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Jornal Português de Gastrenterologia

versão impressa ISSN 0872-8178

J Port Gastrenterol. v.17 n.5 Lisboa set. 2010

 

Volvo Gástrico – Caso Clínico

 

Ana Bento1, Hamilton Baptista1, Carlos Pinheiro1, António Pinho1, Sandra Lopes2, Fernando Martinho1

1Serviço de Cirurgia II, 2Serviço de Gastrenterologia, Hospitais da Universidade de Coimbra

Correspondência

 

Resumo

O Volvo Gástrico é uma causa rara de oclusão gástrica. Pode apresentar-se de uma forma aguda ou crónica. No presente caso clínico apresenta-se uma doente de 80 anos com uma forma crónica e episódios de agudização da doença, caracterizada por epigastralgias e vómitos seguidos de esforços inúteis para vomitar. É nesta fase que o estudo contrastado gastrintestinal confirma o diagnóstico de volvo gástrico. Os exames complementares de diagnóstico realizados na fase assintomática foram normais. A doente foi tratada cirurgicamente, tendo sido realizada gastrectomia parcial. O diagnóstico desta entidade é muitas vezes tardio devido à falta de sintomatologia específica. É importante reconhecer rapidamente esta patologia de forma a proporcionar um tratamento cirúrgico urgente.

 

Gastric Volvulus – A case Report

Abstract

Gastric volvulus is an uncommon cause of gastric occlusion/obstruction. It may present either in an acute or in a chronic form. In our case, an 80 years-old female presented chronic complaints, punctuated by a series of acute episodes of upper abdominal pain and vomiting, followed by retching without vomit. At this point, an upper GI tract follow-through confirmed the diagnosis of gastric volvulus. All exams performed during previous asymptomatic periods had been normal. Surgical treatment consisted of parcial gastrectomy. The lack of specific symptoms delays diagnosis in many of these patients. However, appropriate treatment demands prompt diagnosis.

 

INTRODUÇÃO

O Volvo Gástrico (VG) define-se como uma rotação do estômago superior a 180º, que condiciona uma oclusão intestinal alta.1-4 Esta entidade é relativamente rara, e cursa sintomatologia inespecífica, o que leva ao diagnóstico tardio.1 Pode apresentar-se de uma forma aguda ou crónica. A forma aguda é menos frequente que a crónica, podendo levar a isquémia gástrica, necrose e perfuração, neste caso trata-se de uma emergência cirúrgica e pode decorrer com uma mortalidade de 30% a 50%.4 Na forma crónica o diagnóstico é difícil e os exames complementares podem ser normais nas fases assintomáticas da doença.4

Os autores apresentam um caso clínico de um VG crónico com episódios de agudização intermitente. O diagnóstico fez-se por trânsito gastroduodenal.

 

CASO CLÍNICO

Doente do sexo feminino, de 80 anos, admitida no Serviço de Urgência por dor epigástrica intensa, de início súbito, com 12 horas de evolução e associada a vómitos. Dois meses antes tinha tido internamento no Serviço de Gastrenterologia com clínica semelhante. Havia ainda a referir clínica de doença de refluxo gastroesofágico e saciedade precoce.

Nesse internamento fez ecografia abdominal e tomografia axial computorizada (TC) do abdómen, que não revelaram alterações e endoscopia digestiva alta que diagnosticou gastrite com áreas de eritema do antro. Como patologia associada apresentava hipertensão arterial controlada medicamente.

Como patologia associada apresentava hipertensão controlada medicamente.

O exame objectivo da doente revelou um abdómen doloroso à palpação epigástrica, sem defesa. Analiticamente apresentava hemoglobina de 13,5 g/dL (valores referência 11,7 – 16 g/dL), leucócitos 16,7x109 /L (4,3x109 – 11 x109/L), amilase 113 U/L (22 - 80 U/L), função renal e hepática normais. A radiografia do tórax evidenciou uma elevação da hemicúpula esquerda e a radiografia do abdómen em pé, mostrou imagem gasosa gástrica ovalada adivinhando-se uma posição superior do piloro (Fig. 1).

 

Fig. 1. Radiografia simples do abdómen em pé com identificação de imagem gástrica gasosa esférica, correspondente ao volvo gástrico.

 

Foi colocada sonda nasogástrica, tendo havido drenagem imediata de 2000 cc de conteúdo gástrico e alívio completo da sintomatologia.

A doente foi internada para estudo e vigilância clínica. Foi submetida a endoscopia digestiva alta, identificou-se esofagite grau C (classificação de Los Angeles) e uma marcada deformação da arquitectura gástrica com dificuldade em observar o piloro. Visualizava-se abundante quantidade de conteúdo de estase e o fundo gástrico tinha várias ulcerações. Realizou trânsito gastroduodenal com gastrografina, que apresentou estômago invertido, com fundo localizado em posição inferior ao antro e estiramento do arco duodenal, relacionado com posicionamento anómalo do piloro (Fig. 2).

 

Fig. 2. Trânsito gastroduodenal com gastrografina. A – Antro; F – Fundo; D – Duodeno; P – Piloro.

 

A doente foi submetida a laparotomia exploradora, na qual se Identificou volumoso estômago, com volvo mesenteroaxial e grande laxidão dos ligamentos peritoneais (Fig. 3 e 4). Foi realizada gastrectomia Sub-Total com montagem em Y de Roux tendo tido alta ao 9º dia de pós-operatório sem complicações. Efectuou trânsito gastroduodenal dois meses após a cirurgia, que revelou boa permeabilidade da anastomose e ausência de refluxo gastroesofágico. No follow-up de 1 ano a doente encontrava-se assintomática.

 

Fig. 3. Imagem da cirurgia de volvo mesenteroaxial. Assinalado eixo de rotação.

 

Fig. 4. Imagem da cirurgia. Volumoso estômago com laxidão dos ligamentos peritoneais de fixação gástrica. P – Piloro.

 

DISCUSSÃO

A entidade Volvo Gástrico foi descrita pela primeira vez por Berti em 1866 numa autópsia de uma mulher de 60 anos.1-7

Trata-se de uma completa obstrução do lúmen gástrico por rotação do estômago.7 A incidência de casos descritos tem aumentado nos últimos anos, talvez devido ao maior conhecimento desta patologia.2 Pode ocorrer em qualquer idade, com frequência igual em homens e mulheres, sendo rara ocorrer antes dos 50 anos.2,5-6

O estômago é um órgão que está fixado pelo cárdia e por vários ligamentos peritoneais (gastroduodenal, gastrohepático, gastroeslénico, gastrocólico) e vasos curtos, que em condições normais não permitem a sua mobilização.1-2,4,7 Em 25% dos doentes a rotação gástrica é primária ou idiopática e ocorre porque existe um alongamento destes ligamentos.2,4 Em 75 % dos doentes o VG está associado a um factor patológico, nomeadamente: hérnia do hiato; hérnia diafragmática resultante de traumatismo, eventração do hemidiafragma esquerdo por lesão do nervo frénico; obstrução pilórica com dilatação crónica do estômago, cirurgia gastresofágica prévia e bridas.2,4

A classificação mais frequentemente usada foi proposta por Singleton que descreve três tipos de VG.1 Esta distingue os tipos de acordo com o eixo de rotação: Tipo 1 ou organoaxial - é o mais comum (59%) e a rotação ocorre sobre uma linha traçada desde o piloro até à união esófago-gástrica (Fig. 5); Tipo 2 ou mesenteroaxial – ocorre em cerca de 29% dos doentes e a rotação verifica-se sobre um eixo que liga a grande curvatura e o hilo hepático (Fig. 5); Tipo 3 – inclui uma forma muito rara, cerca de 3%, que combina os tipos 1 e 2 e as formas não enquadráveis nos tipos anteriores, em cerca de 10% dos doentes.1-2,6,8 No caso clínico descrito, a doente apresentava um VG tipo 2.

 

Fig. 5. Eixo de rotação no Volvo Gástrico tipo Organoaxial (A) e tipo Mesenteroaxial (B). P – Piloro; C – Cárdia; F – Fundo gástrico.

 

Os exames complementares realizados nestes doentes são importantes para o diagnóstico. No controlo analítico, pode existir uma hiperamilasémia e elevação da desidrogenase lática e da fosfatase alcalina.5 A radiografia simples do abdómen em pé mostra uma imagem esférica do estômago no VG mesenteroaxial (Fig. 1), com uma posição do fundo superior à do antro. No VG organoaxial o estômago apresenta um nível no ponto de rotação.4 Os estudos contrastados gastrointestinais (com gastrografina ou bário) têm elevada sensibilidade e especificidade, permitem ver o nível de obstrução e o tipo de rotação (Fig. 2).4 A endoscopia digestiva alta mostra uma deformação gástrica com difícil acesso ao piloro e, na fase mais avançada da doença, ulcerações da mucosa. A TC tem importante valor diagnóstico no VG. No caso clínico apresentado foi realizada numa fase assintomática da doença, motivo pelo qual não fez o diagnóstico. Numa fase aguda a TC permite um rápido diagnóstico, detecta a presença de pneumatose ou pneumoperitoneu em caso de necrose e perfuração, detecta factores predisponentes ao VG e exclui outras causas de isquémia gástrica.4

Apesar de o exame de eleição ser o trânsito gastroduodenal a TC tem vindo a ser preferida por muitos autores, devido ao fácil acesso e maior informação fornecida pelo exame.

A colocação de uma sonda nasogástrica tem como função a descompressão gástrica. A sua introdução muitas vezes resolve o volvo gástrico e o doente fica assintomático. A descompressão nasogástrica só é possível no VG mesenterioaxial porque o cárdia está permeável.4 Quando não se consegue introduzir a sonda nasogástrica está indicada cirurgia de urgência.4 As tentativas  forçadas de colocação de sonda nasogástrica podem levarà perfuração gástrica, especialmente em crianças.1

A “desrotação” endoscópica tem resultados satisfatórios mas é uma solução temporária.6

O tratamento do VG é cirúrgico. Várias técnicas foram descritas por Tanner em 1968, tais como gastrojejunostomia, gastrogastrostomia fundo-antro (operação de Opolzer), gastropexia simples ou gastropexia com divisão do epiplon (operação de Tanner).6 Actualmente o tratamento consiste na redução do VG, reparação de factores predisponentes se existirem e gastropexia anterior, com fixação da grande curvatura gástrica à parede anterior do abdomen.1,4,7 A gastrectomia total ou subtotal realiza-se quando existem áreas gástricas não viáveis e em situações especificas. A abordagem laparoscópica é cada vez mais uma opção por alguns autores.5-6

Na nossa doente optou-se por gastrectomia subtotal devido ao volumoso estômago e hiperlaxidão ligamentar. Nos doentes com mau estado geral ou idosos pode realizar-se uma gastrostomia percutânea endoscópica, que fixa o estômago à parede abdominal e dificulta a recidiva de VG. Existem contudo alguns casos descritos de rotação gástrica em torno da PEG1.4-6

 

CONCLUSÃO

O VG é uma entidade rara, muitas vezes não reconhecida, pode ser uma emergência cirúrgica.1,4 Os exames complementares de diagnóstico podem ser normais nas fases assintomáticas da doença.4 Deve-se suspeitar de um VG agudo em doentes com dor epigástrica intensa, vómitos seguidos de esforços inúteis para vomitar e dificuldade na introdução da sonda nasogástrica.1

A cirurgia de urgência nos casos agudos é fundamental e o seu atraso aumenta a mortalidade. O exame de eleição é o trânsito gastroduodenal mas a TC é uma opção cada vez mais utilizada. O tratamento do VG é cirúrgico. Deve-se realizar uma gastropexia anterior e se necessário gastrectomia total ou subtotal.

 

REFERÊNCIAS

1. Sevcik WE, Steiner IP. Acute gastric volvulus: case report and review of the literature. CJEM-JCMU 1999;1:200-203.

2. Michael J, Zinner, Seymour I, Schwartz, Harold Ellis. Operaciones Abdominales. Maingot. McGraw-Hill 2007.853-859.

3. Al-Salem AH. Acute and chronic gastric volvulus in infants and children: who should be treated surgically? Pediatr Surg Int 2007;23:1095–1099.

4. Woon CY, Chung AY, Low AS, et al. Delayed diagnosis of intermittent mesenteroaxial volvulus of the stomach by computed tomography: a case report. J Med Case Reports 2008;2:343.

5. Morelli U, Bravetti M, Ronca P, et al. Laparoscopic anterior gastropexy for chronic recurrent gastric volvulus: a case report. J Med Case Reports 2008;2:244.

6. Palanivelu C, Rangarajan M, Shetty AR, et al. Laparoscopic suture gastropexy for gastric volvulus: a report of 14 cases. Surg Endosc 2007;21:863– 866.

7. Kulkarni K, Nagler J. Emergency endoscopic reduction of a gastric volvulus. Endoscopy 2007;39:E173.        [ Links ]

8. Coulier B, Broze B. Gastric volvulus through a Morgagni hernia: multidetector computed tomography diagnosis. Emerg Radiol 2008;15:197-201.

 

Correspondência: Ana Bento; Av. João de Deus Ramos nº 165 1º A, 3030-328 Coimbra; E-mail: bento.md@gmail.com; Tlm: +351 966 343 661.

 

Recebido para publicação: 16/07/2009 e Aceite para publicação: 28/12/2009.