INTRODUÇÃO
A alergia a veneno de himenópteros (VH) está associada a reações graves, potencialmente fatais, pelo que o seu diagnóstico e tratamento atempados são fulcrais.
As abelhas e as vespas pertencem à ordem dos himenópteros, sendo comuns um pouco por toda a Europa, incluindo Portugal1. Estima-se que em países com clima temperado, em que os insetos se encontram no ambiente a maior parte do ano, mais de metade da população seja picada pelo menos uma vez nos primeiros 20 anos de vida2.
As reações ao VH podem ser locais, sistémicas, tóxicas ou raras1. As reações locais exuberantes são as mais frequentes3. Apresentam taxas de incidência que variam entre 2,4% e 26,4% na população em geral4. As reações sistémicas, onde se inclui a anafilaxia, apesar de menos frequentes, são potencialmente fatais5. Segundo estudos epidemiológicos, a taxa de reações sistémicas graves na Europa varia entre 0,3% e 7,5% nos adultos e até 3,4% em crianças6,7. A mortalidade anual associada à picada de himenópteros é de 0,03 a 0,48 /1 000 000 habitantes, ainda que se pense que esta possa estar subestimada2.
A imunoterapia específica a VH (VIT) é o único tratamento que previne reações sistémicas graves, apresentando taxas de eficácia de 77-84% na alergia a abelha e de 91-96% na alergia a vespa, melhorando a qualidade de vida dos doentes3. A VIT é eficaz e segura em adultos e crianças com reações sistémicas à picada de himenópteros e sensibilização mediada por IgE comprovada para esse inseto3. É administrada sob a forma subcutânea e o tratamento pressupõe uma fase de iniciação, seguida de uma fase de manutenção. Existem diferentes protocolos de iniciação: convencionais, rush, cluster e ultra-rush (UR)8,9,10,11,12. A diferença entre protocolos reside no tempo que decorre até se atingir a dose de manutenção. Os protocolos UR são os mais rápidos, permitindo atingir a dose de manutenção em horas. Apesar da sua maior conveniência, permanecem dúvidas em relação à segurança, uma vez que alguns estudos associaram protocolos mais rápidos a uma maior incidência de RA sistémicas13,14. Porém diversos outros estudos demonstraram que protolocos UR são, pelo menos, tão seguros quanto os convencionais11,12,15-19. Assim sendo, permanece ainda controvérsia e receios quanto à sua segurança, sobretudo dado o pouco conhecimento sobre fatores de risco para RA ao tratamento com VIT.
O presente trabalho tem como objetivo avaliar a segurança dos protocolos UR na VIT, assim como potenciais fatores de risco para RA sistémicas durante a iniciação desta terapêutica.
MATERIAL E MÉTODOS
Doentes
Foi analisada a informação clínica de 82 doentes com reação sistémica a veneno de himenópteros tratados com VIT segundo protocolo UR, seguidos no Serviço de Imunoalergologia CHVNG/E entre janeiro de 2010 e dezembro de 2019. Os doentes foram propostos para tratamento com VIT segundo os critérios definidos pela European Academy of Allergy and Clinical Immunology (EAACI)3. O tratamento com VIT foi assim proposto a doentes com história de reação sistémica imediata após picada de himenóptero e documentação de sensibilização mediada por IgE para o inseto responsável pela reação (testes cutâneos e/ou IgE específica positivos). As reações sistémicas imediatas foram classificadas de acordo com a escala proposta por Müeller20.
Testes cutâneos
Em todos os doentes foram realizados testes cutâneos com veneno de abelha (Apis mellifera), vespa (Vespula spp) e polistes (Polistes spp), tendo sido utilizados venenos diluídos em série de duas casas comerciais (Roxall®, Bilbao, Spain ou Stallergenes Greer®, London, UK). Foram efetuados testes cutâneos por picada (TCP) com os três venenos referidos nas concentrações de 0,1μg a 100μg.
Os TCP foram considerados positivos sempre que diâmetro médio da pápula ≥ 3mm em relação ao controlo negativo (leitura aos 20 minutos). Em todos os doentes com TCP negativos prosseguiu-se com a realização de testes intradérmicos (ID) com concentrações crescentes de 0,0001μg/mL a 1μg/mL. Os ID foram considerados positivos sempre que diâmetro médio da pápula ≥ 5mm (leitura aos 15 minutos)21,22. Foram efetuados controlo positivo com cloridrato de histamina nos TCP e controlo negativo com soro fisiológico nos TCP e ID.
IgE total e específica para venenos
Os doseamentos de IgE total e IgE específicas para abelha, vespa e polistes foram efetuados em todos os doentes por meio do ImmunoCAP-System® (Pharmacia Diagnostics, Uppsala, Sweden). Foram considerados positivos valores de IgE específicas ≥ 0,35 kU/L.
Triptase sérica
O doseamento de triptase sérica basal foi efetuado em todos os doentes e considerado elevado para valores >15μg.
O doseamento de triptase sérica foi também realizado nos doentes com RA sistémicas durante a VIT e considerado elevado para valores >1,2x triptase basal + 2μg.
Escolha de veneno para VIT
A escolha do veneno para VIT baseou-se na história clínica e resultados obtidos nos testes cutâneos e/ou IgE específica para os extratos referidos.
Protocolo VIT ultra-rush
Foram utilizados extratos de veneno purificado aquoso de duas casas comerciais (Roxall®, Bilbao, Spain e Stallergenes Greer®, London, UK), para administração subcutânea. Quarenta e dois doentes foram tratados com VIT de abelha, 31 de vespa, 9 de polistes. Foi efetuado pré-tratamento com anti-histamínico (24 horas, 12 horas e 1 hora antes do tratamento) em todos os doentes. Foi adicionado pré-tratamento com montelucaste (7 dias antes), concomitantemente em 9 doentes, e com omalizumab concomitantemente em 6 doentes (esquema adaptado ao doente).
O protocolo utilizado encontra-se no Quadro 1. Compreende duas fases: fase de iniciação (D1, D15 e D45) e fase de manutenção. Em D1 pretende atingir-se a dose cumulativa de 101,1μg e nas etapas subsequentes (D15 e D45) a de 100μg. Entre cada dose administrada foram sempre avaliados sinais vitais (pressão arterial, frequência cardíaca, SpO2), débito expiratório máximo instantâneo (DEMI) e exame objetivo sumário (focado nos sistemas respiratório, cardiovascular e pele).
Em doentes que atingem a dose manutenção, habitualmente segue-se a administração de dose única de 100μg mensal no primeiro ano, de 6 em 6 semanas no segundo ano, de 8 em 8 semanas a partir do terceiro ano.
No final de D1 é atingida a dose cumulativa de 101,1 μg. Após terminarem administrações os doentes completam 2 horas de vigilância em D1, 1 hora em D15 e D45 e 30 minutos na fase de manutenção.
Reações adversas
Foi avaliada a presença de RA locais exuberantes e sistémicas. Define-se como RA locais exuberantes a presença de edema superior a 10 cm de diâmetro com eritema no local de administração da VIT com pico entre as 48 e as 72 horas23. Define-se como RA sistémicas as reações fora do local da picada. Estas foram avaliadas segundo: 1) Sistema de classificação para reações de hipersensibilidade generalizadas (Quadro 2)5; 2) Classificação de Mueller (Quadro 3)20. Todas as RA sistémicas foram tratadas com adrenalina intramuscular, anti-histamínico H1 sistémico e/ou corticoide sistémico, de acordo com o tipo e gravidade da reação.
Estatística
Foi efetuada a análise estatística utilizando o programa IBM SPSS Statistics 24. Foram avaliadas as seguintes variáveis: idade, género, atopia, espécie de himenóptero, terapêutica com β-bloqueadores e IECA, gravidade de reação à picada, concentração para os quais houve positividade de TCP e ID, valor de IgE específica para venenos, IgE total e triptase basal. Realizaram-se testes de quiquadrado para estudo de relação entre variáveis categóricas e o teste de Mann-Whitney U para estudo de variáveis contínuas. Foi considerada significância estatística p<0,05.
O presente trabalho teve o parecer positivo da comissão de ética do Centro Hospitalar Vila de Nova de Gaia/Espinho.
RESULTADOS
Entre janeiro de 2010 e dezembro de 2019, 82 doentes (63 homens) com mediana de idades de 46 anos (mínimo 8; máximo 76) foram submetidos a tratamento com VIT segundo protocolo UR. A distribuição por grupos etários foi de 1 doente entre 6-11 anos, 6 entre 12-17 anos, 6 entre 18-29 anos, 54 entre 30-59 anos e 15 com mais de 60 anos. Vinte e um (25%) doentes eram atópicos, 8 (10%) asmáticos, nenhum apresentava elevação da triptase basal, 67 (82%) apresentavam pelo menos um fator de risco para repicada, nomeadamente 43 (52%) com profissão/hobby de risco e 34 (42%) a residirem em meio rural. As profissões/hobby de risco incluíram 16 (37%) apicultores, 11 (26%) agricultores, 6 (14%) trabalhadores da construção civil, 5 (12%) operadores em zona florestal, 3 (7%) jardineiros e 2 (5%) cantoneiros. A reação sistémica mais grave à picada de himenópteros foi grau I em 7 doentes (9%), grau II em 14 (17%), grau III em 37 (45%) e grau IV em 24 (29%), segundo a classificação de Mueller20 (Quadro 5).
Em D1 ocorreram RA sistémicas em 10 doentes (12%), todos eles alérgicos a abelha. As RA sistémicas foram ligeiras em 4 doentes (40%), moderadas em 6 (60%) e, considerando a classificação de Mueller, de grau I em 4 (40%), de grau II em 3 (30%) e de grau III em 3 (30%) doentes. Três doentes foram tratados com adrenalina intramuscular, os restantes apenas com anti-histamínicos H1 sistémicos e/ou corticoide sistémico, sendo que todos responderam bem ao tratamento instituído. Nenhum doente necessitou de internamento. Dois apresentaram RA sistémicas repetidas e reprodutíveis durante a iniciação.
Foi realizado pré-tratamento com montelucaste em 9 doentes por sintomas brônquicos na reação inicial e/ou durante VIT e com omalizumab em 6 doentes, destes em 3 por RA sistémicas moderadas (anafilaxia) na iniciação e manutenção, 2 por RA sistémicas repetidas na manutenção e 1 por se ter sido assumido risco elevado de RA sistémica. Foram utilizados diferentes esquemas de administração.
O pré-tratamento foi efetuado em 5 doentes durante 6 meses, na dose definida para o peso e IgE total, em todos com boa tolerância, sem registo de ocorrência de RA sistémicas moderadas/graves durante ou após a suspensão do fármaco. Apenas 1 doente necessitou de reiniciar omalizumab por anafilaxia após conclusão dos 6 meses de pré-tratamento, desde então sem novas RA sistémicas.
Todas as RA sistémicas ocorreram a partir do terceiro passo deste protocolo, correspondendo à administração de 10μg de veneno (dose cumulativa de 11,1μg). A maioria das reações ocorreu após administração de 20μg, correspondente à dose cumulativa de 31,1μg (n=4; 40%), seguida de 10μg, dose cumulativa de 11,10μg (n=3; 27%) e 40μg, dose cumulativa de 101,1μg (n=3; 27%). RA sistémicas de maior gravidade (grau III) correlacionam-se com doses de administração e consequentemente doses cumulativas maiores (p=0,022). Em D15 ocorreu apenas uma RA sistémica com VIT a vespa, tendo correspondido a uma reação moderada de grau III segundo escala de Mueller.
As administrações subsequentes decorreram sem intercorrências. Não ocorreram quaisquer RA sistémicas em D45. Apesar das intercorrências, todos os doentes atingiram a dose de manutenção. A informação sobre RA sistémicas na iniciação encontra-se sistematizada no Quadro 4. Durante a iniciação ocorreram ainda RA locais exuberantes em 14 doentes (17%), com todos os venenos [abelha 8 (57%), vespa 5 (36%), polistes 1 (7%)]. Foi aplicado tratamento com gelo e, em alguns doentes, corticoides tópicos, mantendo o protocolo preconizado.
Na fase de manutenção ocorreram RA sistémicas em 11 doentes (13%), com todos os venenos (abelha 7, vespa 2, polistes 2). Todas as RA sistémicas ocorreram em doentes com tolerância prévia à dose de manutenção, em 7 doentes (64%) nos primeiros 6 meses de tratamento.
Em 5 doentes (45%) ocorreram RA sistémicas em ambas as fases (iniciação e manutenção), todas de gravidade semelhante (1 ligeira, 4 moderadas). As RA locais exuberantes ocorreram em 15 doentes (18%), também com todos os venenos (abelha 5, vespa 9, polistes 1). Três doentes apresentaram concomitantemente RA locais e sistémicas.
Na presença de RA sistémicas durante a VIT (iniciação e manutenção), a orientação em termos de progressão deste tratamento foi heterogénea e individualizada. Em nenhum doente foi descontinuado tratamento com VIT, no contexto de RA. As decisões sobre a progressão e dose de administração após reação tiveram em conta a reação ocorrida, a resposta ao tratamento instituído, antecedentes e fatores de risco do doente.
Houve associação entre VIT de abelha e ocorrência de RA sistémicas na iniciação (p=0,003) mas não com VIT de vespa ou de polistes. Os níveis de IgE específica para abelha foram significativamente mais elevados no grupo dos doentes com RA sistémicas na iniciação (p=0,027).
Todos os doentes que apresentaram anafilaxia em D1 realizaram VIT de abelha e apresentavam níveis de IgE a abelha > 50 kUA/L (58,20 kUA/L;100 kUA/L;100 kUA/L).
Não houve diferença estatisticamente significativa com idade (p=0,183), concentração para os quais houve positividade nos TCP (p=0,773) e nos ID (p=0,069), IgE vespa (p=0,067), IgE total (p=0,571), ou triptase basal (p=0,734) (Quadro 6). Também não foi encontrada nenhuma associação com género (p=0,713), atopia (p=0,280), tratamento com β-bloqueadores (p=0,556) ou IECA (p=0,586) e gravidade da reação à picada (p=0,717).
DISCUSSÃO
Nos últimos anos, a VIT tem sido amplamente estudada, sendo formalmente reconhecida como segura e eficaz no tratamento de doentes com alergia a veneno de himenópteros3,24. Os estudos sobre a segurança da VIT sugerem que, embora tenham ocorrido RA, na sua maioria estas foram ligeiras, com a adrenalina a ser necessária com pouca frequência e sem registo de casos fatais25. No entanto, pautas convencionais são associadas a melhor tolerância do que pautas rápidas13,25. Ainda assim, diversos estudos têm mostrado que protocolos rápidos (rush e UR) são pelo menos tão seguros quanto protocolos mais lentos, sendo uma mais-valia para os doentes pela sua conveniência8,11,12,15-19.
O protocolo UR de 3,5 horas utilizado no presente estudo foi bem tolerado, com apenas 13% dos doentes (n=10 em D1; n=1 em D15) a apresentarem RA sistémicas na fase de iniciação. O estudo de Sturm et al. sobre a segurança de um protoloco rush de 4 dias revê uma série de estudos sobre segurança de protocolos lentos e rápidos, referindo uma média de RA sistémicas de 11,2% com a utilização de pautas convencionais ou cluster, percentagem semelhante à da presente amostra8. De destacar que o grupo português Cosme et al. documentou 22% de RA sistémicas durante o seu protocolo UR, portanto, uma percentagem mais elevada do que a por nós documentada.
Este facto pode ser em parte explicado pela maior percentagem de doentes sob VIT a abelha deste grupo face ao nosso (74% versus 51%), o que representa um fator de risco para a ocorrência de RA sistémicas na VIT.
Por outro lado, à semelhança do documentado por Cosme et al., no presente estudo todas as RA sistémicas foram ligeiras ou moderadas, ainda que tenha ocorrido anafilaxia em 4% (n=3) dos doentes, com necessidade de adrenalina. Nenhum doente necessitou de internamento ou ventilação invasiva/não invasiva. As RA sistémicas em D1 de iniciação apenas ocorreram em doentes tratados com VIT a abelha. Apenas 1 doente apresentou RA sistémica com VIT vespa em D15. Todos atingiram a dose de manutenção, não tendo sido descontinuado o tratamento em nenhum caso.
Os primeiros dois passos do protocolo foram bem tolerados em todos os doentes, sendo que as RA sistémicas se verificaram a partir do terceiro passo, correspondendo à administração da dose de 10μg/dose cumulativa de 11,1μg, correspondendo a uma média de 46,1μg sendo este valor superior à média de RA sistémicas apresentado por outros autores11,13,19. Quase metade dos doentes apresentaram RA sistémicas também na fase de manutenção, mesmo após tolerância prévia à dose prevista de 100μg. Este facto sugere que, pelo menos nestes doentes, a ocorrência de RA sistémicas não deverá ser atribuída ao protocolo utilizado. As RA locais exuberantes durante a iniciação ocorreram em 17% dos doentes, sem compromisso da aquisição da dose de manutenção ou continuação do tratamento. Em todos, estas RA acabaram por desaparecer nas administrações subsequentes, na maioria após divisão da dose prevista pelos dois braços.
É importante referir que a maioria dos estudos encontrados sobre segurança e protocolos de VIT são séries de casos, não existindo estudos randomizados que se foquem na segurança dos diferentes protocolos. A diferença que existe entre protocolos e sistemas de classificação de RA escolhidos por cada centro dificulta ainda mais a sua comparação. Para além disso, a maioria dos estudos apresentam amostras relativamente pequenas, existindo apenas quatro estudos com amostras relevantes: dois deles apontam protocolos mais rápidos como fator de risco para RA sistémica13,25, por oposição aos outros dois, que apontam protocolos rush como seguros16,27.
Nenhum destes estudos avalia exclusivamente protocolos UR. Particularizando, Mosbech et al.13 realizaram um estudo multicêntrico (10 países) com 840 doentes, tendo associado protocolos mais rápidos a fator de risco para RA a VIT. Os autores também verificaram que as RA sistémicas ocorreram até 20%, mas foram maioritariamente ligeiras. É importante destacar que este estudo incluiu protocolos convencionais, cluster e rush mas não protocolos UR. Rueff et al.26, em representação do Grupo de Trabalho de Imunoterapia a VH da EAACI, avaliaram num estudo multicêntrico (13 centros especializados) 680 doentes submetidos a VIT segundo protocolos convencionais, rush e também UR. Este estudo também foi a favor de que protocolos rush e UR seriam fatores de risco para RA sistémicas. No entanto, é de ressalvar que a instituição de pré-medicação e decisão de eventual descontinuação de terapêuticas anti-hipertensoras foi deixada a cargo de cada centro, o que poderá traduzir-se num viés relevante, sobretudo dado o papel da pré-medicação na VIT.
Estudos duplamente cegos e controlados por placebo mostraram que o pré-tratamento com anti-histamínicos H1 melhora a tolerância à VIT, sem comprometer a sua eficácia28-32. De uma forma mais particular, estes estudos mostraram que anti-histamínicos H1 reduziram a taxa de RA sistémicas28,29e de reações locais exuberantes29.
Desta forma, o uso de anti-histamínicos H1 é preconizado pelas guidelines europeias da EAACI para a VIT3. Têm também surgido na literatura casos clínicos que suportam o uso de omalizumab como pré-tratamento na VIT33-35.
O omalizumab é um anticorpo monoclonal anti-IgE que diminui a IgE livre no soro e a expressão dos recetores FCeRI dos basófilos e mastócitos. Este mecanismo farmacológico sugere que o omalizumab possa prevenir a anafilaxia, sendo que o objetivo da sua introdução como pré-tratamento na VIT seria o de prevenir a ocorrência de RA sistémicas graves.
Tendo em conta estes resultados promissores, foi iniciado pré-tratamento com omalizumab nos doentes com RA sistémica grau III na iniciação e/ou RA sistémicas grau II/III recorrentes na manutenção. As dúvidas sobre o esquema posológico a adotar motivaram alterações nos protocolos realizados ao longo do tempo. Todos os doentes toleraram a VIT sem intercorrências de relevo durante e após os 6 meses preconizados, com exceção de 1 doente que, após terminar o período de pré-tratamento, voltou a apresentar RA sistémica grau III. Por este motivo, reiniciou omalizumab, tendo-se mantido desde então a tolerar a VIT sem recorrência de RA sistémicas.
Verificou-se uma associação entre VIT de abelha e ocorrência de RA sistémicas, o que está em concordância com outros estudos publicados13,15-19,26. Como referido, a maioria das RA sistémicas foram em doentes sob VIT a abelha. Por outro lado, a VIT a vespa correlacionou-se com menor ocorrência de RA sistémicas e os doentes sob VIT a polistes não apresentaram nenhuma RA sistémica. O facto de os extratos de veneno de abelha serem purificados tem sido apontado como uma das razões para a VIT a abelha se correlacionar com maior incidência de RA sistémicas do que a VIT a vespa e polistes, que apresentam extratos mais diluídos, com maior quantidade de proteínas não alergénicas15,35.
Os níveis de IgE para abelha também se mostraram significativamente mais elevados no grupo dos doentes com RA sistémicas na iniciação, à semelhança do documentado por Rueff et al. 26. Não foi possível determinar o cut-off a partir do qual a IgE para abelha se correlaciona com RA sistémicas, dado o tamanho da presente amostra.
Porém não foi encontrada nenhuma correlação com as restantes IgE específicas para venenos. Este facto poderá estar relacionado com o menor número de doentes submetidos a tratamento para veneno de vespa. Também não foi encontrada nenhuma correlação com IgE total, triptase basal, testes cutâneos (TCP e ID), nomeadamente com a concentração para o qual o teste se mostrou positivo. O género feminino foi apontado como fator de risco por Mosbech et al.13, não tendo esse resultado sido corroborado no presente estudo.
Não foi também encontrada nenhuma correlação entre idade, gravidade da reação à picada de himenóptero, uso de β-bloqueador ou IECA e ocorrência ou maior gravidade de reações adversas. De ressalvar que nos dias de administração da VIT os doentes receberam sempre indicação para não realizarem a administração destes fármacos nas 24 horas anteriores.
O conhecimento de potenciais fatores de risco para RA sistémicas permite um melhor ajuste dos protocolos utilizados na VIT, de forma a garantir a sua tolerância. O objetivo é reduzir o número de eventos que possam colocar em risco a continuação do tratamento ou mesmo a vida dos doentes. O presente estudo permitiu-nos refletir se, na presença dos fatores de riscos documentados, deveria ser alterada a conduta de tratamento dos doentes, nomeadamente com introdução de pré-tratamento com omalizumab e/ou eventual utilização de um protocolo com iniciação mais lento, com menores incrementos de dose a partir do terceiro passo (à dose cumulativa de 11,1μg). Ainda assim, de uma forma geral, a iniciação do tratamento com VIT segundo protocolo UR foi bem tolerado, com 83% dos doentes a atingirem a dose de manutenção sem RA sistémicas.
CONCLUSÃO
O protocolo UR utilizado para a VIT é seguro, com a maioria das RA verificadas durante a iniciação a serem locais ou sistémicas ligeiras/moderadas. Quase metade dos doentes com RA sistémicas na iniciação também apresentaram RA na manutenção após aquisição de tolerância de dose, o que sugere que o esquema utilizado não seja a causa das RA. O pré-tratamento com omalizumab mostrou-se eficaz nos doentes com RA sistémicas grau III na iniciação, permitindo que a dose de manutenção fosse tolerada sem RA de relevo. A VIT a abelha e níveis elevados de IgE específica para abelha apresentaram-se como fatores de risco para RA sistémicas. Na presença destes fatores de risco sugere-se ponderação do risco, com eventual início de VIT com pré-tratamento com omalizumab e eventual protocolo com maior número de passos.