Introdução
Um dos principais temas discutidos atualmente sobre o futuro do trabalho é a regulação das plataformas digitais. A economia capitalista de plataformas emerge globalmente no contexto da crise financeira de 2008 (Srnicek, 2017). Na Europa o rápido crescimento do número de “trabalhadores/as de plataformas digitais” tem despertado preocupações (Huws, Spencer & Coates, 2019; Pesole et al., 2018). A expressão trabalhadores/as de plataformas digitais tem um sentido abrangente: refere-se às pessoas envolvidas no trabalho remunerado tanto independentemente da localização - cloudwork - quanto dependente da localização - gigwork (Schmidt, 2017). Contudo, a regulação desta modalidade de trabalho é uma questão que permanece em aberto (Lamannis, 2023).
O objetivo deste estudo foi investigar como as iniciativas desenvolvidas pelo IG Metall e pelo STRUP podem contribuir com a necessária regulação do trabalho via plataformas digitais. A opção por estudar estas duas estruturas sindicais justifica-se, pois, o IG Metall é amplamente reconhecido na literatura como um dos principais atores sindicais a desenvolver políticas voltadas para o setor do cloudwork (e.g. Degryse, 2016; Greef & Schroeder, 2017; Johnston et al., 2020; Nierling, Krings, Küstermann, & Neuwinger, 2021; Vandaele, 2018). Já o STRUP é reconhecido como o principal sindicato português a desenvolver iniciativas para trabalhadores/as do setor do gigwork / TVDE (Costa, Soeiro & Miranda Filho, 2022; Eurofound, 2022).
Em Portugal pouco se sabe sobre a dimensão do trabalho via plataformas digitais. Um estudo comparativo sobre esse fenómeno na Europa sugeriu que neste país uma percentagem de 4,2% de trabalhadores/as realizavam “trabalho significativo” mensal através de plataformas (Pesole et al., 2018). No entanto, começam a surgir investigações qualitativas sobre este fenómeno. Estudos multidisciplinares, discutiram aspetos do trabalho via plataformas digitais presentes no” Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho 2021” (e.g. Moreira, 2022), particularmente no setor do chamado gigwork discutiram-se nuances jurídicas (Amado, 2020) e tendências económicas (Leonardi & Pirina, 2020) subjacentes à chamada “Lei Uber”. Há ainda estudos que trouxeram elementos para a reflexão sobre a ação sindical nesta modalidade de trabalho (Boavida & Moniz, 2022;Costa, Soeiro & Miranda Filho, 2022). Estes últimos, no entanto, carecem de uma abordagem específica para discutir esta relação.
Argumenta-se neste estudo comparativo que: ao permitir aferir simultaneamente as fraquezas e as forças dos sindicatos, uma análise da mobilização de recursos de poder é fundamental para proceder a um mapeamento do modo como, em sistemas de relações de trabalho com características distintas (Alemanha e Portugal), se enfrentam os desafios da regulação do trabalho na economia capitalista de plataformas.
O texto está organizado da seguinte forma: a secção 1 apresenta o enquadramento teórico utilizado na investigação, ou seja, a Abordagem dos Recursos de Poder (ARP), seus conceitos fundamentais, suas características, objetivos e indicadores. A secção 2 trata dos aspetos metodológicos da investigação, isto é, o método, as fontes de evidências, a categorização e análise das informações. A secção 3 apresenta e discute os resultados da pesquisa, notadamente as evidências relacionadas à mobilização de poder institucional. A última secção conclui.
1. Abordagem dos Recursos de Poder
A secção visa apresentar sucintamente os principais conceitos da ARP. Esta Abordagem é utilizada aqui como um recurso heurístico para examinar as relações trabalho-capital, particularmente a questão da ação sindical na regulação do trabalho via plataformas. A opção pela ARP justifica-se pela possibilidade de uso desta ferramenta na análise da política sindical nas sociedades capitalistas tanto no chamado “Norte” (e.g. Vandaele, 2020) quanto no “Sul Global” (e.g. Costa, Estanque, Fonseca & Silva, 2020; Krein & Dias, 2018). Além disso, a ARP tem sido utilizada para estudar fenômenos contemporâneos, tais como o trabalho via plataformas digitais (e.g. Basualdo et al., 2021). Por fim, a ARP também tem sido utilizada pelos sindicatos para o seu trabalho diário (Schmalz & Thiel, 2017). Contudo, a referida Abordagem não está imune a críticas (e.g. Gallas, 2018).
A ARP diferencia quatro fontes de poder de influência do trabalho: poder estrutural, poder de organização, poder institucional e poder social (Tabela 1). O “poder estrutural” é o poder que resulta simplesmente da localização dos/as trabalhadores/as dentro do sistema econômico (Wright, 2000). É compreendido também como um recurso de poder primário, pois está à disposição dos/as trabalhadores/as mesmo na ausência de uma representação coletiva de interesses (Schmalz & Dörre, 2014). Esta fonte de poder pode ser usada como uma capacidade de perturbar a valorização do capital por sua natureza disruptiva (Schmalz, Ludwig & Webster, 2018), manifestando-se de duas formas: tanto na produção quanto no mercado. A taxa de desemprego é utilizada como um indicador fundamental dessa fonte de poder (Lehndorff, Dribbusch & Schulten, 2017).
O “poder de organização” resulta da formação de associações coletivas de trabalhadores/as (Wright, 2000). Desse modo, ao contrário do poder estrutural, requer um longo processo de organização e a emergência de atores coletivos (Brinkmann et al., 2008; Schmalz & Dörre, 2014). Duas questões merecem destaque na mobilização desta fonte de poder do trabalho: os níveis de atuação destes atores e os fatores que podem ser utilizados na avaliação deste recurso de poder. Contudo, ele baseia-se não apenas na força numérica dos sindicatos, mas também na capacidade de estes mobilizarem com sucesso os seus membros (Lehndorff, Dribbusch & Schulten, 2017). Além disso, uma “representatividade substantiva” demanda a integração com as estruturas de diálogo social e com o sistema jurídico (Costa & Rego, 2021), o que remete à articulação com o poder institucional.
O “poder institucional” surge como resultado de negociações e conflitos baseados em poder estrutural e poder de organização (Brinkmann et al., 2008). Por basear-se nas duas fontes de poder precedentes, é considerado como uma forma secundária de poder (Brinkmann & Nachtwey, 2010). Esta fonte de poder se faz presente nos sistemas nacionais de relações laborais (Lehndorff, Dribbusch & Schulten, 2017). Por isso, o poder institucional tanto concede amplos direitos aos sindicatos, quanto coloca limites à sua capacidade de ação (Costa, 2018). Um indicador amplamente aceite do poder institucional é a cobertura da negociação coletiva (Lehndorff, Dribbusch & Schulten, 2017).
Finalmente, o “poder social” é a margem de ação resultante de vínculos de cooperação viáveis com movimentos sociais e populares, bem como o apoio da sociedade às demandas sindicais (Schmalz & Dörre, 2014). Nessa perspetiva, o exercício do poder social relaciona-se com a capacidade de impor “hegemonia” (Gramsci, 2016) na sociedade. Esta fonte de poder pode emergir basicamente de duas outras fontes: o poder de cooperação e o poder de discurso. A primeira significa formar redes com outros atores sociais e ser capaz de ativá-las para mobilizações e campanhas (Frege, Heery & Turner, 2004; Schmalz & Dörre, 2014). A segunda se expressa na capacidade de intervir com sucesso em debates públicos ou em conflitos (Gerst, Pickshaus & Wagner, 2011). Em que pesem as dificuldades de se aferir quantitativamente o poder social dos sindicatos, a perceção cidadã pode ser utilizada como um indicador deste recurso de poder (Lehndorff, Dribbusch & Schulten, 2017). Contudo, essas quatro fontes de poder se influenciam reciprocamente e se desenvolvem em contextos socioeconômicos específicos. A seguir, apresentam-se as opções metodológicas desta investigação.
2. Metodologia
Esta secção tem como objetivo tratar das opções metodológicas feitas durante o trabalho de pesquisa. A investigação buscou aproximações com o método do “estudo de caso”, particularmente um “estudo de casos múltiplos” (Yin, 2018, p. 91). Alguns estudos consultados previamente utilizaram-se de uma estratégia semelhante para comparar diferentes países na Europa (e.g. Martín-Artiles, Godino & Molina, 2018; Tassinari & Maccarrone, 2019; Vandaele, 2020). Como dito, os casos selecionados foram o IG Metall e o STRUP. A intenção foi abordar os casos alemão e português, trazendo à luz evidências de diferentes contextos socioeconómicos, bem como setores (cloud- e gigwork) para uma melhor compreensão do fenómeno estudado.
Em conformidade com as características de um estudo de caso, utilizaram-se mais de uma fonte de evidências. A principal delas foram as “entrevistas semiestruturadas” (Lima, 2016; Yin, 2018, p. 164). Alguns trabalhos acedidos durante a fase preliminar da pesquisa usaram esse formato de produção de informação (Johnston & Land-Kazlauskas, 2018; Tassinari & Maccarrone, 2019; Wood, Lehdonvirta & Graham, 2018). O critério para a definição dos/as entrevistados/as foi, no primeiro momento, o vínculo necessário com as duas estruturas sindicais estudadas e, a partir daí, utilizou-se uma estratégia do tipo snowball. Com isso, trabalhou-se com cinco categorias de entrevistados/as: sindicalistas, trabalhadores/as, legisladores/as, investigadores/as e ativistas. Portanto, realizou-se entrevistas com perfis diferentes de respondentes. A intenção foi obter variados depoimentos para melhor contextualizar o problema investigado. No total foram realizadas vinte (20) entrevistas. A Tabela 2 apresenta uma visão geral sobre o perfil dos/as entrevistados/as1.
No cenário de restrições da pandemia da Covid-19, todas as entrevistas foram conduzidas através da plataforma “Zoom”. Essa estratégia para a realização das entrevistas encontra respaldo na literatura especializada (e.g. Piasna, Zwysen & Drahokoupil, 2022). As entrevistas ocorreram no período entre 10/11/2021 e 07/09/2022. Como instrumento de “coleta” das informações, foi usado como guia um roteiro e através da plataforma Zoom gravou-se as entrevistas no formato MP3 para posterior transcrição.
As entrevistas duraram em média 40min. A fim de perceber possíveis dificuldades na utilização dessa técnica no formato on-line, realizou-se algumas entrevistas-pilotos antes de “ir ao terreno”.
Outra fonte de evidências utilizada no estudo dos casos foi a “documentação” (Yin, 2018, p. 158). Nesse sentido, produziu-se principalmente informações a partir de cinco meios: publicações dos sites dos sindicatos, estatutos, relatórios, leis, bem como outros documentos (dossiers, discursos de dirigentes, comunicados sindicais, projetos, vídeos, declaração conjunta, código de conduta, livro etc.). Finalmente, utilizou-se da “observação direta” (Yin, 2018) como fonte de evidências - processo também limitado pela pandemia da Covid-19. Os momentos fundamentais de aproximação do “terreno” foram os seguintes: visita às sedes dos sindicatos (12/09/2020 e 07/01/2022), participação em audições parlamentares (26/04/2022, Alemanha; e 01/07/2021 e 06/07/2022, Portugal); participação em eventos científicos; observação da rotina de trabalho dos/as trabalhadores/as; participação em manifestação (20/10/2021). Em síntese, a utilização de múltiplas fontes de evidência (entrevistas, documentos e observações) teve como objetivo realizar uma triangulação destas.
A categorização das informações foi feita com o auxílio do software MaxQda (Kuckartz & Rädiker, 2019), particularmente a versão “Maxqda 2022, Release 22.2.1 standard”. Investigações apoiadas por software de categorização e análise qualitativa de dados já encontravam referências na literatura (Tassinari & Maccarrone, 2019; Wood, Lehdonvirta & Graham, 2018). Na fase final da investigação, os resultados obtidos foram discutidos à luz de outros estudos sobre o trabalho via plataformas digitais. Portanto, trata- se de uma abordagem qualitativa que não pretendeu realizar generalizações estatísticas dos resultados da investigação, mas talvez “generalizações analíticas” (Yin, 2018, p. 73). A próxima secção destaca os principais resultados do estudo empírico, com foco nas tentativas de construção de poder institucional.
3. Resultados e discussão
Esta secção apresenta e discute algumas evidências relacionadas às tentativas de mobilização de poder institucional (regulação) pelo IG Metall e STRUP. Nesse sentido, percebeu-se com as entrevistas que uma dificuldade para mobilizar este recurso de poder no “nível da produção” é o estatuto profissional no trabalho via plataformas digitais. Na Alemanha, um sindicalista relatou que o estatuto de trabalhadores/as por conta própria pode dificultar para os sindicatos “integrá-los/as no sistema de codeterminação tradicional” (A - DGB, Pos. 4), uma vez que a possibilidade de celebrar acordos coletivos aplica-se principalmente ao/à trabalhador/a por conta de outrem. Só em casos excecionais é permitida a negociação coletiva para os/as trabalhadores/as por conta própria na Alemanha (Eurofound, 2022). Entretanto, um ativista relatou que o “desconhecimento da legislação nacional alemã” (A - A2, Pos. 4) pelos/as trabalhadores/as também é um problema. Nesse quesito, vale ressaltar que já existe registo de jurisprudência favorável ao reconhecimento do/a trabalhador/a como empregado da plataforma digital (cloudwork)
na Alemanha (Coelho, 2022; Weckenbach, 2021). Uma parlamentar chamou a atenção para a “necessidade de regulação” (A - P1, Pos. 2) dessa nova forma de exploração do trabalho. Em Portugal, sindicalistas denunciaram a existência de “falsos trabalhadores/as por conta própria” (P - Fectrans, Pos. 8; P - STRUP, Pos. 4) no setor do TVDE - questão que parece um problema persistente neste país, tendo em conta o caso dos “falsos recibos verdes” (Soeiro, 2015). Por isso, um investigador colocou a “qualificação contractual” (P- I2, Pos. 8) como um desafio ainda a ser enfrentado. Até o fechamento desse trabalho de tese não se percebeu nos estudos consultados do âmbito jurídico registo de jurisprudência favorável ao reconhecimento do/a trabalhador/a como empregado/a das plataformas digitais em Portugal (e.g. Amado, 2020; Moreira & Dray, 2022).
Um tema incontornável na discussão sobre o poder institucional (com repercussão em seus vários níveis) em Portugal é a Lei 45/20182 3. Afinal, com a entrada em vigor desta Lei no país as lutas dos/as trabalhadores/as do setor alcançaram um “novo sentido” (Costa, Soeiro & Miranda Filho, 2022). De acordo com as entrevistas, o cenário de surgimento desta legislação foi marcado por conflitos, salvaguarda de interesses empresariais, bem como ausência da participação dos/as trabalhadores/as do setor. Aliás, conflitos entre motoristas de transporte individual de passageiros/as e motoristas de plataformas digitais já foram relatados em outros estudos (Panimbang, Arifin, Riyadi & Utami, 2020). Como descreveu um sindicalista, a Lei teria surgido num contexto de “conflito com o setor dos táxis” (P - STRUP, Pos. 12). Um ativista corroborou a ideia de que a Lei atendeu apenas aos “interesses das plataformas digitais” (P - A2, Pos. 8) que operam em Portugal e uma trabalhadora a denúncia de que “os/as motoristas não foram consultados/as” (P - T2, Pos. 12) para sua criação.
Alguns aspetos positivos foram relatados a partir da vigência da Lei em Portugal.
Um sindicalista considerou a regulamentação em si como algo positivo, visto que “outros países não conseguiram sequer dar este passo” (P - STRUP, Pos. 12) ainda. Mesmo que feita às pressas, como já foi dito, uma trabalhadora e um trabalhador relataram que a vigência da lei trouxe certa “segurança jurídica” (P - T2, Pos. 10; P - T1, Pos. 2) para os/as motoristas.
Entretanto, muitos foram os aspetos negativos relatados. A criação pela Lei 45/2018 de um/a intermediário/a entre a plataforma digital e o/a motorista (“parceiros/as”) trouxe dificuldades adicionais para a mobilização do poder institucional no “nível da produção” estatuto). De acordo com um parlamentar, a Lei atual “isenta as plataformas das responsabilidades de empregadoras” (P - P1, Pos. 6). Um investigador esclareceu que ideias como a “pejotização”4 (P - I2, Pos. 4) estão na base da criação deste intermediário, ou seja, um/a motorista que se “empresarializou”. Um ativista relatou as dificuldades que o enquadramento legal como “empresário à força” (P - A2, Pos. 12) trouxe para a luta sindical. Um sindicalista reivindicou “que as plataformas sejam consideradas pela Lei como as entidades empregadoras” (P - Fectrans, Pos. 14). Com relação a este problema, a proposta do “Livro Verde” era de criação de uma “presunção de laboralidade adaptada ao trabalho nas plataformas digitais” (Moreira & Dray, 2022). Entretanto, essa ideia foi desvirtuada pelo governo de maioria absoluta do PS5, aquando da aprovação da proposta de Lei no âmbito da “Agenda do Trabalho Digno”6. Al fin y al cabo, foram aprovadas regras que podem permitir o reconhecimento da presunção de laboralidade entre o/a trabalhador/a e a plataforma digital (Martins, 2022; Soeiro, 2022). Vale lembrar que a figura do intermediário pode cumprir uma função de dividir os/as trabalhadores/as (Chicchi, Frapporti, Marrone & Pirone, 2020).
Uma queixa recorrente nas entrevistas foi o chamado “custo da atividade" (nível da produção). Nesse quesito, um ativista denunciou que muitas viaturas estavam a operar “abaixo dos valores mínimos” (P - A1, Pos. 10) identificados em estudo do setor. Outro ativista detalhou quais seriam estes “custos” (P - A2, Pos. 8). Finalmente, um trabalhador ressaltou que o aumento nos valores de “seguros e combustíveis” (P - T1, Pos. 8) no período recente prejudicou ainda mais os/as motoristas. A questão dos “custos associados ao serviço” / “custos da atividade” é tratada na Lei 45/2018 no art.º. 15 (itens 2 e 3), bem como no item 8 do “caderno reivindicativo TVDE” (FECTRANS, 2020).
Outro aspeto negativo, com implicações no “nível da produção”, teria sido o incremento de mão-de-obra disponível para a atividade. Nesse sentido, haveria um “excesso de licenças” (P - Fectrans, Pos. 14) no setor do TVDE, como relatou um sindicalista. Esse excesso, para um ativista, promove uma “concorrência selvática”. (P - A2 - Pos. 4) no setor. Na visão de um trabalhador, isso teria relação com a “segurança jurídica” (P - T1, Pos. 10), pois a Lei ao dar esta “segurança” aos/às motoristas teria atraído mais pessoas e diminuído os rendimentos. A necessidade do estabelecimento de um contingente geral de TVDE em Portugal é tratada no item 5 do “caderno reivindicativo TVDE” (FECTRANS, 2020).
A Lei 45/2018 pode estar ainda a contribuir no “nível do mercado” para o recrudescimento da “precariedade laboral”. Um ativista denunciou que os/as motoristas teriam que “trabalhar demasiadas horas” (P - A2, Pos. 8) para suprir suas necessidades diárias, portanto, salariais7 Um trabalhador denunciou a “inexistência de contratos de trabalho” (P - T1, Pos. 8) no setor - na contramão do que diz a Lei 45/2018, em seu artigo 10. Uma sindicalista denunciou também a precariedade e apontou o desafio do estabelecimento de “contratos coletivos” (P - CGTP, Pos. 2) de trabalho no setor de TVDE. Por fim, a necessidade da “contratação coletiva” (P - P1, Pos. 8) foi corroborada no depoimento de um parlamentar. O exercício da atividade neste setor mediante um “contrato escrito” entre motorista e operador de TVDE é um requisito contemplado na Lei 45/2018 no art.º. 10, item 2, alínea “e”, no entanto, permanece uma questão problemática. Daí que a necessidade de um contrato coletivo de trabalho no setor é tratada no item 3 do “caderno reivindicativo TVDE” (FECTRANS, 2020).
Ainda no “nível do mercado”, verificou-se que existem problemas na formação dos/as motoristas. Uma questão que foi recorrente nas entrevistas, que se expressou também na observação direta, bem como na análise documental foi a questão da proficiência na língua portuguesa. Por um lado, um sindicalista chamou a atenção para a necessidade da “equidade na formação” (P - Fectrans, Pos. 14), um ativista relatou a reivindicação à “autoridade competente” (P - A1, Pos. 22) e um trabalhador questionou o próprio “processo de formação” (P - T1, Pos. 12). A reivindicação da obrigatoriedade do domínio da língua portuguesa (nível B2) é uma questão tratada no item 7 do “caderno reivindicativo TVDE” (FECTRANS, 2020). Por outro lado, um investigador remeteu o problema para a “desproteção social” (P - I2, Pos. 2) nesse setor de atividade. Portanto, é necessária cautela para que este não seja mais um elemento de divisão entre os/as trabalhadores/as.
Um problema observado no “nível do sistema político” foram as brechas na Lei 45/2018 que favorecem as plataformas enquanto empresas transnacionais. Nesse aspeto, um sindicalista relatou que a “concorrência desleal” (P - Fectrans, Pos. 14) no mesmo setor de atividade não foi enfrentada pela legislação nacional. Uma parlamentar reiterou esta ideia e a sua posição “contrária defendida na ocasião da votação da Lei” (P - P2, Pos.4). Uma investigadora comparou a realidade portuguesa com outro país da Europa, onde plataformas como a Uber “não entraram até agora” (P - I1, Pos. 2).
Ainda no “nível do sistema político”, é importante registar que nenhum dos/as entrevistados/as reivindicou a elaboração de uma nova legislação, mas sim a “revisão da Lei existente” (P - Fectrans, Pos. 8; P - STRUP, Pos. 14; P - A1, Pos. 38; P - A2, Pos. 6; P - T1, Pos. 8), bem como a sua aplicação / fiscalização. De acordo com o art.º. 24 da Lei 45/2018, a fiscalização dela em Portugal é responsabilidade de um conjunto de entidades, nomeadamente: IMT, I. P.; AMT; Autoridade para as Condições do Trabalho; Instituto da Segurança Social, I. P.; Guarda Nacional Republicana; Polícia de Segurança Pública; Autoridade Tributária; Comissão Nacional de Proteção de Dados. A necessidade de fiscalização da Lei 45/2018 é uma das questões apontadas no item 4 do “caderno reivindicativo TVDE” (FECTRANS, 2020).
Tanto no setor do crowdwork quanto no gigwork, um problema que pode estar relacionado com o poder institucional ao “nível do sistema político” é a questão dos algoritmos. Na Alemanha, ficou evidente na fala de um sindicalista que existe uma preocupação da estrutura sindical com o crescente “controlo algorítmico dos/as trabalhadores/as” (A - DGB, Pos. 2). A falta de “transparência e a necessidade de regulação” (A - P2, Pos. 2) sobre a questão dos algoritmos foram apontadas também no depoimento de um parlamentar. Entretanto, já se encontram registos sobre o direito de participação de representantes de/as trabalhadores em questões de utilização de tecnologias digitais relacionadas ao desempenho neste país (Doellgast, Wagner & O’Brady, 2022; Krzywdzinski, Gerst & Butollo, 2022). Em Portugal, um ativista expressou preocupação com a definição dos “critérios para a atribuição de viagens” (P - A2, Pos. 16) para motoristas do TVDE. A necessidade de regulação dos algoritmos é defendida por um parlamentar, o qual chama a atenção para as brechas na legislação “pré- algorítmica” (P - P1, Pos. 8), bem como a crescente utilização destes nas relações de trabalho. Outra parlamentar denunciou a gravidade do problema para a vida dos/as trabalhadores/as e defendeu a necessidade de as “estruturas de representação dos/as trabalhadores/as participarem da definição de tais algoritmos” (P - P2, Pos. 16).
Ainda no “nível do sistema político”, um problema recorrente que tem demandado a mobilização de poder institucional são os bloqueios arbitrários por parte das plataformas. Na Alemanha, um trabalhador relatou que de uma forma geral trabalhadores/as não têm “quase nenhuma influência” (A - T1, Pos. 12)sobre as decisões da plataforma. Uma sindicalista reiterou o princípio de que nestes casos os/as “trabalhadores/as não devem ser abandonados/as” (A - IG Metall, Pos. 8). Problemas relacionados às responsabilidades legais de plataformas do cloudwork podem levar à mobilização de outras fontes de poder do trabalho (Niebler & Kern, 2020). Em Portugal, um trabalhador denunciou plataformas que “nem sequer explicam o motivo do bloqueio” (P - T1, Pos. 8) e impedem motoristas de trabalharem em sua única atividade profissional. De acordo com uma trabalhadora, motoristas correm o risco de serem “bloqueados por não aceitarem viagens que os/as dariam prejuízo financeiro” (P - T2, Pos. 20). Além disso, um ativista reivindicou que os/as “motoristas precisam ter meios de se defender dos bloqueios arbitrários” (P - A2, Pos. 20) por parte das plataformas digitais. O controlo (bloqueios) de motoristas por parte das plataformas está previsto no art.º. 14, item 2 da Lei 45/2018. Todavia, o fim dos bloqueios unilaterais por parte das plataformas é uma reivindicação tratada no item 8 do “caderno reivindicativo TVDE” (FECTRANS, 2020).
Finalmente, também no “nível do sistema político”, percebeu-se nos depoimentos dos/as entrevistados/as iniciativas junto ao governo central e as plataformas. Na Alemanha, um sindicalista referiu-se ao “papel da central sindical” (A - DGB, Pos. 14) junto a órgãos como o Ministério do Trabalho. Outra sindicalista mencionou a criação de um “Gabinete Provedor de Justiça / Ouvidoria” (A - IG Metall, Pos. 22) para compensar os desequilíbrios de poder institucional no setor do cloudwork. Três impactos positivos dessa experiência seriam: promove boas práticas de plataformas, cria pressões regulamentares no crowdworking alemão para além das plataformas participantes, bem como serve potencialmente como modelo para regular o crowdworking noutros países (Gegenhuber, Schuessler, Reischauer & Thäter, 2022). Em Portugal, um sindicalista também se referiu a “iniciativas junto ao Ministério do Trabalho” (P - Fectrans, Pos. 12), bem como ao Ministério do Ambiente (que tutela a atividade do TVDE). A criação de um grupo de trabalho no seio do Ministério do Ambiente é uma questão tratada no item 2 do “caderno reivindicativo TVDE” (FECTRANS, 2020). Ainda em conformidade com o depoimento do referido representante, uma trabalhadora reitera “iniciativas junto às plataformas” (P - T2, Pos. 36).
No “nível supranacional”, tanto na Alemanha como em Portugal, um tema recorrente nos documentos dos governos (e.g. BMAS, 2020; BTE, 2021) e nos documentos da estrutura sindical (e.g. CGTP-IN, 2022; Code of Conduct, 2017) foi o conceito de “trabalho digno” (Berg et al., 2018). Por isso, interrogou-se os entrevistados/as sobre o significado deste conceito para as iniciativas junto às plataformas digitais. Na Alemanha, sindicalistas trouxeram à tona “saúde, ascensão, qualificação e desenvolvimento pessoal no trabalho, remuneração justa, bem como classificação correta do vínculo empregatício” (A - DGB, Pos. 12; A - IG Metall, Pos. 8) como alguns dos determinantes desse processo. Com relação ao sentido para a representação coletiva, um ativista ateve-se à questão dos “canais de diálogo” (A - A1, Pos. 2) entre os/as trabalhadores/as. Em Portugal, um parlamentar alertou sobre os efeitos negativos do “modelo de negócios das plataformas digitais” (P - P1, Pos. 16) para a necessária dignidade no trabalho. Um sindicalista apontou que o conceito de trabalho digno deve-se materializar com o “cumprimento da constituição da República Portuguesa” (P - Fectrans, Pos. 18). Outro sindicalista denunciou a oposição do conceito de trabalho digno com o que chamou de “escravatura moderna digital” (P - STRUP, Pos. 14), denúncia presente na literatura (Antunes, 2018). Da mesma forma, um ativista reivindicou a necessidade de “adequação das plataformas digitais à legislação nacional” (P - A2, Pos. 22).
Outro tema relacionado ao “nível supranacional” que emergiu ao longo desta investigação diz respeito à “Proposta de Diretiva Europeia sobre o Trabalho via Plataformas Digitais” (European Commission, 2021). Durante as entrevistas vários/as interlocutores/as se reportaram a este documento. De uma maneira geral, pode-se dizer que essa Proposta foi saudada de forma positiva pelos/as entrevistados/as. Na Alemanha, um sindicalista destacou três questões presentes na Proposta: “o estatuto profissional, a transparência dos sistemas algorítmicos, o direito de acesso dos sindicatos às plataformas” (A - DGB, Pos. 16). Ainda com relação ao estatuto profissional, outra sindicalista e uma parlamentar destacaram a possibilidade de “inversão do ónus da prova para o empregador/a” (A - IG Metall, Pos. 14; A - P1, Pos. 10), questão explicitada no art.º. 5º, capítulo II, da referida proposta de Diretiva. Um ativista ressaltou que tal Diretiva seria também um passo importante para a “organização dos/as trabalhadores/as” (A - A2, Pos. 6). Em Portugal, uma sindicalista também destacou a questão do “estatuto” (P - CGTP, Pos. 4) dos/as trabalhadores/as como um dos aspetos positivos da proposta de Diretiva. Um investigador ressaltou que se esta Proposta for aprovada, “do ponto de vista jurídico, será um grande avanço” (P - I2, Pos. 6).
Contudo, algumas preocupações também foram observadas. Um sindicalista alemão, por exemplo, alertou que pode haver “resistência” (A - DGB, Pos. 16) por parte das empresas de plataformas e organizações patronais na questão do estatuto profissional. Essa proposta de Diretiva europeia foi mesmo um tema abordado em documentos das organizações de ativistas e sindicais na Alemanha (DGB, 2022; Fairwork Foundation, 2022; IG Metall, 2021). Pôde-se perceber algumas críticas nestes documentos. Por exemplo, em relação a ausência de qualquer medida para incentivar as plataformas a participarem de negociação coletiva (Fairwork Foundation, 2022). Além disso, os sindicatos reivindicam o direito de acesso à infraestrutura digital das plataformas, para que possam organizar-se e comunicar-se com os/as trabalhadores/as (DGB, 2022, p. 07). Em Portugal, uma parlamentar também expressou preocupação com a “distância entre o que se propõe e o que de facto pode vir a ser aprovado” (P - P2, Pos. 12). Por sua vez, uma sindicalista manifestou preocupação com a possibilidade de “fragmentação” (P - CGTP, Pos. 6) na representação dos/as trabalhadores/as. Uma investigadora alertou que no tema da “gestão algorítmica” (P - I1, Pos. 2) esta proposta de diretiva ainda é comedida. A gestão algorítmica é um tema tratado no capítulo III da proposta de Diretiva (European Commission, 2021). Diante dessas evidências, a Tabela 2 apresenta uma síntese da comparação de pontos fracos e fortes nas tentativas de mobilização de poder institucional analisadas.
Conclusão
Esta investigação tratou do modo como em dois países distintos, um no centro do capitalismo (Alemanha) e outro na semiperiferia (Portugal), têm-se desenvolvido iniciativas sindicais visando à regulação do trabalho via plataformas digitais (cloud- e gigwork). Para tanto, o instrumental teórico - analítico utilizado foi a ARP. Em termos metodológicos, realizou-se um estudo de casos envolvendo duas estruturas sindicais: o IG Metall e o STRUP. O foco da discussão foram as tentativas de mobilização do “poder institucional”.
Os resultados do estudo de casos evidenciaram que: na Alemanha, o estatuto profissional de trabalhador/a por conta própria (ou, Solo-Selbstständige) pode trazer algumas dificuldades para a mobilização de “poder institucional” do trabalho. Nesse sentido, as evidências encontradas corroboraram a constatação da ausência de acordos coletivos no setor neste país (Krzywdzinski & Gerber, 2020). Entretanto, uma série de iniciativas sindicais parecem buscar compensar a falta deste recurso de poder, nomeadamente: o código de conduta para o trabalho (crowdsourcing / crowdworking) pago (Code of Conduct, 2017), a ouvidoria (Ombudsstelle) dos signatários deste código (IG Metall, 2018), intervenções junto ao Governo e Plataformas etc.
Já em Portugal, a criação através da Lei 45/2018 de um elemento intermediário (operador de TVDE; vulgo “parceiro/a”) na relação caracterizada como um sistema triangular - trabalhador/a, empresa, cliente (Schmidt, 2017) - é um elemento que não só dificulta a compreensão do modelo de negócios das plataformas digitais, mas também a mobilização de “poder institucional” pelo trabalho organizado. No entanto, a presença de um intermediário nesse modelo de negócios não é uma novidade (e.g.Drahokoupil & Piasna, 2019; Vandaele et al., 2019). Contudo, diversas iniciativas da estrutura sindical analisada têm como foco a revisão de aspetos desta Lei, sobretudo o reconhecimento de vínculo de emprego entre motorista e plataforma.
Em seu conjunto, essas iniciativas podem contribuir para a regulação do trabalho via plataformas digitais, na medida em que enfrentam o desafio da renovação sindical concomitantemente ao da representação de interesses coletivos de trabalhadores/as inseridos/as na economia capitalista de plataformas. Por fim, a ausência de uma abordagem específica, como a ARP, que permita compreender a dinâmica sindical, pode contribuir para a impressão de que há uma “falta de interesse de movimentos laborais” (Boavida & Moniz, 2022), particularmente de representar os interesses coletivos de regulação do trabalho via plataformas digitais.