INTRODUÇÃO
São muitas e diversificadas as mudanças que os media sofreram nas últimas décadas. A chegada das primeiras mulheres à profissão em Portugal, ainda no final dos anos 1960, abriu caminho para uma progressiva reconfiguração do género nas redações. As décadas seguintes foram marcadas por esse reajustamento da paisagem humana e também pelo alargamento digital, com impactos nas rotinas da redação (Crespo et al., 2017), mas também no modelo de financiamento do negócio dos media. Dominado por uma lógica neoliberal, este modelo caracteriza-se, entre outros fatores, pelo progressivo aumento da precariedade e por uma tendência para a juvenilização, que, sendo transversal ao grupo profissional (Rebelo et al., 2014), tem um impacto particular nas carreiras das mulheres.
As redações transformaram-se em lugares de permanente tensão e negociação interpessoal (Goyanes & Cañedo, 2021). Se, por um lado, os valores estruturantes da cultura profissional, como a demanda de objetividade (Berkowitz, 2009) ou as rotinas, continuam a ser essenciais nesta tentativa de reequilíbrio, por outro lado, contribuem para a manutenção de uma ordem que aparenta ser inabalavelmente masculina, com impactos a vários níveis: i) nas posições de poder e cargos de liderança (De Vuyst & Raeymaeckers, 2019); ii) na estruturação e divisão do trabalho, muitas vezes marcada por uma segregação horizontal que resulta na divisão hard news vs. soft news (North, 2016b; Schoch, 2022); iii) na agenda mediática e no tratamento noticioso, onde se incluem não só as (mais evidentes) questões da linguagem, como também os impactos decorrentes dos enviesamentos de género (Brooks & Hayes, 2019; Correll, 2017; De Vuyst & Raeymaeckers, 2019; Gallagher, 2001; Shor et al., 2019).
Tendo em conta a importância simbólica do jornalismo - e aqui referimo-nos não apenas ao/à jornalista como mediador (Berkowitz, 2009), mas também ao papel transformador do jornalismo, naquilo que Djerf-Pierre definiu como motor diferenciador (2011) -, compreende-se a pertinência do contributo jornalístico na construção de novas mentalidades.
Este ensaio começa assim por analisar a tendência para a feminização da profissão, identificando as principais alterações decorrentes da maior presença e participação feminina nos media, mas também as limitações experienciadas pelas mulheres, analisadas à luz da teoria da massa crítica e da teoria do standpoint feminista (Assmann & Eckert, 2023; Steiner, 2012). De seguida, investiga os contornos da masculinidade hegemónica na cultura das redações (Connell, 1995), percebendo de que forma persistem e operam enquanto regimes de desigualdade (Acker, 2009). Por fim, e tendo em conta a neutralidade de género manifestada pela generalidade dos/as jornalistas quando interrogados sobre as práticas organizativas (Berkowitz, 2009; Nilsson, 2010; Santos et al., 2018), observamos a importância das rotinas (Acker, 1990; Becker & Vlad, 2009; Nilsson, 2010; Reese & Shoemaker, 2016; Ryfe, 2009; Tuchman, 1972) enquanto fatores perpetuadores de assimetrias.
O objetivo deste artigo passa assim pela articulação dos vários fatores que contribuem para a forma como é (re)feito o género na redação, sublinhando a importância que os movimentos de awareness podem ter na (re)construção deste espaço tornando-o mais igualitário e, consequentemente, na produção de conteúdos editorais mais equilibrados (Kalra & Boukes, 2020).
DA (QUASE) AUSÊNCIA À (QUASE) FEMINIZAÇÃO
Em 1960 eram apenas dez as mulheres inscritas no Sindicato dos Jornalistas. Não seriam as únicas profissionais vinculadas aos meios de comunicação social portugueses da altura, mas a contabilização então feita pela entidade incluía apenas aquelas que trabalhavam na imprensa diária, deixando de fora as que escreviam para publicações temáticas ou revistas generalistas. Oficialmente, representavam, portanto, 2% da classe jornalística (Ventura, 2009). Foi preciso esperar pela Revolução de Abril e, com ela, por todas as mudanças operadas nos campos político e legislativo, mas sobretudo no próprio tecido social, para que as mulheres conquistassem espaço em áreas profissionais que, não lhes estando juridicamente vetadas, como o Jornalismo, pareciam ainda um território proibido (Rebelo et al., 2011).
Leitura semelhante poderá ser feita no que respeita ao Ensino Superior, domínio onde as mulheres também foram conquistando terreno. A criação das primeiras licenciaturas em Comunicação Social, nos anos 1980, acabou, de resto, por funcionar como porta de entrada privilegiada para as mulheres no jornalismo, não fosse este um importante campo de recrutamento da profissão (Subtil, 2009). Nas últimas décadas, elas representam a maioria de estudantes nos cursos de comunicação2, o que poderia sugerir que a feminização, mais do que uma tendência, seria uma inevitabilidade a médio prazo; mas tal não se veio a verificar. A partir de 2009, o processo de feminização parece ter sido interrompido (Subtil & Silveirinha, 2021), facto que poderá estar diretamente relacionado com a crise que atingiu o setor dos media, marcado pela tendência para a financeirização da informação, de resto ligada sobremaneira à precariedade laboral que, atingindo em particular as faixas etárias mais baixas dos/as profissionais do sector, afetou na sua maior parte as mulheres (Miranda, 2017).
Em agosto de 2023, segundo os dados da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista3, as mulheres representam 2259 de um total de 5437 jornalistas em Portugal, ou seja 41,5%, e, salvo algumas exceções4, continuam afastadas dos principais cargos de direção e de administração das empresas de comunicação (Silveirinha & Simões, 2016). Uma ausência com múltiplos significados do ponto de vista simbólico, mas também com consequências a nível prático, no sentido em que dificulta a vida das mulheres que estão mais abaixo na hierarquia organizacional (Acker, 2009).
A hierarquia clássica (Gallagher, 2014), quase blindada, e a cultura sustentada em valores que se confundem com os da própria masculinidade são, precisamente, duas das ideias mais exploradas nos estudos que analisam o género na redação (Byerly, 2011; Djerf-Pierre & Edström, 2020; Macharia, 2015, 2020). É também a partir daqui que surgem conceitos como o de outsiders, frequentemente utilizado para descrever a forma como as jornalistas são vistas em ambiente de trabalho (Lobo et al., 2017; North, 2016b). Isto apesar de, de um modo geral, serem academicamente mais habilitadas5. No entanto, elas não só se debatem com as expetativas do grupo em relação a uma feminilidade normativa (Santos et al., 2018) como parecem ter de dar provas redobradas de profissionalismo e pertença, num diálogo permanente entre competência e género, repetidamente apresentados como polos opostos e inconciliáveis (Gill, 2007).
Muitas jornalistas vivenciam, portanto, uma posição muito incómoda: por um lado, elas têm de mostrar que, apesar de serem mulheres, são boas jornalistas, mas, por outro lado, precisam de mostrar que, apesar de serem jornalistas, ainda são mulheres de verdade. As jornalistas que trabalham no jornalismo tradicional têm, portanto, uma identidade profissional muito mais fragmentada e contraditória do que a dos homens. (Van Zoonen, 1998, p. 45)
Numa tentativa de compreender e analisar a evolução da presença feminina nas redações, Steiner (2012) recuperou o conceito de massa crítica. Importado do universo da física nuclear, sugere que, a partir do momento em que se atinge um ponto irreversível, a mudança é inevitável. Ou seja, quando aplicado ao jornalismo, sustenta que uma maior presença feminina nas redações seria, só por si, garante de uma mudança de paradigma. Quando tal não se verificou, os estudiosos dos media procuraram explicações nas dinâmicas mais específicas das organizações, invocando fenómenos como o dos glass ceilings, ou seja, as barreiras invisíveis que impedem as mulheres de alcançar posições de liderança. Sugeria-se assim uma aplicação do Topping Out Factor, que defende que a mudança, para acontecer, tem de partir de cima. Mas, quando as (poucas) mulheres que chegam à liderança não evidenciam comportamentos ou critérios substancialmente diferentes daqueles manifestados pelos homens (Nilsson, 2010), a teoria também cai por terra.
Os dados que sugerem que mulheres e homens respondem de maneiras semelhantes não explicam se isso ocorre porque o género não importa, porque mulheres e homens estão de acordo com os padrões profissionais da sua era e da sua cultura, porque as mulheres aprenderam a dar respostas normativas ou porque se adaptaram à cultura masculinizada da redação. (Steiner, 2012, p. 203)
Se por um lado, a teoria da massa crítica se revelou ineficaz numa análise transversal do género na redação, por outro, tendo em conta a escassez de mulheres em posições de topo, podemos afirmar que permanece por explorar a sua aplicação ao nível da liderança feminina (Byerly & McGraw, 2020; Steiner, 2014), pelo que serão necessários mais estudos nesse sentido. Como assinalam Assmann e Eckert (2023), os números também não deixam perceber se/de que forma uma maior presença feminina em posições de chefia e liderança é suficiente para alterar os processos de trabalho da redação e o próprio jornalismo. Importa também empreender em análises qualitativas que se debrucem sobre as singularidades da liderança propriamente dita (Cunha & Lúcio Martins, 2023) e assim permitam leituras mais amplas e interseccionais.
Compreender a masculinidade hegemónica que parece persistir nas redações obriga também a decifrar a expressão de uma certa subjetividade, fundamental para dar conta da complexidade das estruturas genderizadas que são as redações (Acker, 1990; Calás et al., 2014; Ridgeway & Smith-Lovin, 1999). Tal prende-se com a ideia, frequentemente manifestada por jornalistas, homens e mulheres, de uma suposta neutralidade de género das organizações (Lobo et al., 2017; Nilsson, 2010; Ross, 2001). Ou seja, quando diretamente confrontados com questões de igualdade género, homens, mas também mulheres, tendem a negar desigualdades e assimetrias, partilhando a crença de que os jornalistas são, por definição, um grupo profissional “moderno, crítico e de mente aberta” (Lobo et al., 2017, p. 6), revelando ainda algum desconforto quando confrontados com esta reflexão. Nilsson (2010) sublinha a ambivalência manifestada pelos/as jornalistas suecos/as que participaram num estudo cujo objetivo foi precisamente o de confrontar pressupostos (“thinkings”) com procedimentos (“doings”), revelando de que forma o género informa procedimentos e rotinas (ainda que inconscientemente).
Apesar da tipificação de género nas atribuições (de tarefas), tanto homens como mulheres enfatizaram que a profissão jornalística, em termos de identidade profissional e valores centrais, deveria ser - e, essencialmente, era - neutra em termos de género, tentando evitar discutir a conotação entre soft news e feminilidade e hard news e masculinidade. (Nilsson, 2010, p. 5)
Quando confrontados com situações específicas que sugeriam a presença de gender bias (por exemplo, na atribuição de tarefas), a tendência manifestada foi a de desvalorizar a aparente preferência pela norma masculina, considerando-a uma ‘coincidência’ ou ‘casualidade’ (i.e., os ‘furos’ jornalísticos eram atribuídos aos homens porque, habitualmente, eram também eles quem apresentava uma maior disponibilidade e prontidão para aceitar uma nova tarefa). Nilsson pôde assim concluir que as noções de masculinidade e feminilidade não só estavam presentes e incorporadas nas rotinas e nas relações interpessoais, como revelavam as formas diferenciadas com que homens e mulheres respondiam à cultura organizativa.
Tendo em conta que a rápida capacidade de reação e de resposta é considerada um requisito ou uma mais-valia na profissão de jornalista, as expetativas relacionadas com a masculinidade eram, assim, claramente valorizadas, ao passo que as mulheres ficavam encerradas numa perceção de passividade. Compreende-se, por isto que, não raramente, quando questionadas sobre o seu grau de igualdade e inclusão, resumissem o aparente sucesso da incorporação na frase “I think I have been accepted as one of the boys” (Van Zoonen, 1998, p. 33).
No entanto, importa sublinhar, as mulheres não formam um bloco unitário (Gallagher, 2001). Se algumas se sentem presas à condição de outsiders, em contrapartida, outras acabam por atribuir às rotinas uma dimensão normativa, abraçando o sistema de recompensas da organização e indo ao encontro da cultura dominante (Topić & Bruegmann, 2021). Também as mulheres que individualmente ou em grupo enfrentam um sexismo substancial “não desenvolvem necessariamente uma consciência de género, muito menos abordagens específicas de mulheres no trabalho” (Steiner, 2012, p. 219). Por tudo isto, e conforme anteriormente referido, reduzir a participação feminina nos media a uma “simples” contagem de cabeças (body count), ainda que possa ser útil no sentido de mapear a profissão, trará sempre limitações, impedindo uma análise mais profunda e relacional.
Descartar os processos interpessoais e as expetativas sociais equivale a dar “pouca atenção às interações entre género e outras variáveis que determinam a cultura da redação” (Bruin, 2014, p. 43) . Entendê-la em toda a sua amplitude implica não perder de vista os processos mais informais, frequentemente marcados por uma certa subjetividade. É nesta análise que a teoria do standpoint feminista (Assmann & Eckert, 2023; Steiner, 2018) se poderá revelar particularmente útil, valorizando as experiências de quem, tantas vezes, não tem sequer o espaço ou a oportunidade para refletir sobre elas. Analisar, compreender e desconstruir esta cultura revelam-se, portanto, passos essenciais na tentativa de traçar a arquitetura do género na redação.
OS ALICERCES DA ESTRUTURA DE PODER MASCULINA
Foi em 1982 que Raewyn Connell introduziu o conceito de masculinidade hegemónica, referindo-se à dinâmica cultural através da qual um grupo, o dos homens, detém uma posição de liderança num determinado contexto social, subentendendo-se assim a subordinação das mulheres (Connell, 1995). Acker recupera o conceito de masculinidade hegemónica desenvolvido por Connell, associando-o ao modelo de gestão da generalidade das organizações que, com os anos, sofreu algumas reconfigurações, mas nunca prescindiu de uma matriz de dominação masculina. Dito de outro modo, continua a ser legítimo afirmar que a segregação de género prevalece. Assim, além de trazer um novo entendimento das organizações enquanto construções sociais, Acker contribui para desmontar a ideia das organizações neutras (como vimos, evocadas pelos jornalistas), encarando-as como “formulações ideológicas que obscurecem as realidades organizacionais, incluindo a difusão do poder masculino” (Acker, 2006, p. 178).
É com o objetivo de trazer luz às dinâmicas de género que entrelaçam o tecido social das organizações que Joan Acker contempla a importância dos procedimentos envolvidos (contratação, promoção, salários, horários, etc.), mas também das interações e das expetativas, através das quais se manifestam relações de poder. Neste contexto, sugere o conceito de regimes de desigualdade que, partindo da ideia de regimes de género proposta por Connell, vai um pouco mais longe, articulando questões relacionadas com a classe e/ou a raça (Acker, 2009), trazendo assim uma abordagem interseccional.
Fazer dos corpos e da sexualidade, em toda a sua tangibilidade, um dos lugares para começar as nossas investigações é parte do esforço de ver as relações sociais como ligações ativamente produzidas dentro e entre os muitos diferentes e dispersos locais, ao invés de macroestruturas abstratas e processos impostos de cima e de fora. (Acker, 2006, p. 191)
Hoje, como acontecia na década de 1960 e início de 1970, as mulheres jornalistas já não ocupam um espaço à parte na redação - criado com a justificação de as proteger de uma linguagem menos apropriada por parte dos homens (Ventura, 2014). Aquela que Stuart Allan designou de macho culture (Allan, 1998) já não se pauta pelos mesmos hábitos do passado, dos quais faziam parte a atitude boémia e a garrafa de whisky guardada na última gaveta da secretária. Rosalind Gill menciona a atmosfera “laddish” como uma das principais barreiras para o ingresso de mulheres na profissão: “Uma cultura masculina marcada pelo forte consumo de álcool, piadas obscenas e pornografia afasta e antagoniza muitas mulheres” (Gill, 2007, p. 123). Será esse o blokes club que Louise North (2009, 2016a) descreve, considerando que os homens - sobretudo os que se encontram em posições de autoridade - não identificam uma cultura específica da redação, precisamente por serem eles a própria cultura.
Ainda que, nas últimas décadas, muito tenha mudado na configuração de género e na própria geografia da redação, a norma masculina mantém-se. E ela reflete-se na produção dos media em geral e na forma como as mulheres são representadas em particular (Cerqueira et al., 2011; Macharia, 2015, 2020; Ross & Carter, 2011).
Criado em 1995, na sequência da Plataforma de Ação de Pequim, o Global Media Monitoring Project (GMMP) é o maior e mais longo estudo longitudinal que, a cada cinco anos, e num dia específico do ano, realiza uma monitorização dos órgãos de comunicação social de todo o mundo (televisão, imprensa, rádio e digital). Os resultados mais recentes, divulgados em 2021 - um ano após o previsto, devido a constrangimentos relacionados com a pandemia da covid-19 -, revelam que, apesar de se registarem melhorias (por exemplo, há mais mulheres ouvidas enquanto fontes oficiais e/ou especialistas), estas são quase sempre pontuais, não havendo alteração significativa no número de notícias que desafiam os estereótipos (apenas 3% do total de notícias analisadas). Apesar de as mulheres terem conquistado visibilidade como jornalistas, elas representam apenas 6% do total de conteúdos produzidos, concluindo-se que, sem mudanças substanciais, serão precisos 67 anos para fechar o fosso da igualdade de género nos media tradicionais (Macharia, 2015, 2020).
Um estudo realizado pela Nordicom em 2018, intitulado The media is a male business6, também revelou que a liderança das cem maiores empresas de media do mundo é masculina: em média, 80% dos diretores são homens, 17% dos executivos de alto escalão são mulheres e há apenas seis CEO do sexo feminino a liderar corporações na lista das cem principais (Djerf-Pierre & Edström, 2020). Já na edição de 2020 do mesmo estudo é analisada a dominação masculina no campo de poder, conforme proposto por Bourdieu (2001):
Política, assuntos mundiais e notícias de negócios são frequentemente vistos como um “mundo de homens”, enquanto questões sociais e de consumo, histórias de interesse humano, estilo de vida, saúde e educação são considerados femininos e têm um status inferior. (Djerf-Pierre & Edström, 2020, p. 65)
Num estudo onde se observa a igualdade de género nos media da Suécia, país-referência neste âmbito, e onde quase 50% dos profissionais do setor são mulheres (Djerf-Pierre, 2005), analisa-se especificamente a questão do poder. Para tal, é explorado o conceito de elite, identificando aquelas que são as suas principais características (exclusividade, unidade e concordância) e concluindo, a partir de uma revisão de literatura na área, que esta elite é masculina.
De forma a compreender como se constitui a elite de poder nos media, a autora convoca alguns dos conceitos como os de capital e campo social (inicialmente avançados por Bourdieu), onde o que “está em jogo na competição é o máximo poder e domínio dentro do campo dos media” (Djerf-Pierre, 2005, p. 269). Djerf-Pierre foca-se no capital social, para demonstrar a importância do desenho de redes formais e informais, mas também para a consolidação de uma figura cujo papel se revela determinante não só na manutenção como na própria perpetuação de uma elite. Referimo-nos à figura do mentor.
Tendo em conta que o jornalismo é uma atividade ainda muito marcada pelos processos informais, desde logo ao nível do recrutamento, compreende-se a importância que as redes de contactos podem desempenhar, consolidando a importância do networking. “A elite do poder deve estar ligada por fortes redes de contactos informais e amizade pessoal com poucas ou nenhuma conexão com ‘pessoas comuns’” (Djerf-Pierre, 2005, p. 267).
Estas redes mais ou menos informais também exercem o seu grau de influência na relação dos e das jornalistas com as fontes que, como é sabido, é essencial no desempenho da profissão (Berkowitz, 2009). Partindo do princípio de que uma fonte é alguém a quem é dada uma voz, é incontornável reconhecer-lhe uma dimensão de poder associada, a que não será alheio o facto de serem as figuras de autoridade masculinas as mais ouvidas pelos media (Ross, 2007). Os estudos dividem-se quanto à tendência de as mulheres jornalistas recorrerem mais a fontes do sexo feminino, mas, e nunca menosprezando as especificidades das relações entre os/as jornalistas e as suas fontes, a tendência é a de que “as mulheres e as minorias tenham uma posição mais fraca, quer seja como jornalistas, quer seja como fontes” (Berkowitz, 2009, p. 111).
Ainda neste contexto, importa também recuperar o conceito de homossocialidade (North, 2016a), alimentado sob a forma de rituais, tal como explica Nilsson (2010). Mas, mais do que a preferência pela companhia de pessoas do mesmo sexo, a autora introduz a dimensão do poder e a capacidade de controlar recursos, concluindo que os homens tendem a identificar-se mais e a procurar a ajuda de outros homens, expandindo assim uma rede de favores e influências.
Além disso, a homossocialidade no trabalho manifesta-se em rituais, tendo como principais motores a expressão e a manutenção de valores compartilhados. Os rituais são simbólicos e o seu valor reside no facto de distinguirem aqueles que fazem parte do sistema de valores dominante dos que não fazem. Numa redação, eles são especialmente importantes nas reuniões matinais e em torno da mesa de notícias. (Nilsson, 2010, p. 11)
A IMPORTÂNCIA ESTRUTURANTE DAS ROTINAS
Tendo em conta as limitações de meios, mas também outras condicionantes inerentes ao trabalho jornalístico (como os próprios prazos), Shoemaker e Reese definiram as rotinas das organizações noticiosas como sendo as práticas padronizadas e repetitivas através das quais os/as jornalistas desempenham o seu trabalho (Shoemaker & Reese, 2014). Antes destes autores, outros, como Gaye Tuchman (1972), já haviam discutido a importância das rotinas no contexto jornalístico, articulando-as com a objetividade enquanto “ritual estratégico”, ou seja, uma forma de proteção usada pelos/as jornalistas que, através dos seus rituais, definem mecanismos que lhes permitem lidar com possíveis críticas ou fragilidades (Jenkins & Finneman, 2018). Numa tentativa de aplicar a ideia de performatividade (tal como entendida por Judith Butler) às redações, Bogaerts sublinhou a importância que as práticas rotineiras podem ter numa profissão marcada pela imprevisibilidade, não apenas na forma como o jornalismo mantém a sua hegemonia, mas também na construção da identidade jornalística (Bogaerts, 2011).
A distribuição de tarefas - momento em que continua a fazer sentido falar de segregação horizontal e da dicotomia entre hard news e soft news (North, 2016b) -, a relação com as fontes e a própria hierarquia (segregação vertical) refletem, de múltiplas formas e em diferentes dimensões, uma certa manutenção das relações de género, bem como uma cristalização de rotinas que, de tão incorporadas, se tornam normas, ou seja, aquilo que o “bom” jornalismo deve ser. Dito de outro modo, “as normas e valores implicitamente ‘masculinos’ da prática jornalística mascaram-se como rotinas profissionais que todos os jornalistas devem subscrever” (Ross & Carter, 2011, p. 1149) e que, arriscamos, poucos ousam questionar.
Importa ainda considerar os impactos que a tecnologia e o alargamento digital trouxeram às condições de trabalho, afetando procedimentos, mas também as próprias políticas de género. Este novo paradigma, desencadeado pela revolução tecnológica, e abarcando uma série de dimensões, da económica à social (Garcia & Graça, 2021), consagra ainda uma expressão individual. Referimo-nos a uma necessidade de permanente (re)adaptação dos e das jornalistas que, não só foram confrontados com uma maior precariedade do setor (Gill, 2007), marcado pelo aumento do trabalho freelance, como tiveram de adquirir novas competências. Acresce ainda que muitas destas competências são adquiridas a título individual, obrigando a horas extras de trabalho, o que poderá representar um desafio acrescido para as mulheres, habitualmente mais sobrecarregadas com tarefas domésticas e/ou de cuidado à família (Torres et al., 2018).
Várias mulheres entrevistadas perceberam que as suas habilidades digitais são avaliadas com base num binário de género. A sua competência tecnológica era frequentemente questionada, e elas tinham a sensação de que precisavam provar as suas habilidades digitais duas vezes mais do que os seus colegas homens. (Padovani et al., 2019, p. 166)
Na viragem do milénio, ao refletir sobre as dificuldades da participação feminina nos media, Robinson (2005) escrevia que restava às mulheres duas opções: incorporar ou desistir. Os números mais recentes7 revelam que, à medida que a idade avança, há mais homens do que mulheres nas redações, o que pode refletir não só um abandono precoce da profissão por parte das jornalistas como um efeito de revolving door (De Vuyst & Raeymaeckers, 2019); ou seja, o número de mulheres que entram não é suficiente para compensar as que saem, causando um efeito de estagnação.
O QUE (NÃO) MUDOU? CONSIDERAÇÕES FINAIS
Vista como o primeiro momento em que se reconheceu formalmente a importância dos media enquanto área crítica para as mulheres, a Plataforma de Ação de Pequim, realizada em 1995, é várias vezes apontada como uma oportunidade perdida para debater, à escala global, uma agenda internacional no campo dos media (Macharia, 2015). Apesar da extensa lista de recomendações a adotar por governos, sistemas de comunicação nacionais e internacionais, organizações não governamentais e associações profissionais, bem como de incentivos à educação, formação e investigação, aparentemente, as empresas do setor dos media passaram ao lado das políticas de promoção de igualdade de género. Também as medidas previstas nos Planos Nacionais para a Igualdade, manifestamente importantes, parecem ter sido de uma ordem mais simbólica do que efetiva (Alvares & Veríssimo, 2016; Subtil & Silveirinha, 2017). Há, no entanto, exceções e avanços a registar. É o caso das iniciativas empreendidas por empresas públicas como a Rádio Televisão Portuguesa (RTP), que, anualmente, apresenta um Plano para a Igualdade de Género e um Relatório para a Igualdade de Género, Cidadania e Não Discriminação (https://media.rtp.pt/empresa/informacao/relatorio-igualdade-genero, consultado em 21 de Setembro de 2023), e a Lusa, que, a cada três anos, publica um Relatório Sobre a Igualdade das Remunerações por Género (https://www.lusa.pt/about-lusa/Relatório-da-Igualdade-de-Remunerações-por-Género, consultado em 3 de Novembro de 2022). De referir ainda a alteração legislativa consagrada na Lei n.º 62/2017, onde se regulamenta o regime de representação equilibrada entre homens e mulheres nos órgãos de administração e de fiscalização das entidades do setor público empresarial e das empresas cotadas em bolsa. No plano internacional, importa não perder de vista exemplos de sucesso, como o 50-50 The Equality Project da BBC8, que promove a representação equilibrada de géneros nos conteúdos editoriais, ao mesmo tempo que incentiva hábitos de automonotorização e regulação, indo ao encontro do que identificamos como o principal objetivo deste ensaio: a necessidade de reflexão, articulação e ação da própria classe.
Apesar da já considerável produção da academia (nacional e internacional) sobre os impactos dos enviesamentos no jornalismo, permanecem por explorar as complexas interações que resultam da triangulação entre produção, conteúdos e consumo (Santos et al., 2018), o que só vem acentuar a necessidade de estudos mais transversais e abrangentes, que cruzem metodologias quantitativas e qualitativas e assim possam traçar um retrato mais compreensivo desta realidade. Acreditamos que será também desse confronto que resultarão evidências que permitam às/aos jornalistas a disponibilidade para uma reflexão mais consequente e comprometida.
Concluímos assim que a transformação das redações em lugares sociais mais justos, mais diversificados e mais igualitários, ainda que possa ser reflexo de uma mais ampla mudança social e institucional, implicará sempre um progressivo processo de reflexão sobre possíveis enviesamentos de género, seguido de uma tomada de consciência das assimetrias tantas vezes ignoradas ou desvalorizadas pela própria classe. Só assim o jornalismo poderá ser um verdadeiro motor diferenciador (Djerf-Pierre, 2011) - aquele que não se limita a refletir ou a reproduzir uma ordem de género, mas que tem o poder de a alterar.