INTRODUÇÃO
Em doentes com patologia alérgica, como rinite, asma ou dermatite atópica, os ácaros são os aeroalergénios sensibilizantes mais frequentemente identificados. Desde há alguns anos verifica-se o aparecimento de reações alérgicas graves e potencialmente fatais após a ingestão de alimentos cozinhados
com farinha de trigo contaminada por várias espécies de ácaros1,2,3. Uma vez que, em muitos dos casos reportados, o alimento envolvido foi a panqueca, a entidade ficou conhecida como “síndrome da panqueca”3,4,5. Os primeiros casos foram descritos em 1993 e, embora considerada uma entidade rara, parece estar subdiagnosticada2,3,5. A literatura relata uma maior frequência de casos de hipersensibilidade (HS) a anti-inflamatórios não esteroides (AINEs) em doentes com esta síndrome4,6.
A maioria dos casos publicados tem origem em países como Espanha, Japão, Venezuela e EUA e os autores não encontraram na literatura nenhum caso publicado em Portugal.
DESCRIÇÃO DO CASO
Doente do género masculino, 12 anos, seguido em consulta de Imunoalergologia por rinite, suspeita de HS medicamentosa ao ibuprofeno e história de dois episódios de anafilaxia sem desencadeante identificado.
Em junho de 2018, cerca de 30 minutos após toma de Ibuprofeno e amoxicilina por infeção respiratória, o doente apresentou edema palpebral exuberante. Na altura, não recorreu ao serviço de urgência (SU) e foi medicado no domicílio com anti-histamínico (AH) durante dois dias, até resolução total das queixas. Referia ocorrência de dois episódios semelhantes no passado, após toma de AINEs não identificados.
Em julho de 2018, aproximadamente 15 minutos após o almoço (frango panado, esparguete e alface), desenvolveu reação anafilática, caracterizada por mal-estar, calor, sudorese, prurido cutâneo generalizado, sensação de aperto orofaríngeo, prurido nasal e ocular e rinorreia anterior. O doente negava toma prévia de qualquer fármaco ou realização de exercício físico no dia da reação.
Recorreu ao SU, onde foi medicado com adrenalina intramuscular (IM), corticoide e AH injetável. Teve alta 10 horas depois, assintomático.
Em agosto de 2018, imediatamente após jantar (pescada frita panada e panqueca), iniciou quadro de tosse, dor abdominal, prurido naso-ocular, rinorreia, epifora e prurido cutâneo generalizado. O doente referia que previamente à ingestão teria iniciado náuseas após a inalação dos vapores de fritura da pescada. Tomou AH no domicílio e recorreu ao SU, onde foi novamente medicado com adrenalina IM, corticoide e AH endovenosos, com resolução do quadro. Tal como no primeiro episódio, negava toma prévia de fármacos ou realização de exercício físico nesse dia.
Após os dois episódios de anafilaxia descritos, o doente referia ter voltado a ingerir todos os alimentos consumidos nos dias das reações, nomeadamente pescada, alface, frango, limão, esparguete, ovo e alimentos contendo trigo, sem qualquer reação adversa. Verificou-se, ainda, que em ambos os episódios os alimentos teriam sido confecionados em casa, tendo sido utilizada farinha de trigo da mesma marca para panar o frango, a pescada e fazer a panqueca, embora nas duas ocasiões tivesse sido utilizada farinha de pacotes diferentes.
No âmbito da investigação efetuada em consulta de Imunoalergologia, o doente realizou testes cutâneos por picada (TCP) para aeroalergénios, que foram positivos para Dermatophagoides pteronyssinus, Dermatophagoides farinae, Lepidoglyphus destructor, Tyrophagus putrescentiae, com diâmetros médios de pápula (DMP) de 8 mm, 5 mm, 12 mm e 4,5 mm, respetivamente, histamina de 5 mm e controlo negativo não reativo. Foram realizados TCP com os extratos comerciais de trigo, gliadina, ovo, gema, clara, ovalbumina, ovomucoide, LTP e profilina, que foram negativos.
Foram ainda testados por método picada-picada os seguintes alimentos em natureza: farinha de trigo do pacote utilizado na segunda reação (que o doente ainda tinha em casa), farinha de trigo da mesma marca com e sem fermento (mas com novos pacotes, distintos dos utilizados), farelo de trigo, fermento, bicarbonato e limão (polpa e casca). Estes testes foram francamente positivos (DMP de 14,5 mm) para a farinha de trigo do pacote utilizado na segunda reação anafilática e negativos para todos os outros (nomeadamente farinha de trigo da mesma marca, mas de um pacote diferente).
Relativamente à suspeita de alergia a fármacos, excluiu-se HS a amoxicilina, após realização de TCP e intradérmicos com betalactâmicos, negativos na leitura imediata e tardia (benzilpenicilina, determinantes minor (MDM) e major (PPL) da penicilina, amoxicilina/ácido clavulânico e cefuroxima até às concentrações máximas não irritativas) e, posteriormente, prova de provocação oral (PPO) com amoxicilina, que foi negativa. Quanto aos AINEs, confirmou-se a HS a ibuprofeno através de PPO positiva, com prurido ocular, hiperemia conjuntival e edema palpebral bilateral exuberante cerca de 30 minutos após dose cumulativa de 300 mg de ibuprofeno. O doente realizou ainda PPO com paracetamol (1000 mg) e nimesulide (100 mg) como fármacos alternativos, que foram negativas.
Atendendo ao quadro descrito, nomeadamente sintomas alérgicos graves após ingestão de alimentos que continham farinha de trigo e, inclusive, após inalação de vapores, como já descrito noutros casos na literatura2, com tolerância posterior a trigo; história prévia de rinite alérgica com sensibilização a ácaros; testes cutâneos positivos para a farinha de trigo consumida antes da segunda reação anafilática e negativos para farinhas semelhantes (mesma marca, pacote novo) e HS a AINEs (ibuprofeno), assumiu-se o diagnóstico de “síndrome da panqueca”9.
Foram dadas indicações para evicção de alimentos confecionados com farinhas armazenadas sem os cuidados adequados (recipientes fechados no frigorífico), bem como evicção de ibuprofeno, tendo como alternativas o paracetamol e o nimesulide.
Foi prescrito autoinjetor de adrenalina, corticoide oral e anti-histamínico como medicação de emergência na eventualidade de nova reação. Está agendada PPO com AAS para diagnóstico de HS específica a ibuprofeno vs de classe a AINEs inibidores da COX18.
DISCUSSÃO/CONCLUSÃO
Apesar de pouco frequentes, as reações alérgicas a farinhas contaminadas por ácaros podem ser muito graves e, por vezes, a investigação de alergia alimentar pode não ser suficiente, levando ao diagnóstico de anafilaxia idiopática em detrimento de “síndrome da panqueca”. De acordo com a literatura, os alergénios responsáveis por esta síndrome são termorresistentes1,9,10, o que justifica as reações com alimentos submetidos a temperaturas elevadas, como no caso do doente descrito. Como tal, a única profilaxia possível para estas reações é o armazenamento das farinhas a baixas temperaturas, que favorece o estado protoninfa, em que os ácaros não se podem reproduzir4,9.
Relativamente à patogénese da associação entre a atopia e a HS aos AINEs pode ser explicada por fatores genéticos, linkage entre os genes da atopia e o da enzima LTC4 sintetase e a própria ação dos ácaros através de mecanismos imunológicos (dependentes da IgE) e não imunológicos4,6,7,9.
A elevada prevalência de casos justificou inclusivamente a proposta de uma nova tríade em 1997 por Sánchez-Borges et al. de hipersensibilidade a AINEs, rinite alérgica e reações graves a alimentos contaminados por ácaros4.
Assim sendo, pretendemos alertar para esta entidade em doentes com reações alérgicas após ingestão de alimentos com farinhas, em especial para casos com antecedentes de patologia alérgica respiratória e hipersensibilidade a AINEs.11