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Sociologia, Problemas e Práticas

versão impressa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.95 Lisboa mar. 2021  Epub 01-Ago-2021

https://doi.org/10.7458/spp20219513946 

Artigos Originais

Experiências em praxe: uma análise a partir de retratos sociológicos de estudantes de 1.º ano

Praxe experiences: an analysis based on sociological portraits of first year college students

Expériences de praxe: une analyse des portraits sociologiques d'étudiants de 1ère année

Experiencias de praxe: un análisis de retratos sociológicos de estudiantes de 1er año

1 Instituto de Sociologia da Universidade do Porto (IS-UP), Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP), Porto, Portugal, inesmaia949@gmail.com


Resumo

A partir de dois estudos de caso da Universidade do Porto, dedicámo-nos ao estudo do papel da praxe no processo de integração dos estudantes recém-chegados ao ensino superior. Este artigo discute 15 retratos sociológicos construídos a partir dessas experiências de 1.º ano. Problematizamos a eficácia da praxe enquanto principal mecanismo de integração e socialização na nova realidade contextual, concluindo que esta se apresenta como contexto de ativação, favorecimento, criação e inibição de disposições e competências. Identificamos, ainda, diferentes perfis, em que a multiplicidade de modos de relação com o fenómeno se consubstancia.

Palavras-chave: praxe; socialização; retratos sociológicos.

Abstract

Based on two case studies of Porto University, we studied the role of praxe in the integration/inclusion process of the newly arrived students. This article discusses 15 individual portraits based upon those experiences. We studied the efficiency of praxe in social interaction, as the most important mechanism of integration and socialization in the new reality, concluding that it is a context of engagement, advantage, creation and inhibition of provisions and competences. We have also identified different profiles, in which is based the multiplicity of interaction modes to the phenomenon.

Keywords: praxe; socialization; individual portraits.

Résumé

Sur la base de deux études de cas à l’Université de Porto, nous nous sommes consacrés à l’étude du rôle de la praxe dans le processus d’intégration des nouveaux élèves à l’Université. Cet article englobe 15 portraits sociologiques construits à partir de ces expériences. Nous avons étudié l’efficacité de la praxe comme le principal mécanisme d’intégration et de socialisation dans la nouvelle réalité contextuelle et on a conclu que c’est un contexte d’activation, de favorisation, de création et d’inhibition des dispositions et des compétences. Nous avons également identifié differents profils, dans lesquels on peut concilier la multiplicité des moyens de relation au phénomène.

Mots-clés: praxe; socialisation; portraits sociologiques.

Resumen

A partir de dos estudios de caso en la Universidad de Porto, se dedicó al estudio del papel de la praxe en el proceso de integración de los estudiantes recién llegados a la Universidad. Este artículo discute 15 retratos sociológicos construidos a partir de esas experiencias. Problematizamos la eficacia de la praxe, como principal mecanismo de integración y socialización en la nueva realidad contextual, concluyendo que ésta se presenta como un contexto de activación, favorecimiento, creación e inhibición de disposiciones y competencias. Identificamos, además, diferentes perfiles, en que la multiplicidad de modos de relación con el fenómeno se consubstancia.

Palabras-clave: praxe; socialización; retratos sociológicos.

Notas introdutórias acerca do estudo do fenómeno da praxe

Pese embora a sua centralidade no quadro das sociabilidades estudantis universitárias, bem como a visibilidade mediática de que, a espaços, vem sendo alvo, a praxe tem sido pouco escrutinada cientificamente.1 A produção sobre esta é assinalavelmente reduzida, sendo de destacar a tese de mestrado de Rita Ribeiro (2001) sobre estas práticas na Universidade do Minho, os artigos do antropólogo Aníbal Frias (2003, 2004), e os mais recentes contributos de Estanque (2016) e do estudo nacional coordenado por João Teixeira Lopes e João Sebastião (2017). Neste trabalho, os autores sistematizam, a partir da dimensão privilegiada, os contributos já produzidos acerca deste fenómeno, ancorando-os, essencialmente, em sete linhas de análise. A partir desta proposta de sistematização, destacamos referências consideradas relevantes, importando reter que convergem nestas trabalhos com níveis de aprofundamento significativamente distintos: (1) definição conceptual de praxe e análise do seu percurso histórico, características e funções (Cruzeiro, 1979); (2) estudo da praxe enquanto ritual de passagem ou mecanismo de integração (Ribeiro, 2001; Dias e Sá, 2013); (3) a violência e o exercício do poder (Estanque, 2016); (4) perceções e modos de viver e sentir a praxe a partir dos seus protagonistas (Rebelo e Lopes, 2001; Ferreira e Moutinho, 2007); (5) pensar a juventude a partir da praxe (Estanque, 2016); (6) o consumo de álcool em praxe (Grácio, 2009; Estanque, 2016); (7) estereótipos em torno dos estudantes que participam na praxe (Lopes, 2011). O modo como a sexualidade é retratada e as suas manifestações em praxe, não sendo ónus de nenhum trabalho, é uma dimensão mencionada em vários.

Por sua vez, a pesquisa a que nos dedicámos partiu da assunção da praxe como fenómeno social total (Mauss, 2011 [1950]); por outras palavras, a praxe como um “fenómeno complexo e multiforme [que] participa do ritual, do lúdico, do festivo, do jurídico, do económico, do artístico, do político; associa práticas, objetos, uma gíria, insígnias, gestos, palavras, literaturas, formas gráficas, elementos sonoros; implica inúmeros indivíduos, grupos, entidades e organismos” (Frias, 2003: 82). Estanque (2016), acrescentará que a praxe constitui um fenómeno que deve ser compreendido como uma instituição social, “no sentido em que corresponde a um conjunto de crenças, de ideias e modos de conduta estabelecidos e partilhados pela sociedade” (ibidem: 95).

Não obstante, o objeto deste artigo não é, em estrito senso, a discussão em torno da praxe como fenómeno social concreto, nem acerca das instituições que compõem esta sua totalidade. Não se pretende com o exercício que aqui avançamos ignorar a praxe enquanto processo de estruturação social, nem ocultar a complexidade da teia que tece sobretudo no que diz respeito às esferas do poder, da violência e da dominação. Optamos privilegiar neste artigo a discussão em torno do papel hegemónico que a praxe desempenha hoje enquanto mecanismo de receção e socialização no ensino superior, pelas consequências que esse papel estruturante comporta na definição de percursos em praxe e no ensino superior. Debruçamo-nos sobre esta discussão a partir de 15 retratos sociológicos de primeiranistas das Faculdades de Engenharia (FEUP) e de Letras (FLUP) da Universidade do Porto. Pretendemos compreender as experiências imediatas destes estudantes e a narrativa que constroem sobre elas (representações, significados atribuídos, sentido das ações, reflexividade sobre o fenómeno, etc.), num exercício, em última análise, de problematização da eficácia socializadora da praxe, assumida como contexto de criação, ativação, favorecimento e inibição de disposições e competências. Enquadramos, de seguida, estas experiências em perfis-tipo, sintomáticos de diferentes modos de relação com o fenómeno.

Pluralidade disposicional e reflexividade

Antes de avançarmos para a análise dos retratos, assinalamos o que entendemos ser a sua pertinência enquanto meio para compreender os modos como os indivíduos se pensam a si e aos contextos onde se movem. Na esteira de Bernard Lahire (2003, 2004), procuramos descortinar, através dos retratos sociológicos construídos, os modos como estes estudantes refletem acerca da praxe e da sua experiência na cadeia de rituais em que esta se estrutura, analisando essa singularidade individual no quadro de um cruzamento de diferentes forças e contextos sociais de ação - ou, por outras palavras, deslindamos como se manifesta, em cada uma destas experiências individuais, o cruzamento de dimensões estruturais, institucionais, interacionais e biográficas (Lopes et al., 2018).

A análise de cada uma das experiências, ou a leitura vertical de cada retrato, demonstra pertinência pela possibilidade de proporcionar elementos de singularidade ou contratendência - se, por um lado, encontramos nos retratos elementos coincidentes que se traduzem em experiências similares entre estudantes, por outro, contamos com heterogeneidade entre estas, fruto da multiplicidade de contextos e quadros de interação em que os indivíduos se movem, bem como da diversidade de papéis que são colocados a representar e das orientações ativadas para esse fim. Não obstante, em simultâneo, os retratos podem ser espelho de regularidades - as experiências apesar de singulares, e por isso, únicas, são enquadráveis em tendências (Lopes et al., 2018).

Esta análise não deve, da mesma forma, dispensar o confronto entre retratos, ou a análise horizontal destes, dado que esta permite relevar consonâncias e dissonâncias (Lopes, 2012). É, deste modo, possível apontar de que forma convergem ou divergem as várias experiências individuais.

Ora, este exercício interpretativo supõe a compreensão das disposições incorporadas por estes estudantes, bem como da multiplicidade de formas de perceção e interpretação em que estas se consubstanciam no quadro das suas experiências em praxe. Compreendemos disposição como proposta por Lahire (2003, 2004) e trabalhada noutros textos (Caetano, 2011; Lopes, 2012; Lopes et al., 2015; Lopes et al., 2018) - “não uma resposta simples e mecânica a um estímulo” (Lahire, 2004: 30), mas uma forma coerente e durável de pensar e agir, definida pela sua génese e determinada pela sua trajetória, na qual ganha ou perde força, consoante é ativada (ou não) pelos contextos sociais de ação.

A respeito desta questão, breves notas que importa reter, a partir de Lopes et al. (2018): (1) é necessário ter em conta que muitas destas disposições não o são efetivamente, dado que existem mais como recursos, capacidades ou competências mobilizadas pelos indivíduos em situações ou contextos particulares; (2) as disposições existem sempre em estreita ligação com os contextos, dado que “são ativadas, inibidas e/ou transformadas [por estes]”, o que significa que “disposicionalismo e contextualismo exigem-se mutuamente” (ibidem: 94); (3) importa compreender, na sequência do apontado imediatamente acima, que existem, portanto, disposições mais contextualizadas do que outras, no sentido em que nos remetem para certo contexto daquele indivíduo (a “família”, a “escola secundária”, a “faculdade”, a “praxe”) ou para uma fase/momento particular da sua vida (a transição para o ensino superior, a autonomização face à família, a constituição de novas redes relacionais, a “entrada” no universo da praxe).

Acrescentamos à proposta de Lahire (2003, 2004), as dimensões da reflexividade, como apontadas por Melo (2005) e Caetano (2011). Para Melo (2005), reflexividade supõe, além do processo de análise e reflexão para o qual o próprio conceito remete em primeira instância, a capacidade que os atores possuem de repensar as suas práticas e de as transformarem. Acrescenta Caetano (2011) que esta condição para definir estratégias, intrínseca aos exercícios da reflexividade, é mediada pelas circunstâncias sociais em que os indivíduos estão inseridos e pelos recursos a que têm acesso. Deste modo, a dimensão da reflexividade - a que se podem somar dimensões de intencionalidade e antecipação do futuro (Lopes et al., 2018) - são fundamentais para compreendermos as ações e as dinâmicas dos contextos em que são conduzidas, mas sobretudo para deslindarmos as interpretações que os indivíduos delas fazem.

Consideramos pertinente esclarecer, antes de mais, e apesar de nos referirmos à capacidade agencial dos sujeitos quando falamos dos seus exercícios de reflexividade, que não entendemos que esta emerge de vazios sociais. Isto é, analisar a reflexão dos sujeitos acerca de si próprios e das suas práticas implica perspetivar as estruturas sociais como conjuntos de regras e recursos acionados em contextos particulares - “o conceito de reflexividade é aqui entendido como uma propriedade emergente das pessoas que [lhes] permite […] pensarem conscientemente sobre si [mesmas], tendo por referência as suas circunstâncias sociais” (Caetano, 2011: 164). Nas palavras de Bourdieu (1997), falamos de espaço dos possíveis - as possibilidades que se oferecem ao indivíduo, e a partir das quais este orienta a sua ação, encontram-se dependentes da posição que ocupa e da avaliação que dela faz, a partir de um conjunto de disposições incorporadas, indissociáveis das suas origens sociais.

A esta proposta de que as estruturas delimitam as possibilidades reais de ação, releva acrescentar que há ainda ações que não resultam propriamente de processos reflexivos, dado que os indivíduos possuem um conhecimento tácito do mundo que os faz, em determinadas circunstâncias, agir sem ativar estratégias racionais - o papel do sentido prático na definição das condutas dos sujeitos (Bourdieu, 1997; Caetano, 2011).

Sublinhemos, também, porque especialmente relevante dadas as características das experiências em análise, que os exercícios de reflexividade não comportam obrigatoriamente criatividade ou questionamento crítico. Caetano (2011) sublinha esta ideia alertando para os processos de reprodução social de que os indivíduos são protagonistas, bem como para o caráter pré-reflexivo, ou mesmo passivo, de parte significativa das suas ações. Recorda, uma vez mais, que mesmo a capacidade de criar e inovar não se encontra desligada da dimensão hierárquica da vida social, ou seja, a criatividade e a condição de questionamento crítico encontram-se dependentes dos contextos e da posição que o indivíduo neles ocupar.

Experiências em praxe: os retratos sociológicos

Tendo em conta os objetivos específicos das entrevistas aos estudantes primeiranistas, e tendo-as como ponto de partida, entendeu-se pertinente a construção de retratos sociológicos. Estes resultam, portanto, da reflexão em torno dos dados captados através de cinco categorias de análise, sensivelmente as mesmas em torno das quais o guião de entrevista se estruturava: (1) caracterização - idade, curso frequentado, situação em relação à residência permanente, percurso escolar até à entrada no ensino superior (ES) e contexto social de origem; (2) expectativas e representações - em relação ao curso, ao ES, à vida de estudante universitário e ao futuro profissional, bem como o confronto destas com a realidade; (3) processo de transição para e integração no ES - mecanismos e atividades institucionais, papel da praxe nesse processo (motivações para a participação, papel no processo de integração, possibilidade de alternativas, relações entre quem participa e quem não participa, etc.) e balanço deste processo; (4) a experiência em praxe - expectativas, representações, perceções e análise reflexiva em torno das suas diferentes dimensões, das especificidades de cada vivência às regularidades do fenómeno (atividades, cerimónias, funções, valores, símbolos, poder, violência, género); (5) participação noutras esferas da faculdade e participação política/cívica.

Os retratos contaram com estas categorias de análise como linhas condutoras, acabando, contudo, por serem destacadas em cada retrato as dimensões que marcaram de forma mais premente cada experiência.2

A cada retrato foi atribuído um título, não com o objetivo de simplificar a sua leitura ou reduzir a experiência que reflete a um traço dominante, mas porque cremos que o título pode exprimir o coeficiente de singularidade de cada retrato (Lopes et al., 2018) - isto é, ser um fio condutor “para a leitura integral [do mesmo] e uma sugestão de confronto com regularidades ou padrões [não forçando] uma coerência artificial” (ibidem: 97).

No que se refere à seleção dos entrevistados, os critérios a cumprir foram os seguintes: (1) por ter sido privilegiado como ponto de partida o papel da praxe no processo de integração dos primeiranistas, os estudantes entrevistados teriam de frequentar o 1.º ano de licenciatura ou mestrado integrado de uma das instituições de ensino superior (IES) em estudo e “estarem em praxe”, que é o mesmo que dizer que, ainda que podendo ter níveis de adesão ao fenómeno diferenciados, todos se deveriam encontrar a participar na praxe desde o início do ano letivo até àquele momento (as entrevistas foram realizadas nos últimos dois meses do ano letivo); (2) procurar variedade ao nível do curso frequentado; (3) contar com alguma diversidade de género.

Dos critérios enunciados, apenas se revelou difícil o cumprimento da diversidade ao nível do curso frequentado, dado que, apesar de termos entrevistado estudantes de cinco cursos diferentes, a variedade ao nível de cada instituição não foi a maior (da FLUP e da FEUP, foram entrevistados, respetivamente, estudantes de dois de três cursos). Tal deveu-se a questões de disponibilidade (ou falta dela) para contribuir para esta pesquisa, obstáculo com que cedo nos confrontámos no trabalho de campo e que acabaria por condicionar o leque de possibilidades no que concerne aos entrevistados. Notemos, ainda, que os contactos estabelecidos no terreno estiveram dependentes, em grande medida, das próprias redes de sociabilidade dos estudantes que iam contribuindo para a pesquisa, não sendo, deste modo, difícil de compreender que se tenham criado cadeias de contactos por curso.

Repare-se também que, apesar de obtida, a diversidade de género que se garantiu no leque de entrevistados resultou, sem grande esforço, da própria realidade que marca os contextos - num total de 15 entrevistados de 1.º ano, na FEUP, contexto de sobrerrepresentação masculina, foram entrevistados cinco rapazes, enquanto na FLUP, contexto de sobrerrepresentação feminina, foram entrevistadas cinco raparigas. Tal não representa, obrigatoriamente, um defeito, dado que fazemos desta forma justiça à dinâmica que caracteriza estes cenários - estudantes do sexo feminino em maior número em termos gerais no ES, dinâmica que só se altera quando se atende à distribuição por áreas de estudo, em que as engenharias fogem de forma evidente a esta regra da maioria feminina (Machado et al., 2003).

No quadro 1, encontra-se a síntese dos elementos de caracterização dos estudantes primeiranistas entrevistados.3

Quadro 1 Síntese dos elementos de caracterização dos estudantes primeiranistas entrevistados 

* As entrevistas dos estudantes de 1.º ano foram dadas sob anonimato. Os nomes apresentados são fictícios.

** Nenhum dos estudantes entrevistados se encontrava a frequentar o curso em regime de tempo parcial ou lhe foi atribuído o estatuto de estudante-trabalhador

A eficácia socializadora da praxe

Como apontado acima, coube a esta pesquisa perceber que papel ocupa a praxe no processo de integração destes estudantes primeiranistas. Deste modo, a partir dos retratos elaborados, pretendíamos compreender os contextos e fatores que favorecem a eficácia socializadora da praxe e de que forma ela determina as experiências de primeiro ano destes estudantes. Importou para isso compreender que disposições preexistentes são ativadas em contexto de praxe, bem como aquelas que aí são favorecidas, criadas ou inibidas, e quais dessas são potencialmente transferíveis pelos retratados para outros campos de ação.

Em primeiro lugar, sublinhamos a homogeneidade entre retratos quanto à “integração” e “desenvolvimento de competências” como dimensões favorecidas pela praxe, bem como a criação de “competências consideradas favoráveis ao sucesso profissional”. Esta primeira nota realça, desde logo, a transversalidade da eficácia socializadora da praxe, sob dois prismas consequentes - primeiramente, apresentando-se como mecanismo de integração central e, posteriormente, pelas competências que permite desenvolver ou adquirir, compreendidas como transferíveis para outros contextos da vida destes estudantes (a título de exemplo, competências comunicacionais, trabalho em equipa, responsabilidade, respeito pela hierarquia). Parece residir aqui parte da força simbólica, mas também prática, da praxe - ela integra na nova realidade contextual, com uma eficácia e rapidez inigualáveis por outras estruturas ou grupos e, uma vez nesta, transmite, através da sua organização, da natureza das suas práticas e dos seus objetivos, um projeto de socialização que ultrapassa os seus limites espaciotemporais. Acrescenta-se, deste modo, à eficácia socializadora no ES, potencial de socialização para o futuro - isto é, a incorporação de aprendizagens que os estudantes consideram favoráveis, sobretudo, para uma bem-sucedida integração e escalada hierárquica no mercado de trabalho.

Praticamente transversal, sobressai também a criação de “disposições relacionais”, associadas a um sentimento de pertença ao grupo, apenas não observáveis nos retratos de Hugo e André que, como aprofundaremos adiante, espelham experiências marcadas por uma sensação de desapego e de sentimento crítico aprofundado, respetivamente. Em todos os outros é identificável a criação deste sentimento de pertença ao grupo, naquilo que se apresenta como indiscutível chave-mestra do fenómeno - a constituição de uma identidade coletiva, resultante de interações que atribuem aos membros do grupo a dimensão de atores coletivos, num processo que envolve negociações, mas também a aceitação tácita das regras do grupo. O sentimento de pertença ao grupo é um elemento valioso para a interpretação destes retratos e do fenómeno da praxe, dado que tendem a estar-lhe associadas experiências vividas com intensidade, a que os estudantes de dedicam com entrega e sacrifício com o objetivo de constituírem o que consideram grupos fortemente unidos.

Em segundo lugar, identificamos o que se apresenta ativado em contexto de praxe: (1) “disposições familiares de incentivo direto à praxe”, onde se colocam as experiências que resultam, por um lado, de um incentivo explícito por parte de familiares ou amigos mais velhos que contam com experiências pessoais avaliadas positivamente (Sara, Elsa, Eva, Marta), e por outro, de um desejo de dar continuidade a um legado familiar praxístico (João); (2) “expectativas/representações em relação à ”vida académica", identificadas em retratos que, essencialmente, reproduzem discursos em torno da tradição como legitimadora do fenómeno ou que tendem a entender a praxe como um marco da passagem pelo ES e definidora da “experiência académica” (João, Diana, Maria, Luís, Clara); (3) “disposições de contextos de socialização prévios (família, escola), do ponto de vista dos valores”, onde a experiência em praxe, apesar de comportar aprendizagens próprias, ativa, sobretudo no que diz respeito aos valores, disposições criadas em contextos anteriores (Hugo, Elsa, Marta, Luísa).

A terceira constatação diz respeito à inibição de “situações de receio, angústia e ansiedade associados ao ingresso no ES” e “disposições de abandono do ES”. Como observável no quadro 2, os retratados que se identificam nestas últimas, surgem também entre aqueles que parecem encontrar na praxe a capacidade de “criação de disposições afetivas fortes”. Parece pertinente ler estas disposições/competências em articulação com o momento crucial em que a praxe surge na vida destes estudantes - momento de transição para o ES, a que se podem associar mudanças noutras esferas da vida (familiares, sociabilidades, lazer); momento de confronto entre as representações/expectativas prévias e a realidade; momento de instabilidade emocional e insegurança; momento que marcará de forma determinante o sucesso dos seus processos de integração e adaptação ao novo contexto institucional. É neste cenário que a sua capacidade para transmitir segurança se revela eficaz - como primeiro grupo que se apresenta aos estudantes de forma organizada, estruturada e com uma proposta, atribuindo a cada um o seu lugar e o papel que deve desempenhar, num jogo onde as normas a cumprir estão estabelecidas e a ordem encerrada nas fronteiras do ritual. Não é, por isso, de estranhar que os estudantes que identificam na praxe um meio para contornar esta insegurança e ansiedade típicas do processo de transição - ou, no caso de Marta, um contributo para permanecer no ES, após ponderada a desistência fruto do desequilíbrio e inadaptação experienciados - sejam também estudantes que criem fortes disposições afetivas. Não obstante, como o quadro também permite sublinhar, há estudantes que criam estas disposições, sem, em simultâneo, associarem a praxe à diminuição da turbulência do processo de transição.

Quadro 2 Disposições/competências 

Última observação: a praxe parece criar “outras disposições relacionais”, associadas a grupos como as tunas que, podendo não ser praxísticos, tendem a pertencer ao imaginário da “vida académica” que endereçámos acima e, em simultâneo, inibir outras que, por sua vez, se coloquem como alternativas à praxe. É curioso e merece ser tido em conta, que em apenas três retratados se encontra este tipo de inibição, e que a praxe parece não inibir na maioria dos entrevistados o interesse por grupos alternativos - estes retratados tendem a demonstrar que, apesar de avaliarem positivamente as suas experiências em praxe, teriam tido disponibilidade ou curiosidade em ter contacto com grupos com propostas distintas das da praxe aquando do primeiro contacto com a faculdade, havendo mesmo estudantes que, em exercícios retrospetivos, sugerem que possivelmente teriam optado por integrar um desses grupos, em detrimento da praxe.

Numa primeira análise, podemos, então, concluir que a praxe se apresenta com uma eficácia socializadora fortíssima, evidente de forma transversal a todas as experiências. Como se adivinha desde já, e aprofundaremos adiante, a amplitude dos efeitos desta socialização é variável consoante o estudante, ficando evidente que se para alguns esta determinará todas as dimensões da experiência, para outros a praxe e os seus efeitos socializadores ficam circunscritos a uma dimensão ou fase da experiência, acabando por ser matizados por outros fatores, contextos de socialização ou interações. Encontrada esta multiplicidade de modos de relação com o fenómeno, importa, então, desmontar estes retratos entre o que identificámos como coerência e heterogeneidade disposicionais.

Modos de relação plurais: coerência e heterogeneidade

Consideramos, em termos analíticos, que existe coerência disposicional quando nos encontramos perante retratos cujas experiências mobilizam e reforçam quadros de socialização favoráveis à praxe. Estes retratos destacam-se por aquilo que identificamos como narrativas significativamente valorativas da experiência. Por outro lado, encontramos heterogeneidade disposicional nos retratos marcados por experiências vividas entre extremos, que espelham uma adesão ao fenómeno repleta de conflitos internos e tensões.

Importa reter que todos os estudantes entrevistados avaliam positivamente a sua experiência em praxe e que em nenhum caso nos encontramos perante experiências de rutura com esta. O exercício analítico de dividir estes retratos entre coerência e heterogeneidade disposicional prende-se apenas com a necessária problematização de retratos que espelham multiplicidade nos modos de relação com o fenómeno. Ora, estamos perante uma tipificação que serve propósitos de leitura horizontal dos retratos, não traduzindo uma classificação exclusiva destes - cada retrato espelha experiências determinadas por múltiplos fatores, sendo o seu enquadramento em perfis-tipo um exercício que apenas permite destacar tendências.

Nos retratos marcados por coerência disposicional, encontrámo-la manifestada de três modos, que traduzimos em três perfis-tipo: (1) experiência marcada por disposições familiares favoráveis; (2) experiência marcada por avaliação idílica do fenómeno; (3) experiência marcada por intensa carga emocional.

Os retratados que se enquadram no primeiro perfil-tipo são Sara, João e Luísa. As suas experiências em praxe encontram-se intimamente dependentes das suas famílias, ainda que de modos diferenciados - Sara é motivada pelos irmãos mais velhos, João pelo desejo de seguir as pisadas praxísticas das duas gerações antecedentes e Luísa encontra nos pais o suporte emocional desta sua experiência - como os seguintes excertos sublinham.

Sara - Os irmãos como referência

Sara tem 18 anos e encontra-se a frequentar o 1.º ano do mestrado integrado em Engenharia Civil na FEUP. Entrou na sua 1.ª opção em termos de curso e instituição, chegando ao ES com expectativas altas, que afirma não terem sido defraudadas. Partindo de um contexto de origem escolarizado, a referência de Sara são os dois irmãos mais velhos, a frequentar a FCUP. A entrada no ES e, mais especificamente, as diferentes dimensões da praxe (as vivenciadas e as potenciais) têm na família a sua grande referência: os pais tiveram um papel importante na escolha do curso, tendo também ajudado a construir expectativas positivas em relação ao futuro profissional; e, sobretudo, os irmãos, que, pelo que foram partilhando das suas experiências, ajudaram a moldar as expectativas e representações de Sara, acima de tudo, acerca da praxe e do seu universo, recorrendo Sara, inúmeras vezes, às experiências dos irmãos, reproduzindo interpretações destes, mas sobretudo utilizando-os como meio de legitimação do seu próprio caminho.

João - O peso da tradição familiar

João tem 18 anos e é estudante do 1.º ano de mestrado integrado em Engenharia Civil na FEUP. Oriundo de um contexto altamente capitalizado culturalmente, integra a 3.ª geração da sua família a frequentar o ES, tendo as experiências dos seus familiares moldado desde cedo as suas representações. A sua entrada no ES ficará assim marcada pelo início do cumprimento de um sonho, o de dar continuidade a uma tradição familiar praxística, intento para o qual remeterá diversas vezes, com especial incidência sobre a figura do avô, sua referência central. João deseja intensamente dar continuidade a esse legado, transportando consigo o desígnio de uma tradição quase mística e repleta de solenidade, profundamente enraizada e inquestionável.

Luísa - Os pais como alicerce da experiência

Luísa tem 19 anos e é estudante do 1.º ano da licenciatura em Sociologia na FLUP. A sua experiência em praxe encontra-se claramente marcada pelo apoio dos pais, dimensão com peso determinante nas suas opções. Sendo o primeiro elemento da sua família a frequentar o ES, é claramente oriunda de um contexto familiar onde a sua educação foi assumida como prioridade - é a própria quem demonstra ter-se dedicado com afinco a essa esfera da vida. No que diz respeito de forma direta à praxe, foi sendo o apoio dos pais que foi ditando o seu caminho: ainda antes da entrada no ES, a questão foi conversada com estes e, uma vez em praxe, eles acompanham a experiência de perto e dão conselhos. Em toda a sua experiência, destaca as cerimónias a que os pais assistiram, afirmando mesmo que, caso o apoio destes não existisse, questionaria a sua continuação em praxe.

No segundo perfil-tipo encontrado, enquadram-se as experiências marcadas por avaliações idílicas do fenómeno. Ainda que de maneira diferenciada, estes retratados partilham narrativas hipervalorativas da praxe e da sua praxe, respetivamente.

Pedro - A praxe como exercício de liberdade individual

Pedro tem 19 anos e encontra-se a frequentar o 1.º ano do mestrado integrado em Engenharia Eletrotécnica e de Computadores na FEUP. Parte de um contexto de origem escolarizado, partilhando com alguns elementos da sua família a área de formação. Experimenta a praxe por curiosidade, ficando convencido quando percebe que não corresponde à ideia negativa que tinha construído a partir dos média. Desenhará em torno da sua vivência em praxe, mas sobretudo num exercício de análise mais amplo sobre o fenómeno, uma narrativa baseada numa conceção de liberdade individual. A praxe não parece ser para Pedro o resultado de negociações entre indivíduos a interagir num contexto específico de ação - a praxe é o que cada um perceciona dela, depois de ter feito a escolha individual de aderir a ela, processo que culminará, ou numa adesão praticamente acrítica (como consequência de se ter aceite integrar o grupo), ou no inevitável corte. Por isso, todos devem experimentar, num exercício de liberdade.

Diogo - A praxe ideal

Diogo tem 18 anos e frequenta o 1.º ano da licenciatura em História na FLUP. É a primeira pessoa da sua família a frequentar o ES. Fará um balanço positivo do processo de transição, afirmando mesmo sentir-se mais realizado na faculdade do que em qualquer outro momento do seu percurso escolar. A sua experiência em praxe tem como chave-mestra a dimensão relacional, sendo indiscutível o peso das relações que construiu na avaliação extraordinariamente positiva que faz da mesma. A narrativa que partilha acerca da sua experiência, mas sobretudo acerca da “sua praxe”, dá-nos a conhecer um reduto irrepreensível - por oposição à imagem negativa que outros mediatizaram, que critica de forma recorrente, constrói a imagem de uma praxe ideal.

O terceiro perfil-tipo encontrado congrega as experiências narradas com intensa carga emocional. Como os seguintes excertos ilustram, a praxe é marcante para estes estudantes, numa esfera individual, pelo que representa do ponto de vista de mudança, crescimento e superação pessoais, ou numa esfera coletiva, pela capacidade de criar disposições afetivas fortíssimas.

José - Uma aventura na nova vida

José tem 19 anos e encontra-se no 1.º ano do mestrado integrado em Engenharia Eletrotécnica e de Computadores na FEUP. Parte de um contexto familiar escolarizado, o que, ainda assim, acredita não o ter preparado para o confronto com a nova realidade. A transição para o ES marca, não apenas uma mudança de ciclo de estudos, mas o início de um novo capítulo na sua biografia; uma “nova vida”, associada a um “novo ambiente”. A sua experiência em praxe vai também no encalço desta noção: surpreendendo-o positivamente, a praxe marca a sua experiência na universidade sobretudo por ter introduzido um novo elemento na sua vida, ajudando a quebrar a dinâmica de aulas/estudo que marcara o seu ciclo de estudos anterior. Associa-a por isto a uma “aventura”.

Marta - Um exercício de superação pessoal

Marta tem 19 anos e é estudante de 1.º ano da licenciatura em Sociologia na FLUP. Parte de um contexto familiar escolarizado, do qual sente ter beneficiado de forma direta por ter contado com apoio de quem possuía “uma experiência que [ela] não tinha”. Entra na sua 2.ª opção, acalentando expectativas iniciais pouco elevadas, sendo o confronto com a nova realidade muito atribulado. O desfasamento entre a representação que tinha e esta primeira perceção, fá-la colocar a hipótese de desistir. Confidencia ter estado “muito receosa” em relação à praxe, não tendo ficado convencida à primeira impressão, ponderando inúmeras vezes desistir. É pelas relações aí estabelecidas que decide ficar. Numa experiência de transição para o ES marcada por sentimentos de desequilíbrio e inadaptação, a praxe é vivida com uma intensidade esmagadora - urgia encontrar segurança e um propósito, tanto como estabelecer relações e construir um sentimento de pertença. Destaca, por um lado, as dimensões que associa, no essencial, a um exercício de crescimento pessoal e, por outro, aquelas de que não gosta, mas com as quais foi aprendendo a lidar, numa busca pelo “sentido da praxe”.

Diana - A praxe como (aprendizagem para a) vida

Diana tem 18 anos e é estudante do 1.º ano da licenciatura em Sociologia na FLUP. Parte de um contexto escolarizado, tendo a mãe formação superior, a que se somam os padrinhos, figuras de referência para si. A sua experiência fica marcada pela vivência intensiva do pressuposto de um certo secretismo da praxe, somando a essa lógica quase mística a existência de um sentido que, ainda que incompreensível a priori, se compreenderá um dia. Também a noção de aprendizagem determina esta experiência: a praxe como meio de transmissão de valores, competências, instrumentos de crescimento pessoal e de preparação para o mercado de trabalho; uma “praxe mental” a que se associa uma forte dimensão emocional, que a leva a associar a praxe à vida.

Maria - A praxe indispensável

Maria tem 18 anos e encontra-se a frequentar o 1.º ano da licenciatura em Sociologia na FLUP. Está deslocada da sua residência de origem e é a primeira pessoa do seu contexto familiar mais próximo a frequentar o ES. A praxe não só foi o meio privilegiado de contacto com novas pessoas, como se traduziu num mecanismo, prolongado temporalmente, de fortalecimento dessa rede de sociabilidades, dimensão claramente determinante da experiência de Maria. Moldada pela noção de tradição, a que se associa um discurso de legitimação, a praxe é vivenciada com tal intensidade e foi-lhe sendo atribuída tamanha centralidade que a considera hoje “indispensável”, não só no quadro de experiências do ES, como também na sua vida.

Luís - Vida académica mítica

Luís tem 19 anos e é estudante de 1.º ano da licenciatura em História na FLUP. É o primeiro membro da sua família a frequentar o ES e define o seu percurso escolar até esta fase como “bastante irregular”. Refere a presença da praxe no dia das inscrições. Decide ir porque desejava tirar a sua “própria conclusão” acerca do que “era a praxe”, por oposição a ceder à imagem negativa que os média haviam difundido. Reitera que a praxe “ajudou bastante” o seu processo de integração a variados níveis e refletirá a transição para o ES em estreita relação com esta, assumindo que tornou o processo mais fácil. Construindo um discurso que coloca a praxe como meio de mitificação da vida académica, esta experiência é vivida com uma intensidade à altura desse pressuposto; às dimensões que marcam simbolicamente o fenómeno é atribuído um valor que as palavras parecem nem conseguir traduzir.

Nos retratos marcados por heterogeneidade disposicional, encontramos dois perfis-tipo: (1) experiência vivida entre tensões; (2) experiência marcada pelo desapego e/ou sentido crítico acentuado.

Enquadram-se no primeiro perfil os retratos de Elsa, Eva e Clara, cujos excertos mais elucidativos destacamos.

Elsa - Entre a valorização e o desinteresse

Elsa tem 19 anos e frequenta o 1.º ano do mestrado integrado em Engenharia Mecânica na FEUP. Parte de um contexto de origem escolarizado. Duas chaves-mestras definem a sua experiência em praxe: por um lado, a da menorização da vertente integradora desta, que, apesar de valorizada, é posta em segundo plano quando comparada com outras dimensões; e, por outro, um lapso entre o discurso e a prática, dado que, num quadro de valorização da praxe e até com um discurso altivo perante os que estão “de fora”, a sua experiência fica marcada por afastamentos pontuais fruto de desinteresse e de falta de motivação, apresentando-se, pelo mesmo motivo, o futuro em praxe como uma incógnita.

Eva - A praxe como uma montanha-russa

Eva tem 18 anos e é estudante do 1.º ano de mestrado integrado em Engenharia Mecânica na FEUP. Encontra-se deslocada da sua residência e parte de um contexto escolarizado, tendo ambos os pais formação superior, a que já se soma o irmão mais velho também estudante na FEUP. A sua experiência em praxe fica marcada pela distinção clara entre dois momentos (o 1.º e o 2.º semestres), a que se associam vivências avaliadas em sentidos opostos e diferentes níveis de assiduidade - o 1.º semestre é descrito com “duro” e “uma seca”, o 2.º semestre é avaliado como “incrível” - numa mudança experimentada, não só porque se dá uma alteração ao nível das atividades, no sentido de irem mais ao encontro dos seus gostos, mas também porque se verifica um apaziguamento ao nível das suas inquietações; o seu sentido crítico em relação a alguma dimensões do fenómeno vai esmorecendo no sentido da “compreensão”. Nesta lógica de conciliação entre vivências avaliadas como positivas e negativas, num processo experimentado nos seus extremos, Eva associa a sua experiência a “uma montanha-russa”.

Clara - A praxe em dois extremos

Clara tem 18 anos e frequenta o 1.º ano da licenciatura em História na FLUP. É a primeira pessoa da sua família nuclear a frequentar o ES. Sem ideias definidas acerca do que era a praxe, decide experimentar para “poder conhecer”, entendendo que esta faz “parte da tradição” do ES em Portugal. A sua experiência fica marcada, a todos os níveis, por ser vivida em dois extremos: ao nível da experiência em si, em que, por um lado, valoriza imensamente um conjunto de dimensões, desagradando-lhe outras tantas, por outro; ao nível da reflexão que produz sobre o fenómeno, assumindo, em algumas questões, uma linha analítica crítica e, noutras, resignando-se através de um discurso de legitimação e aceitação; ao nível da sua projeção, assumindo, por um lado, um discurso de intervenção e mudança sobre o fenómeno e, por outro, a crença numa evolução natural deste como meio de resolução dos problemas.

Quanto ao segundo perfil-tipo encontrado, apontamos a experiência de Hugo, marcada pelo desapego, e a de André, que partilha um discurso reflexivo profundamente crítico.

Hugo - O desiludido persistente

Hugo tem 19 anos de idade e é estudante do 1.º ano de mestrado integrado em Engenharia Eletrotécnica e de Computadores na FEUP. Estudante deslocado da sua residência permanente, faz parte da primeira geração da sua família a frequentar o ES. Identifica a presença de praxistas no dia das inscrições, começando a participar já só depois do início das aulas, movido pela curiosidade e pelo desejo de contacto com estudantes mais velhos. Acalentando a expectativa da praxe como meio de apoio na esfera académica, a sua experiência ficará marcada pelo defraudar de expectativas e pelo confronto com dimensões em relação às quais será muito crítico. À inexistência de um sentido de pertença ao grupo, espelhada numa experiência narrada com desapego e distanciamento, soma-se, curiosamente, a persistência em continuar, num exercício de vivências contraditórias e de incapacidade de autojustificação perante o fenómeno.

André - O valor da rede de sociabilidades

André tem 19 anos de idade e é estudante do 1.º ano da licenciatura em História na FLUP. Deslocado da sua residência de origem, é o primeiro elemento da sua família a frequentar o ES. Decide ir para a praxe pelo desejo de “experimentar” e porque sabia ser um contexto privilegiado para conhecer pessoas. Esta experiência em praxe fica marcada pela sua associação a uma noção de segurança, pelo menos no momento de embate inicial com a nova realidade contextual, mas, sobretudo, pela rede de sociabilidades que potenciou, dimensão que se revelou determinante, levando-o a concluir que a praxe para si “é a relação com as pessoas”. No quadro de uma experiência avaliada muito positivamente, André constrói, contudo, uma narrativa pontuada pela crítica a algumas dimensões do fenómeno; aliás, a continuação da sua presença em praxe é movida pelo desejo de poder intervir e mudar, acalentando, ainda assim, poucas expectativas a esse nível e uma disponibilidade de comprometimento reduzida.

Pistas conclusivas

Os retratos sociológicos são, como pudemos explorar, um dispositivo metodológico que reconhece a pluralidade interna de cada ator e supõe uma análise articulada entre os níveis micro, meso e macrossociais. É um modo de apreensão e reconstituição da pluralidade dos indivíduos e das suas ações, compreendendo-as e compreendendo como aqueles as interpretam e avaliam.

Se a capacidade de agência dos indivíduos se encontra dependente de uma multiplicidade de oportunidades e constrangimentos, compreendemos, porém, que contam com recursos e competências, ainda que desiguais, para ler os seus contextos de ação, as suas ações e interações com outros - os estudantes retratados pensam a realidade e a sua ação sobre esta, inclusivamente justificando-a e justificando-se nesta.

Este artigo propôs-se discutir a pluralidade das disposições incorporadas por estes estudantes, mas sobretudo compreender os efeitos da praxe como contexto inibidor ou ativador daquelas. Concluímos que a praxe se apresenta com uma eficácia socializadora fortíssima, transversal a todas as experiências, sendo, porém, evidente que a amplitude dos efeitos desta socialização varia consoante o estudante. Deve também sublinhar-se que a experiência em praxe produz efeitos disposicionais em todos os estudantes retratados, sendo também identificável a pluralidade dessas disposições e/ou competências que são favorecidas, ativadas, criadas e inibidas em praxe. Acrescentamos, ainda, que são igualmente identificáveis competências transferíveis para outros contextos - se a praxe potencia disposições incorporadas nos processos de socialização prévios ao ES (escola, família, média), simultaneamente, socializa para o futuro - é um ensinamento da e para a vida.

Defendemos a noção de praxe no singular, dado que se encontra unificada por um conjunto de características definidoras e regulares independentemente do contexto onde toma lugar. Não obstante, e como espelham estes retratados, faz sentido falar de pluralidade nos modos de relação com esta. Essa multiplicidade traduz-se, evidentemente, em experiências plurais, dependentes, em primeira instância, das subjetividades dos indivíduos e dos processos e relações sociais em que estas se ancoram, mas dependentes também dos modos de relação da própria instituição de ensino superior frequentada (ou de outros grupos e atores) com o fenómeno em causa - os estudantes desenvolvem discursos substancialmente distintos sobre a sua experiência, apresentam expectativas iniciais e moldes de adesão diferentes, divergem quanto às dimensões mais e menos valorizadas, constroem representações e autorrepresentações substancialmente díspares.

Também na senda dos modos de relação plurais, as experiências analisadas a partir destes retratos sociológicos espelham exercícios de reflexividade assinalavelmente distintos. Ainda que seja inegável a capacidade reflexiva demonstrada pelos indivíduos, discernimos claramente tendências para a passividade e falta de questionamento crítico, bem como uma aproximação clara ao discurso habitualmente difundido pela praxe, em exercícios reflexivos que demonstram a ativação não consciente de mecanismos de reprodução daquele. Concluímos, ainda assim, que as narrativas construídas espelham níveis distintos de reprodução (e rutura) e que esses tendem a estar associados a graus diferenciados de envolvimento contextual.

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1 A reflexão esboçada neste artigo tem origem numa pesquisa desenvolvida no âmbito da dissertação de mestrado em Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

2 Neste artigo, não surgirá a versão completa dos retratos sociológicos. Recorremos apenas a excertos considerados elucidativos para a discussão que nos propomos

3 Os estudantes encontravam-se nas condições apontadas em 2016/2017, ano letivo em que decorreu a pesquisa.

Recebido: 17 de Junho de 2018; Aceito: 01 de Março de 2019

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