1. Introdução
Ainda que o contributo de investigação de cariz qualitativo se tenha verificado ao longo da história da Psicologia, só nos últimos anos se tem verificado uma disseminação crescente e um reconhecimento científico na área (Gough & Lyons, 2016).
A opção metodológica preferencial da Psicologia, na linha do positivismo, tem estado associada ao seu percurso histórico de procura de credibilidade científica, ainda que importantes trabalhos qualitativos também tenham sido desenvolvidos (Gibson & Sullivan, 2012; Murray, 2019).
De facto, metodologias qualitativas são pertinentes nos vetores da Psicologia que se movem por valores de justiça social (Gough & Lyons, 2016), nomeadamente, na advocacia de direitos e defesa de grupos minoritários, como pode ilustrar o desenvolvimento recente de métodos de pesquisa qualitativa e o combate à injustiça social em países europeus, onde vigoravam regimes políticos mais opressores (Murray, 2019).
Contudo, a reflexão sobre a investigação, e a sua concretização, não deve resumir-se à dicotomia quantitativa-qualitativa, mas conceber a arte da investigação em diferentes epistemologias e metodologias (Gough & Lyons, 2016). Reflexo desse processo, pode verificar-se, na última edição do Publication Manual of the American Psychological Association (American Psychological Association, 2020), a apresentação, pela primeira vez, de uma secção com orientações ao relato de pesquisa qualitativa e de pesquisa com métodos mistos.
De acordo com Meyer e Schutz (2020), o crescimento do recurso a métodos qualitativos e mistos traduz o trabalho de muitos psicólogos, nomeadamente, psicólogos da Educação, dada a natureza interdisciplinar desta área, pois tem-lhes permitido adotar, de várias outras áreas, estas formas de realizar investigação.
Então, para que a Psicologia Educacional prospere e o trabalho de investigação tenha impacto além do mundo académico, importa que nos tornemos mais “educados metodologicamente” (methodologically educated), independentemente das opções metodológicas pessoais, para assim prestarmos melhor serviço na área, quer sejamos orientadores, investigadores ou revisores (Nolen, 2020). Nesse sentido, são necessárias oportunidades de desenvolvimento profissional, onde os académicos possam experimentar o pluralismo metodológico e apreender a heterogeneidade do campo, sendo que estes momentos contribuem também para a legitimação das metodologias qualitativas como forma de fazer investigação (Meyer & Schutz, 2020).
Contudo, não só os académicos necessitam ser mais “educados metodologicamente”, também os alunos devem ser ensinados sobre a pesquisa qualitativa. De facto, parece que, ao longo da formação académica, os alunos estabelecem mais contacto com a metodologia quantitativa. Com efeito, dada a complexidade da metodologia qualitativa, o seu ensino revela-se complexo e desafiante, não só em termos de técnicas e métodos de ensino, mas também nas opções programáticas de conteúdos nas, e entre, as instituições de formação superior (Gibson & Sullivan, 2012).
Resultado da preocupação de professores e investigadores com a qualidade da formação, sobretudo quando se deparam com a metodologia qualitativa pela primeira vez, têm surgido alguns trabalhos onde os autores comentam conteúdos e relatam experiências formativas (e.g., Antunes, 2017; Boström, 2019; Danquah, 2017; Wiggins et al., 2016).
O presente trabalho surge também como resultado da preocupação com a formação dos alunos, e na sequência de um trabalho anterior realizado pelas autoras (Antunes & Araújo, 2020), tendo como objetivo responder às questões de investigação sobre as perceções de um grupo de alunos de mestrado de Psicologia da Educação (PE) sobre a metodologia qualitativa (MQ) e sobre a Unidade Curricular (UC) de Métodos de Investigação II (MI II), com enfoque na MQ, após a frequência da mesma.
2. Método
2.1 Participantes
Os participantes deste estudo foram 11 alunos (10 mulheres e um homem) de uma turma de 12 alunos, com idades entre 21 e 28 anos. Os alunos estavam inscritos na UC de MI II, do plano de estudos de um curso de 2.º ciclo, em PE, numa Universidade Pública Portuguesa, no ano letivo 2019/2020.
2.2 Materiais
Na sequência do trabalho anterior (Antunes & Araújo, 2020) adotou-se a narrativa como forma de recolha de dados, seguindo-se a mesma indicação aos alunos, alterando-se o ponto que se referia, na fase um, às expectativas sobre a UC, solicitando-se agora a opinião sobre o cumprimento das expectativas e como decorreu a UC. Assim, os alunos foram convidados a escrever uma narrativa onde abordassem os seguintes pontos:
1. Conhecimento sobre a MQ;
2. Comparação com a metodologia quantitativa;
3. Importância da MQ;
4. Importância da MQ na Psicologia;
5. Comparação com as expectativas iniciais da UC;
6. Como decorreu esta UC;
7. Importância da UC na formação do 2.º ciclo em PE; e
8. Outro(s) aspeto(s) que queira referir.
2.3 Procedimentos
Na última aula do semestre da UC de MI II, após a realização de 28 aulas (Teórico-Práticas e Seminário, tendo, cerca de dois terços delas, sido lecionadas, excecionalmente, em regime não presencial, devido à situação pandémica por COVID-19), os alunos foram convidados à realização, mediante consentimento informado e participação voluntária, de uma narrativa, à semelhança da realizada na primeira aula, referindo se também autorizavam que fosse utilizada para fins de investigação. Como a aula foi lecionada em regime não presencial, através da plataforma Colibri/Zoom, os alunos presentes na mesma (n=11) aceitaram participar e responder ao solicitado, via online também. A instrução da narrativa foi apresentada com recurso ao Microsoft Forms, facultando-se o link de acesso aos alunos, que responderam individualmente.
As narrativas foram recolhidas num ficheiro excel e copiadas verbatim para um ficheiro word, seguindo-se uma leitura integral e análise de conteúdo de acordo com Bardin (2008):
a) pré-análise, procedendo-se à organização do material, ou seja, a coleta e arquivo das narrativas, e atribuição de um código a cada participante;
b) exploração de materiais, ou seja, leitura integral das narrativas e tomada de decisão sobre a forma de análise das mesmas; e
c) análise, inferência e interpretação dos resultados, ou seja, análise e discussão dos dados recolhidos nas narrativas.
O processo de análise de conteúdo e de codificação decorreu em dois momentos. No primeiro, adotou-se uma lógica dedutiva, definindo-se a priori sete categorias de análise coincidentes com os pontos sugeridos para organização das narrativas (referidos atrás), pois a leitura iterativa prévia permitiu constatar que os alunos, de forma geral, seguiram esses pontos, sem referência a outros aspetos (ponto 8).
As autoras do estudo codificaram individualmente as narrativas, procedendo posteriormente à comparação e discussão da categorização efetuada até alcançarem acordo.
Num segundo momento, na sequência do processo anterior, e semelhante ao adotado em trabalho prévio (Antunes & Araújo, 2020), procedeu-se a uma nova análise dos dados, numa lógica dedutiva e indutiva. Dedutiva porque se decidiu agrupar alguns Tópicos (1 e 2; e, 5 e 6), dada a aproximação nas narrativas, decidindo-se também a definição das categorias e subcategorias adotada em Antunes e Araújo (2020), a qual havia sido construída a partir das assunções filosóficas de Creswell (2007) e da proposta de Merriam (1998). Indutiva porque se decidiu abrir espaço à emergência de novas categorias ou subcategorias. Assim, as narrativas foram categorizadas para os seguintes tópicos:
(1) Caracterização da MQ;
(2) Importância da MQ;
(3) Importância da MQ na Psicologia;
(4) Experiência da UC; e
(5) Importância da UC no 2.º ciclo em PE.
As autoras voltaram a codificar individualmente as narrativas, procedendo-se posteriormente à comparação e discussão da categorização efetuada, até se alcançar acordo.
As categorias e subcategorias resultantes para cada tópico são apresentadas na secção dos resultados, sendo acompanhadas de excertos ilustrativos das narrativas, mantendo-se o anonimato dos alunos ao assinalar-se o excerto com a letra A (indicação de aluno) seguida de um número (numeração de 1 a 11 atribuída a cada participante).
3. Resultados
Os dados são apresentados em função dos cinco tópicos definidos a priori: Caracterização da MQ; Importância da MQ; Importância da MQ na Psicologia; Experiência da UC; e Importância da UC no 2.º ciclo em PE.
3.1 Caracterização da MQ
Neste tópico, foram identificadas sete categorias (ver Tabela 1). Destas, as categorias mais representadas foram o Propósito da investigação (três subcategorias) e Pressuposto metodológico (cinco subcategorias). As subcategorias mais frequentes estão associadas às categorias Propósito da investigação (Descrever/compreender, e Explorar fenómenos) e Dimensão do fenómeno (Idiográfica).
3.2 Importância da MQ
Relativamente ao tópico Importância da MQ, apesar de ter sido possível identificar quatro categorias e cinco subcategorias, verifica-se a sua presença menos visível nas narrativas dos alunos (ver Tabela 2).
3.3 Importância da MQ na Psicologia
No que respeita ao tópico Importância da MQ na Psicologia, duas categorias foram identificadas, desdobrando-se a primeira em três subcategorias, e sendo identificada uma única subcategoria na segunda (ver Tabela 3). À semelhança do verificado relativamente ao tópico 1, as subcategorias mais representadas associam-se ao Propósito da investigação (Descrever/compreender) e à Dimensão do fenómeno (Idiográfica).
3.4 Experiência da UC
No que concerne o tópico Experiência da UC, verifica-se a identificação de três categorias nas narrativas dos alunos (ver Tabela 4). Destaca-se, pela sua representatividade no discurso destes, a categoria Processo ensino-aprendizagem e, nesta, de forma mais proeminente, as subcategorias Aprendizagem de conhecimentos e competências e Práticas pedagógicas. Registe-se, ainda, em mais de metade das narrativas analisadas, a referência ao Cumprimento de expectativas acerca da UC, alocada à categoria Aspetos motivacionais.
3.5 Importância da UC no 2.º ciclo em PE
Neste tópico emergiram três categorias: Aspetos valorativos, Processo de ensino-aprendizagem e Transferência da Aprendizagem (ver Tabela 5). Relativamente à primeira, é patente numa parte significativa de alunos uma perceção da importância da UC, sendo que três alunos recomendam um contacto mais precoce com a IQ, designadamente na licenciatura. Além destas, é de notar que, à exceção da subcategoria Aprendizagem de conhecimentos e competências, as quarto subcategorias identificadas têm uma presença residual nas narrativas.
4. Discussão
4.1 Perceção sobre a MQ
As perceções dos alunos sobre a MQ evidenciam-se em três tópicos, que passamos a explicar:
a) A Caracterização da MQ, verificando-se que os alunos revelam conhecimentos sobre aspetos importantes. Assiste-se, nesse sentido, à apreensão do Propósito da IQ, revelando a sua pertinência para explorar, descrever, compreender e interpretar a realidade em estudo. Além disso, reconhecem um Pressuposto metodológico diferenciado, em comparação à metodologia quantitativa, nomeadamente pela lógica indutiva, a forma de recolha de dados, o número reduzido de participantes, a análise de dados e os resultados. Acresce a consciencialização dos alunos sobre a Dimensão do fenómeno a estudar assente, tipicamente, numa perspetiva idiográfica.
b) A Importância da MQ, justificada pelos alunos através do Propósito da investigação, dado permitir descrever e compreender, dando contributo à ciência. Reconhecem ainda a importância da perspetiva idiográfica, destacando também, associado ao Pressuposto epistemológico, a proximidade do investigador.
c) A Importância da MQ na Psicologia, tópico onde referem aspetos relacionados com o Propósito da investigação, nomeadamente o permitir descrever, compreender, interpretar e contribuir para a ciência, referindo ainda a perspetiva idiográfica na Dimensão do fenómeno.
De uma forma geral, os alunos reconhecem a MQ como forma de fazer ciência, valorizando o seu contributo na compreensão aprofundada do tema em estudo, estando em consonância com o seu reconhecimento recente (APA, 2020). Este facto parece promissor pois será de esperar que estes alunos se mostrem sensibilizados para realizar e consultar MQ no seu futuro académico e profissional e serem atores de mudança social (Gough & Lyons, 2016), aparecendo a PE como um campo de atuação “privilegiado” para a MQ (Nolen, 2020).
Este grupo parece ter compreendido a essência da MQ em termos de assunções filosóficas que pressupõem a sua realização (Creswell, 2007; Merriam, 1998).
5. Apreciação da UC
A apreciação dos alunos sobre a UC pode ser conhecida a partir de dois tópicos:
a) A Experiência da UC, verificando-se que os alunos destacam, em relação ao Processo ensino-aprendizagem, a aprendizagem de conhecimentos e competências e as práticas pedagógicas adotadas para a sua concretização. Manifestam ainda uma apreciação global positiva da UC, referindo as adequações efetuadas no contexto de ensino-aprendizagem devido à COVID-19, bem como o contributo da UC para a desmistificação de crenças que tinham sobre a MQ. No que se refere aos aspetos motivacionais, os alunos viram cumpridas as suas expectativas sobre a UC.
b) A Importância da UC no 2.º ciclo em PE revelou-se um tópico onde os alunos valorizaram a existência da UC no curso que frequentavam, de tal forma que alguns alunos sugerem o ensino de MQ mais cedo, ou seja, no 1.º ciclo em Psicologia. Destaca-se, ainda, a referência ao Processo de ensino-aprendizagem, nomeadamente a Aprendizagem de conhecimentos e competências.
Este grupo de alunos parece ter tido uma experiência gratificante na UC de MI e, apesar da situação excecional vivenciada, devido à pandemia por COVID-19, permitiu o desenvolvimento de conhecimentos e competências sobre a MQ como verificado noutros trabalhos (Antunes, 2017).
De facto, o ensino e a aprendizagem de MQ são uma preocupação manifestada nalguns estudos (Antunes, 2017; Boström, 2019, Danquah, 2017, Wiggins et al., 2016). No caso concreto, parece-nos positiva a existência de uma UC obrigatória dedicada à MQ, integrada no plano curricular do curso. Não obstante, o desafio dos conteúdos programáticos e da lecionação mantêm-se (Gibson & Sullivan, 2012), bem como a necessidade de atualização permanente do(s) docente(s), numa lógica de ser(em) mais “educados metodologicamente” (Nolen, 2020), explorando a pluralidade de opções metodológicas, nomeadamente na PE (Meyer e Schutz, 2020).
6. Conclusões
O presente trabalho permitiu conhecer as perceções de um grupo de alunos de mestrado em PE sobre a MQ e a sua opinião sobre uma UC de MI frequentada. Além disso, é um trabalho que traduz não só a importância da IQ, mas também alerta para a formação dos futuros investigadores, pois parece pertinente acautelar o ensino académico de IQ como parte integrante da estrutura curricular.
Este trabalho constitui a segunda fase de um trabalho anterior (Antunes & Araújo, 2020) e duas considerações podem ser adiantadas. Uma, relativa à recolha de dados, ou seja, a apresentação da narrativa com tópicos orientadores poderá ter focado mais os alunos e inibido outras ideias, ainda que em trabalho anterior (Antunes & Araújo, 2020), e neste, não pareça ter acontecido. Outra, referente à decisão tomada de analisar os dados recolhidos no segundo momento, sem comparação dos resultados das duas fases. Assim, num trabalho futuro poderá efetuar-se essa comparação, procurando perceber a evolução do grupo de alunos ao longo do semestre.