Escrever sobre Maria de Sousa será sempre uma tarefa ingrata, qualquer texto ficará provavelmente aquém do que teria merecido.
Aqui, para limitar esse risco, socorrer-me-ei com frequência das suas próprias palavras. Numa homenagem a Maria de Sousa, em fevereiro deste ano, o neurocientista Rui Costa, um dos seus mais fiéis amigos e discípulos, listou algumas das palavras que caracterizavam o seu discurso: coragem, curiosidade, liberdade, generosidade, comunidade, visão. Eu acrescentaria espanto, palavra que usava com frequência para criticar as múltiplas incoerências da nossa política científica, com que se debateu até quase o seu último dia. Foi esta a Maria de Sousa que conheci, cientista, escritora, poetisa, mulher de visão e coragem, que contribuiu como poucos para mudar a história da política de Ciência em Portugal. É sobre esta Maria de Sousa que quero escrever.
Nas suas conversas com Anabela Mota Ribeiro afirma: “Acho que nunca encolhi na vida”. É verdade, foi sempre mais longe. É interminável a lista dos que, como eu, por sua causa foram mais longe também. Referindo-se aos alunos de doutoramento ou mestrado, de quem com frequência se tornava mais tarde grande amiga, dizia: “Trato-os mal no sentido em que não os protejo, para serem eles próprios. E depois vêm a apreciar isso”. Não fui sua aluna, era doutoranda na porta ao lado, o que me valeu nessa altura um ou outro dos seus famosos “raspanetes”. Os que souberam percebê-la e merecer o seu respeito foram com certeza mais longe.
Separou sempre o eu biográfico do eu curricular. Estes dois “eus” dominaram fases diferentes do seu percurso. Em Lisboa, nos anos iniciais do seu percurso académico, foi o eu biográfico que a dividiu entre o piano e o curso de Medicina. No início dos anos 60, quando partiu para Londres, foi dominada pelo eu curricular. Depois de um breve regresso a Lisboa, que classificou como “tempo escuro num dia de sol”, partiu em 1967 para Glasgow, onde o eu biográfico foi feliz, e o curricular prolífero.
Quando se muda para Nova Iorque, é o eu curricular que volta a ser preponderante: “não tinha tempo para ser feliz”. É nesta altura, em 1975, que June Goodfield a escolhe como protagonista do seu An Imagined World: A Story of Scientific Discovery. Não casou e não teve filhos por opção. Viu demasiadas mulheres prometedoras deixarem de existir dominadas pelo eu biográfico. Não correria esse risco.
Regressa a Portugal em 1985, como Professora Catedrática no Instituto de Ciências Biomédicas de Abel Salazar (ICBAS), onde se dedica ao estudo da hemocromatose e onde inicia uma nova escola de pós-graduação que culmina com a criação do programa doutoral em Áreas da Biologia Aplicada e Básica que ficará conhecido como GABBA. Este programa, de sucesso indiscutível, veio mostrar como é possível ir muito mais longe quando expomos os jovens investigadores ao melhor de cada área e os deixamos escolher livremente o seu caminho. Tristemente, numa academia ferida pela autocracia e que tem medo da palavra liberdade, o programa não lhe sobreviveu. Resta-nos esperar que a memória desta “escola sem paredes” sobreviva em cada um dos seus antigos alunos, e que estes a disseminem dentro e fora das fronteiras das nossas escolas.
É também neste regresso a Portugal que se torna próxima de Mariano Gago, participando ativamente na emergência da ciência moderna em Portugal. É aliás esse seu papel no redesenhar de uma política científica que irá mudar o paradigma cientifico português, que dá titulo ao discurso que faz em 2017 quando recebe o Prémio Universidade de Lisboa: “Testemunho de uma testemunha”. Inspirada pela tese de doutoramento da investigadora Ângela Salgueiro, evoca a coragem de vozes como as de Bernardino Machado, Abel Salazar, Augusto Celestino da Costa, Pires de Lima, Simões Raposo e António Sérgio, que valorizaram a Ciência integrada na Universidade, aspirando construir um país respeitado pela prática da Ciência e pela projeção internacional dos seus cientistas, mas que, por constrangimentos políticos, financeiros e culturais, não conseguiram a desejada revolução. No discurso, contrasta esta primeiras vozes corajosas com a timidez das vozes atuais, que, trinta anos volvidos sobre as primeiras bolsas de doutoramento, quinze anos após os primeiros investigadores FCT (Programa Ciência 2007), e apesar da explosão de números que estes programas impulsionaram, não se revoltam face à discriminação de que são atualmente alvo os investigadores no contexto académico. Sobre estes, diz-nos: “Qualquer português medianamente inteligente terá vergonha se de facto perdermos esse grupo”, ao mesmo tempo que recorda o oportuno título de um livro de António Barreto: Tempo de escolha.
É também neste discurso que afirma que “a palavra precário entrou recentemente no vocabulário do mundo científico português. Mas nos anos 60 do século passado, anos em que a velha senhora que eu sou hoje saiu do país, a entidade mais precária na sociedade portuguesa, depois dos muito pobres, era a mulher”. A precariedade é de facto uma das mais tristes faces da Ciência em Portugal, mas números recentes indicam que ela atinge com maior intensidade as mulheres investigadoras. Maria de Sousa queria mais mulheres à frente das nossas instituições de ensino superior e investigação. Os seus últimos anos foram marcados por múltiplas iniciativas que, no seu conjunto, muito contribuíram para dar visibilidade ao problema da precariedade na investigação.
Numa carta enviada ao Primeiro-Ministro, Governo e grupos parlamentares, afirmava: “A prática da investigação científica teve uma expansão notável em Portugal nos últimos 30 anos... [...] Durante esses mesmos 30 anos, a Universidade envelheceu”. Defendia como essencial que, tal como os Centros de Investigação, as Universidades fossem periodicamente avaliadas através de um processo externo e verdadeiramente independente. Sem isso, temia que a Universidade estivesse condenada a uma assimetria perversa, obsoleta, nepotista e endogâmica. (Elogiava sempre as exceções existentes.)
Considerava que, em tempos de Paz, a Ciência deveria constituir-se como um desígnio nacional. “Espera-se da Ciência que se dedique à prática e defesa de causas nobres, individuais e coletivas” - individuais no direito à liberdade, à criatividade, ao conhecimento, no direito a perguntar e no direito a duvidar; coletivas na proteção da condição humana, das outras espécies, do ambiente, sem excluir, dizia, lembrando Francisco de Assis e a NASA (com aquela gargalhada que eram tão sua), “a Lua, o Sol, a água, as estrelas e outras galáxias, com o desenvolvimento de instrumentos que se estendem dos genes, às moléculas, à proteómica, e aos mais poderosos telescópios”.
Queria uma Fundação para a Ciência e a Tecnologia independente e virada para os cientistas, deparava-se com uma Ciência refém da agenda política. Considerava os resultados soberanos; não importava quão audaciosa e atraente pudesse ser a hipótese ou os objetivos, os resultados eram sempre soberanos. E os resultados soberanos da política científica dos últimos anos, que diariamente lhe chegavam, eram penosamente diferentes daquilo que tinha ambicionado para Portugal. Numa reflexão que não chegou nunca a ser publicada dizia: “Termino repetindo que este texto é uma reflexão e não um protesto. Poderia ser isso e muito mais, mas em verdade é a reflexão de uma adepta emérita que partilhou há anos a luminosidade do esperado. Mal preparada para a escuridão do absurdo.”
Nos últimos anos vivia sobretudo em Lisboa. As suas passagens pelas “Virtudes” do Porto foram-se tornando menos frequentes, limitada pelas múltiplas sessões de diálise a que resistia com a mesma coragem com que se entregava a tudo. O eu biográfico e o eu curricular estavam reconciliados.
A nossa correspondência tornou-se quase diária. Escrevia ao romper do dia, partilhando vitórias e desalentos, discursos, cartas, poemas. Deles me socorri para escrever este texto. Um ano passado sobre a sua morte, a sua ausência é ainda demasiado presente. Para Maria de Sousa, escrever era essencial. A memória é finita, a escrita não. Escrevia para reter o momento, para “estancar o rio que tudo arrastaria”. Com frequência abro alguns dos seus e-mails e leio ao acaso alguns desses momentos. A 25 de março estava feliz, preparava a publicação de um novo livro de poemas: “Teresa, pode imaginar como me sinto? Que bom este partilhar de confidências!”. Partiu na madrugada de 14 de abril.