como as mudanças logísticas que foram requeridas ao serviço.
A pandemia por SARS-Cov-II condicionou um inigualável impacto em toda a sociedade, em todas os tipos de atividade. Na saúde, as repercussões quiçá mais desestruturantes tiveram lugar na clínica assistencial programada em consulta, ainda não totalmente revertida. Esta realidade fica bem espelhada nestes dois artigos.
Almejamos sinceramente que ao longo das nossas vidas não tenhamos que vivenciar de novo uma disrupção na sociedade com esta magnitude, mas será importante uma reflexão, atendendo também a estes resultados espelhados nestes trabalhos, para questionarmos opções, atitudes e estratégias, enfim aprendermos e gerindo melhor as situações.
Os novos desafios que seguramente nos propõe o presente e os próximos anos no que diz respeito à imunoterapia constituirão uma cada vez maior diferenciação, com recurso a novas abordagens com extratos recombinantes, mosaicos ou híbridos/quiméricos de alergénios, novos adjuvantes imunorresilientes, modalidades biotecnológicas de técnicas de disponibilização dos extratos ou mesmo técnicas baseadas em mRNA já ensaiadas numa pequena amostra de alérgicos polínicos em 2010. Os desafios e oportunidades da imunoterapia são pois, objetivamente, gigantes, e estamos certos que a indústria farmacêutica saberá disponibilizar-nos de forma generalizada todas estas inovadoras abordagens.