A enfermagem enquanto profissão desempenha um papel fundamental na manutenção e proteção da saúde global. Com uma força de trabalho superior a 28 milhões, a enfermagem representa de longe o maior grupo de profissionais de saúde (World Health Organization [ WHO], 2020). A sua importância tem sido incontestável durante a pandemia da COVID-19, materializando-se no forte contributo dado pelos enfermeiros a nível global enquanto prestadores de cuidados de saúde, educadores, investigadores e defensores dos utentes (Smith et al., 2020). Durante a pandemia, foi pedido aos enfermeiros que fornecessem aos utentes de uma forma compreensível informações precisas sobre saúde. Apesar da crescente consciencialização da importância de fornecer informação sobre saúde ao longo de todo o continuum de cuidados, é surpreendente descobrir que pouca atenção tem sido dada ao conceito de literacia em saúde na literatura de enfermagem. Nos últimos anos, a literacia em saúde alargou o seu foco original de competências de literacia elementar passando a incluir também a capacidade de analisar criticamente e usar informação sobre saúde, proporcionando assim um melhor envolvimento com os sistemas de saúde. Do ponto de vista do prestador de cuidados, a literacia em saúde pode ser definida como estando “ligada à literacia e envolvendo os conhecimentos, motivação e competências das pessoas para aceder, compreender, avaliar e usar a informação sobre saúde de modo a fazer julgamentos e tomar decisões na vida quotidiana relativamente aos cuidados de saúde, prevenção de doenças e promoção da saúde para manter ou melhorar a qualidade de vida ao longo da mesma” (Sørensen et al., 2012, p. 3). Neste sentido, a literacia em saúde está relacionada com a capacidade da pessoa de aceder, compreender, avaliar e depois usar informação sobre saúde (Sørensen et al., 2015). Quando lidam com questões de literacia em saúde, é igualmente importante para os enfermeiros terem a consciência de que ninguém é plenamente instruído em matéria de saúde. Todos necessitam de alguma ajuda na altura de enfrentar situações complexas relacionadas com a saúde, como demonstrado pela pandemia da COVID-19 (Jackson et al., 2020). Assim, a literacia adequada em saúde não se limita apenas à capacidade de as pessoas lerem e compreenderem informações sobre saúde, mas inclui, fundamentalmente, a capacidade de assumirem mais responsabilidades pela sua saúde.
Este editorial, através da análise das evidências existentes, procura destacar a importância da literacia em saúde na enfermagem, fazendo referência específica à pandemia global, e sublinhando a importância da literacia em saúde no ensino da enfermagem e a possível ligação que pode existir entre literacia em saúde, resiliência e empoderamento.
A prevalência de níveis limitados de literacia em saúde na população mundial em geral pode estar a ser muito subestimada. A WHO concluiu que os níveis de literacia em saúde são geralmente baixos tanto em países desenvolvidos como em países em desenvolvimento (WHO, 2016). Sørensen et al. (2015) consideram que a literacia em saúde de até metade de todos os adultos europeus é de alguma forma limitada. No entanto, há evidência de que os enfermeiros geralmente sobrevalorizam o nível de literacia em saúde dos utentes. Assim, independentemente da localização geográfica ou nível de cultura, pode assumir-se que as pessoas podem ter problemas em compreender a informação sobre saúde que lhes é transmitida pelos enfermeiros. Desta forma, eventuais problemas de literacia em saúde poderão surgir sempre que a informação sobre saúde for difícil de compreender.
Considerando que os eventuais benefícios de uma maior literacia em saúde são muitos, os enfermeiros ocupam uma posição privilegiada para ajudar e apoiar aqueles com literacia em saúde limitada, incluindo a população idosa. (Smith et al., 2021a). É importante salientar que a prestação de apoio à literacia em saúde isento de pudor por parte dos enfermeiros tem estado associada a maiores níveis de empoderamento, envolvimento, e ativação, e a melhores resultados de saúde (Loan et al., 2018). Independentemente da especialidade de enfermagem, a literacia em saúde é uma competência fundamental que pode melhorar a comunicação e facilitar a prestação de cuidados centrados na pessoa de forma eficiente. A literacia em saúde é um conceito extremamente complexo. Os pacientes com níveis mais baixos de literacia em saúde são associados a níveis de saúde e resultados de saúde subótimos, no que diz respeito ao cumprimento de regimes de tratamento, adesão à medicação e capacidade de autogestão (Smith et al., 2021b). Baixa literacia em saúde pode estar associada a um estado de saúde mais fraco e uma deterioração da qualidade de vida. A WHO defende que a literacia em saúde é um melhor indicador de saúde do que muitos outros determinantes sociais de saúde, incluindo a etnia, a educação e o estatuto laboral (Kickbusch et al., 2013). Com efeito, se não for já um dos mais decisivos indicadores de saúde, a literacia em saúde é o mais influente determinante social de saúde (Ho & Smith 2020).
A importância global da literacia em saúde ficou exemplificada pela pandemia da COVID-19 (Paakkari & Okan, 2020). A rápida chegada da COVID-19 exigiu que as pessoas se adaptassem de forma igualmente rápida de modo a adquirirem e usarem informação sobre saúde, levando a cabo muitas vezes adaptações drásticas ao estilo de vida e aos comportamentos relacionados com saúde. Não obstante, as tremendas consequências humanitárias e económicas da COVID-19, os desafios com o rigor e sobrecarga de informação têm sido constantes. O surto de COVID-19 ilustra o cuidado que deve ser tomado em relação à fiabilidade e segurança da informação sobre saúde. Sentell et al. (2020) defendem que a pandemia constituiu um teste fundamental à literacia em saúde, dando a oportunidade de realçar a sua importância em relação à saúde e bem-estar da população. Globalmente, os governos e as agências de saúde parecem estar cada vez mais conscientes de que a melhoria da literacia em saúde na população pode levar a uma diminuição das desigualdades em saúde e à melhoria dos resultados de saúde.
Independentemente do ambiente em que os cuidados são prestados, os enfermeiros são importantes agentes de educação e informação sobre saúde dos seus utentes. Daí, que seja de certo modo surpreendente que a atenção global prestada à educação dos enfermeiros em matéria de literacia em saúde, seja reduzida, ainda que sejam estes a assumir a maior parte da responsabilidade pela educação sobre saúde dos utentes.
Há mais de uma década, Scheckel et al. (2010) destacaram a importância da educação sobre literacia em saúde, defendendo abordagens mais inovadoras para o ensino da literacia em saúde aos profissionais de enfermagem. Embora a melhoria da educação sobre a prática da literacia em saúde possa contribuir para expandir as competências e conhecimentos dos estudantes de enfermagem, poucas instituições educativas de enfermagem oferecem educação sobre literacia em saúde. A preparação dos estudantes de enfermagem em matéria de literacia em saúde parece estar negligenciada em muitos currículos de enfermagem. Uma possível solução para esta situação e um bom ponto de partida poderá ser a inclusão de questões relacionadas com literacia em saúde nas diferentes formas de avaliação dos cursos de enfermagem. Os estudantes de enfermagem devem também ser encorajados a fazer perguntas abertas e a utilizar métodos de teach-back (“ensinar de volta”) como formas de fornecer informação sobre saúde aos utentes. O recurso à abordagem teach-back ajuda o enfermeiro a confirmar que forneceu informação de forma compreensível, dado que a compreensão do utente é confirmada assim que este consegue repetir nas suas próprias palavras a informação que lhe foi transmitida. A abordagem teach-back tem a vantagem de permitir aos enfermeiros confirmar a compreensão do utente e corrigir qualquer informação errada.
Não obstante, o desenvolvimento nos últimos anos de várias iniciativas promissoras de literacia em saúde no âmbito da enfermagem, estas parecem ter sido subutilizadas por esta categoria profissional (Loan et al., 2018). A educação de literacia em saúde para todos os estudantes de enfermagem, com base em evidências comprovadas, pode ser o melhor caminho para melhorar a situação, atenuando a generalização dos problemas de literacia. Numa perspetiva de educação contínua pós-graduação, Parnell e Agris (2020) argumentam que o desenvolvimento de uma educação de literacia em saúde baseada em competências estratégicas pode melhorar as competências profissionais dos enfermeiros em matéria de literacia em saúde. Estas iniciativas educativas são necessárias com urgência tendo em conta a rápida mudança e a natureza dinâmica da literacia em saúde.
A nível mundial, os enfermeiros devem não só estar conscientes dos possíveis problemas associados à iliteracia em saúde, mas devem também conseguir procurar ativamente soluções para a situação. A abordagem universal de medidas de salvaguarda da literacia em saúde, ou seja, a assunção de que todos os utentes podem ter alguma dificuldade em compreender informação sobre saúde, é defendida pelos enfermeiros. Ao contrário de outras características sociodemográficas que os utentes possam ter, como a idade e etnia, que são fixas, há evidências satisfatórias que sugerem que os níveis de literacia em saúde podem ser modificados e melhorados (Nutbeam, 2000). Berkman (2011) demonstrou que as intervenções de literacia em saúde podem melhorar a compreensão da informação sobre saúde por parte dos utentes. Até à data, as intervenções de literacia em saúde têm incidido principalmente na melhoria das competências de literacia em saúde através de uma melhor comunicação entre os profissionais de saúde e os utentes, simplificando materiais educativos sobre saúde e implementando intervenções de eHealth. Para aumentar a eficácia das intervenções de enfermagem em literacia em saúde é importante que estas sejam submetidas a testes adequados, assentem numa forte base teórica e coloquem ênfase no desenvolvimento de competências.
Com as intervenções de literacia em saúde surge a necessidade de avaliação das mesmas. É necessário o desenvolvimento de ferramentas de medição de literacia em saúde, ainda que se reconheça que este procedimento é complexo. Na sua avaliação da literacia em saúde de idosos, Eronen et al. (2019) sublinham os muitos desafios que os investigadores de enfermagem podem ter de enfrentar ao medir este determinante crítico de saúde. Inicialmente, os investigadores aplicavam medidas objetivas, como a REALM, no âmbito da investigação em idosos (Kobayashi et al., 2016). Posteriormente, começaram a surgir instrumentos de medição subjetiva e abrangente. Uma delas, a HLS-EU, originalmente desenvolvida e validada na Europa, é agora amplamente utilizada em todo o mundo. A HLS-EU fornece uma escala centrada em competências específicas de tarefas, tais como a prevenção de doenças e a promoção da saúde.
A WHO defende o papel fundamental que a literacia em saúde desempenha no desenvolvimento do empoderamento e da resiliência (Kickbusch et al., 2013).
Neste sentido, o empoderamento é um processo através do qual as pessoas ganham mais controlo sobre as suas vidas, a sua saúde, e os seus determinantes. Através do empoderamento, os programas de literacia em saúde contribuem para democratizar o sistema de saúde e para alcançar um compromisso mais forte com a saúde e o bem-estar das comunidades e da sociedade em geral. A resiliência pode ser vista como uma forma de adaptação, recuperação e ressurgimento perante a adversidade. Dentro de ambas as perspetivas, a literacia em saúde deve ser encarada como uma mais-valia para os indivíduos e comunidades. Assim, qualquer investimento feito para reforçar a literacia em saúde pode produzir um retorno substancial na melhoria da saúde e bem-estar (Abel & Frohlich, 2021).
Associada aos recursos sociais apropriados, a literacia em saúde pode tornar-se um ativo valioso no processo de tornar as pessoas mais empoderadas e resilientes.
Muitas vezes negligenciada, a literacia em saúde é um conceito fundamental que pode melhorar a experiência do utente. Este editorial pretende chamar à atenção para alguns aspetos atuais da literacia em saúde em enfermagem. Globalmente, a literacia em saúde tornou-se um dos mais importantes determinantes da saúde, tem potencial para melhorar os resultados de saúde e pode revelar-se essencial para o desenvolvimento da resiliência e do empoderamento da população em geral. A COVID-19 sublinhou a importância da literacia em saúde em todo o mundo, sendo merecida e urgentemente necessária uma maior atenção à gestão, investigação e educação deste importante determinante social da saúde em enfermagem. De modo a assegurar a prestação eficaz de uma prática de literacia em saúde baseada em evidências, é essencial uma investigação de alta qualidade, e os enfermeiros ocupam uma posição privilegiada para conduzirem esta investigação.