I. Introdução
Há pelo menos três grandes temas a serem abordados em um estudo comparado sobre violência contra as mulheres. O primeiro deles diz respeito à forma como ela se manifesta e é percebida. O segundo relaciona-se com o modo como os governos intervêm para fazer-lhe frente, e o terceiro diz respeito à existência de mecanismos de monitoramento das ações existentes para resolver esse problema. Neste artigo, apresentar-se-ão algumas reflexões sobre estes três temas, tendo como foco o estado da questão no Brasil e em Portugal. Convém dizer que o modo particular como cada país encara essa questão constitui por si só um tema de grande relevância e alcance. Se até há algumas décadas não se reconhecia que as mulheres fossem vítimas de violência por serem mulheres, também não se distinguia sexo de género. Por isso, estatisticamente, essa violência não existia, assim como, em outras áreas, o direito à vida e integridade das mulheres era invisibilizado pelo direito à vida e integridade dos homens em geral. Entretanto, o interesse e a relevância dessas questões não se situam de modo uniforme no tempo e no espaço; assim, neste artigo apresentar-se-á um estudo descritivo de situações, normas e padrões, para que sobre eles se possa refletir.
Começar-se-á por tentar compreender como se manifesta e como é percebida a violência contra as mulheres. Quais os atos, palavras e atitudes praticados que provocam danos físicos, psicológicos ou patrimoniais, que podem ser apontados como violência de género? Quais destas atitudes a sociedade identifica como atos de violência contra a mulher por ser mulher, ou seja, violência de género?
II. Como se manifesta e como é percebida a violência contra as mulheres
Nota-se uma certa tendência, de senso comum, para entender a violência contra as mulheres como um fenómeno que ocorre no interior da família (o denominado ambiente doméstico) e, nesse espaço, identifica-se quase exclusivamente com a violência conjugal ou íntima (praticada por um cônjuge ou parceiro contra o outro, na esmagadora maioria dos casos, do homem contra a mulher). Entretanto, essa não é a única modalidade de violência praticada contra a mulher por ser mulher, isto é, violência de género1. Há outras formas graves e frequentes de violência contra as mulheres, cuja especificação passou a constar de instrumentos internacionais de direitos e de leis internas após o ano de 1975, como iremos referir no próximo ponto.
O facto é que as mulheres, por serem mulheres, sofrem violações de direitos também no que diz respeito ao trabalho remunerado por conta de outrem (ganham menos do que os homens2), e deparam-se com obstáculos no acesso aos cargos hierarquicamente mais elevados, tanto em empresas privadas quanto em órgãos públicos3. Ainda no que se refere ao trabalho, as mulheres são vítimas de assédio moral e sexual no ambiente de trabalho em uma proporção 90 vezes maior do que os homens4.
Em várias partes do mundo as mulheres são assediadas nas instituições de ensino, desde os primeiros ciclos de estudos até o ensino superior5.
As mulheres são vítimas de violências em locais públicos ou privados de interação social como clubes, bares, praças, locais de dança, onde existe um padrão não escrito de comportamentos que são esperados das mulheres que frequentem esses locais. Esse padrão prescreve a hora mais conveniente, a roupa mais adequada, a fala, os gestos, as expressões “próprias” de uma mulher, e o que ela deve ou não ingerir/consumir e quanto. Trata-se de um código de conduta não escrito, com um grau apertado de liberdade, se comparado com as permissões que são conferidas aos homens nesses mesmos lugares e ocasiões. Observar esse padrão não impede que as mulheres sejam assediadas e até mesmo violadas, e não o observar reflete-se no modo como a sociedade e o Estado (policial e judiciário) vão julgar a violência praticada contra elas. Com base nesse padrão, faz-se um pré-julgamento em desfavor das mulheres; assim, é o comportamento que se torna objeto do juízo, e já não a ação violenta por elas sofrida, contra elas praticada 6.
A discriminação contra as mulheres acontece nos desportos7, onde comprovadamente ganham menos, quer a remuneração seja paga pelo clube onde jogam, quer o seja por um patrocinador. Do mesmo modo, está também presente no mundo do cinema, pois as atrizes ganham menos que os atores atuando na mesma produção e com o mesmo grau de protagonismo; além disso, nesse mundo, as mulheres são sexualmente objetificadas8 e veem a sua aparência física avaliada numa perspectiva económica (Wolf, 1992, p. 25).
As mulheres sofrem violência quando procuram cuidados de saúde, e nesse estado de vulnerabilidade, ou justamente por isso, elas são moral e sexualmente assediadas, violadas, ou sofrem violência obstétrica. A Organização Mundial da Saúde, em 18 de fevereiro de 2018, emitiu duas recomendações, sendo uma contrária à aplicação de pressão manual para facilitar o parto durante a segunda fase do trabalho de parto, e a outra desaconselhando o uso rotineiro ou liberal de episiotomia para mulheres que realizam parto vaginal espontâneo. Essas recomendações tiveram origem em diversas evidências de práticas médicas prejudiciais às mulheres em trabalho de parto, e na prevalência de um cuidado desrespeitoso e indigno em muitas unidades de saúde, especialmente para populações desprivilegiadas9.
As mulheres sofrem violência também na condição de profissionais de saúde. Jane van Dis, Laura Stadum e Esther Choo (2018) afirmam que o assédio e a discriminação das mulheres no exercício da medicina, praticado por colegas e superiores, tem início antes mesmo de iniciarem a carreira.
Não existe uma dimensão ou um sítio no mundo onde as mulheres se encontrem em total segurança, ou em situação de total igualdade em relação aos homens. A linguagem não escapa a essa regra; pode-se mesmo dizer que, especialmente na linguagem, se encontra a forma mais subtil de discriminação contra as mulheres. Seja na grafia, com o uso do masculino como termo universal, invisibilizando ou excluindo as mulheres do discurso (Meana, 2004), seja na pictografia, como é o caso da sinalética pictográfica, que denota “ainda uma utilização sistemática da forma masculina genérica, ou ‘falso neutro’, com uma ocorrência de pictogramas masculinos muito superior à dos femininos” (Bessa, 2005, p. 1008).
Com efeito, muitos Códigos Civis ocidentais, como o brasileiro e o português, ainda utilizam os termos conjugados na forma masculina como referente neutro universal. Encontrado em abundância nos respectivos livros do Direito da Família, mas podendo verificar-se também em outras temáticas, o (nada) neutro masculino universal está, por exemplo, no art. 1011 do Código Civil brasileiro onde se impõe que o administrador da sociedade empresária tenha, no exercício de suas funções, “o cuidado e a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus próprios negócios”.
Mais recentemente, em Portugal, por ocasião da implementação do Regime Jurídico do Maior Acompanhado (Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto), estatuiu-se que o padrão de cuidado e diligência do acompanhante é o do “bom pai de família”10.
Nos dois casos, integridade, probidade e honradez (presentes nas expressões “homem ativo e probo” e “bom pai de família”) seriam características do homem, designadamente porque essas expressões têm distintas conotações quando relativas às mulheres. Historicamente, para o direito, um homem íntegro é um homem honesto nas suas relações intersubjetivas, ao passo que a honestidade da mulher refere-se à sua conduta sexual11. Além disso, tanto o Código Civil português quanto o brasileiro, designadamente no livro do Direito da Família, utilizam as expressões “pais” e “filhos” para referir também mães e filhas, em situações/relações jurídicas nas quais importaria individualizar uma e outro. É o que ocorre, a título de exemplo, com a redação do artigo 1517 e seu parágrafo único do Código Civil brasileiro, e a do artigo 1612.º do Código Civil português, ambas referindo caber aos “pais” autorizar o casamento dos filhos na idade entre dezasseis e dezoito anos. Até o século XIX, em ambos os países, cabia exclusivamente ao pai, como chefe de família, tomar decisões sobre a vida dos filhos menores. Foi somente na segunda metade do século XX e início do século XXI que as mães alcançaram igual autoridade, ao menos no plano formal. Essa é uma das razões pelas quais importa afastar o uso sexista da linguagem, pois os usos preconceituosos da língua “representam uma maneira poderosa de perpetuação dos preconceitos nos quais tais usos estão baseados” (Gregoli, 2017, p. 370).
O mesmo padrão masculino universal é encontrado na linguagem pictográfica onde se observa uma perversa e aguda mensagem sexista e hierarquizada entre homens e mulheres. Em 2005, Pedro Bessa realizou um estudo na Universidade de Aveiro, que analisou “49 programas de sinalética oriundos de diversos países (perfazendo uma amostra de cerca de 800 sinais) e encontrou a reprodução de inúmeros estereótipos de género, para além de uma utilização sistemática da forma masculina genérica, com uma ocorrência de pictogramas masculinos muito superior à dos femininos” (Bessa, 2009, p. 1). A pesquisa evidenciou também a existência de uma hierarquização de género; por exemplo, a sinalética usada em hotéis e empresas para indicar a sala da direção ou presidência usa um pictograma com uma figura masculina, enquanto nos pictogramas indicativos dos serviços de limpeza a ilustração é de uma figura feminina. O mesmo se passa nos hospitais e em algumas profissões, em que os cargos ou funções considerados hierarquicamente superiores usam figuras masculinas (Bessa, 2005).
Para além disso, cenas de violência contra as mulheres são constantemente veiculadas por canais de televisão e rádio. Jornais em meio físico ou por meio das redes sociais estão saturados de exibir essa violência. Parte-se de um passado, não muito distante, em que a violência contra a mulher era tida como um assunto privado, da exclusiva competência da família que tinha o marido como chefe, para um tempo em que tudo é filmado, registado, realçado e exibido, mas ainda assim frequente, ainda permanente.
Essa violência acontece em todas as classes sociais e, de acordo com a Organização das Nações Unidas Mulheres, está presente em todas as sociedades conhecidas no mundo. Seja nas Américas, seja na Ásia, Europa, África ou Oceânia, lá está um pontinho no mapa a acusar a presença da violência como um mal mundial12. Mas nem sempre se reconheceu que determinadas condutas significassem violência contra as mulheres; ao contrário, em um passado não muito distante as leis civis investiam o homem marido de autoridade sobre a mulher esposa, tanto na vida familiar quanto na vida civil, e a violência sexual praticada contra uma mulher solteira poderia ser reparada pelo casamento do agressor com a ofendida13. E mesmo na contemporaneidade, em diversos quadrantes, encontram-se narrativas que se opõem ao direito das mulheres à igualdade, como veremos no próximo título.
Sendo essas as formas de manifestação e perceção da violência contra as mulheres, a questão que se coloca a seguir é a de como a sociedade e os Estados respondem a esse problema.
III. Como a sociedade e os estados respondem ao problema da violência contra as mulheres
Não é toda a sociedade, nem todas as sociedades que se mobilizam para responder ao problema da violência contra as mulheres; apenas uma parcela se organiza para exigir a atuação do Estado, o qual, por sua vez, não se antecipa a dar solução para esses problemas como era de se esperar (afinal, os textos constitucionais proclamam a promoção da igualdade como um dever do Estado). Mesmo quando provocados, os Estados respondem de forma lenta e cara, e o pagamento se faz muitas vezes com a vida das mulheres. Quando se organiza, a sociedade responde ao problema da violência contra as mulheres por meio de movimentos sociais, e o Estado por meio da elaboração legislativa e de políticas públicas especialmente desenvolvidas para esse fim; entretanto, uma e outro nem sempre o fazem de forma coordenada e producente.
Os movimentos sociais são uma peça importantíssima no processo de resposta ao problema da violência e se distinguem por serem os verdadeiros impulsionadores das mudanças até aqui alcançadas. No caso do Brasil, desde o direito ao voto feminino (1932) passando pela Lei Maria da Penha (2006) e daí em diante, os movimentos de mulheres têm sido a chave de ajuste do sistema patriarcal e desigual de sempre14. Essa é uma verdade também em outras partes do mundo, assim também em Portugal, conforme assinala Anália Torres quando refere que “foram os feminismos que questionaram as disciplinas estabelecidas, denunciando uma história e uma vida social que valorizavam fundamentalmente os protagonismos no masculino, com ocultação e desvalorização das mulheres” (Torres, 2018, p. 31).
Entretanto, muitas vezes os movimentos de mulheres em direção à igualdade de género, a par de se depararem com divergências teóricas internas, são também confrontados com a complexidade da vida em sociedade, em sua diversidade étnica, religiosa e cultural, em que discursos religiosos fundamentalistas difundem a ideia da subalternidade das mulheres, um conceito que é subjacente à violência contra elas praticada.
Além disso, infelizmente ainda se podem coletar exemplos atuais de ações que visam conferir ares de legitimidade, judicial ou académica, à desigualdade entre homens e mulheres. Recorde-se um acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 2017 em que, ao decidir um caso de violência doméstica, o juiz relator do processo justificou a violência do marido com o argumento de que “o adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (e são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras) e por isso vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher”15. Portanto, falar sobre a forma como a sociedade reage à violência é também falar sobre a ideia de universalidade da igualdade de género e sobre o modo de a alcançar; é falar também sobre sexismo institucional e o modo de o combater.
Entretanto, as reivindicações dos movimentos sociais feministas são, em essência, normativas. Desde o início, em todo o mundo, os movimentos feministas exigiram alterações legislativas para que se reconhecesse e garantisse às mulheres o direito ao voto, o direito ao trabalho, o direito ao exercício da parentalidade, o direito à administração do próprio património, etc.
No presente momento, existe uma profusão normativa de nível nacional, internacional e transnacional, na maior parte do mundo. No âmbito internacional, tanto Portugal quanto o Brasil são signatários de importantes convenções internacionais especialmente elaboradas visando a criação e proteção dos direitos das mulheres. Em comum, ambos os países são signatários da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), de 1979, do Protocolo Facultativo de 1999, assim como da Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial sobre a Mulher realizada em Pequim, em 1985.
O Brasil, integrante da Organização dos Estados Americanos (OEA), é signatário da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, conhecida como Convenção de Belém do Pará, adotada em Belém do Pará, Brasil, em 09 de junho de 1994.
Portugal, por sua vez, ratificou a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, formalmente aprovada em Istambul aos 11 de maio de 2011.
Todos estes instrumentos resultam de uma ressignificação das questões relativas à situação das mulheres e à igualdade de direitos e oportunidades entre homens e mulheres, um processo que teve início quando a ONU proclamou 1975 como o Ano Internacional das Mulheres, na Declaração sobre a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres, de 7 de novembro de 1967. A partir deste instrumento, percebeu-se a necessidade de minuciar mais e mais as manifestações de violência e tratar, ou esforçar-se por tratar, cada uma delas.
É o que se pode observar na Convenção de Istambul de 2011 que, sendo a mais recente delas, é, entretanto, o primeiro documento a referir que a violência contra as mulheres é uma violação dos direitos humanos e uma forma de discriminação (art. 3.º). Essa referência permite inserir a violência contra as mulheres de forma ainda mais contundente na agenda dos organismos e comissões internacionais de direitos humanos, ou seja, abre os canais de recurso para além das fronteiras do Estado.
Mas a adesão a instrumentos internacionais de nada adianta sem uma elaboração legislativa interna combinada com políticas públicas que assegurem resultados positivos. Na base da Declaração de Pequim, esteve justamente a preocupação com a persistência das desigualdades e a necessidade de incrementar o avanço e o empoderamento das mulheres em todo o mundo, pela implementação da Plataforma de Ação.
Tanto Brasil quanto Portugal, por força dos compromissos internacionais assumidos, empreenderam diversas alterações na sua legislação interna. No Brasil, desde a vigente Constituição de 05 de outubro de 1988, promulgada logo após vencido um longo período ditatorial (1964-1985), alterações legislativas representaram um avanço na erradicação da violência contra as mulheres. O reconhecimento da União Estável e da Família Monoparental como entidades familiares (art. 226, §3.º), a reafirmação da igualdade entre homem e mulher na sociedade conjugal no Capítulo que trata da família (art. 226, §5.º), a garantia da livre decisão do casal no planeamento familiar e o compromisso do Estado de propiciar os recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito (art. 226, §7.º), a garantia do tratamento igual para os filhos havidos ou não da relação do casamento (art. 227, §6.º) e o compromisso do Estado de criar mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares (art. 226, §8.º), foram inovações que disseram respeito às mulheres de modo muito particular.
São garantias constitucionais voltadas para a família com reflexo direto sobre a vida das mulheres, porque as mulheres foram sempre quem suportou os prejuízos da ilicitude conferida às uniões fora do casamento. Além do mais, a total ausência de reconhecimento do valor do trabalho doméstico e do cuidado com as crianças resultava em desamparo quando, por qualquer razão, a relação informal terminava, já que não havia o direito a uma pensão de alimentos a cargo do ex-companheiro, ou a cargo do Estado por morte deste. Da mesma forma, os filhos havidos ou não do casamento permaneciam, como ainda permanecem, aos cuidados e dependência das mulheres. A Constituição veio, pois, corrigir esses desequilíbrios.
Mas foi só em 2002 que o Brasil obteve uma significativa alteração da legislação infraconstitucional, com a aprovação da Lei 10.406 de 10 de janeiro desse ano, que instituiu um novo Código Civil. Os livros do direito da família e do direito das sucessões passaram por reformas profundas para dar eficácia e exequibilidade à igualdade entre homem e mulher no casamento16.
A vigente Constituição da República Portuguesa (CRP), datada de 25 de abril de 1976, é “a mais vasta e a mais complexa de todas as Constituições portuguesas” (Miranda, 2010, p. 15), também ela concebida após a queda de um regime autoritário que, neste caso, durou 48 anos. O artigo 9.º do texto constitucional prescreve as Tarefas Fundamentais do Estado; dentre elas, na alínea h do artigo 9.º, encontra-se a de “promover a igualdade entre homens e mulheres”. Essa tarefa é de seguida esmiuçada nos títulos que se referem aos Direitos e deveres fundamentais (artigos 13.º a 23.º), aos Direitos, liberdades e garantias (artigos 24.º e seguintes, com especial ênfase para o artigo 36.º que se refere à Família, casamento e filiação), e aos Direitos e deveres económicos, sociais e culturais (especialmente o artigo 58.º/2/b, onde se lê que todos têm direito ao trabalho, cabendo ao Estado promover “b) A igualdade de oportunidades na escolha da profissão ou género de trabalho e condições para que não seja vedado ou limitado, em função do sexo, o acesso a quaisquer cargos, trabalho ou categorias profissionais”).
Em sua redação inicial, o artigo 293.º da CRP previa que todo o direito ordinário anterior à entrada em vigor da Constituição se manteria, desde que não fosse contrário a ela ou aos princípios nela consignados, ficando ainda prescrito no número 3 que se procedesse à adaptação das normas anteriores atinentes ao exercício dos direitos, liberdades e garantias. Assim, em 25 de novembro de 1977, entrou em vigor o Decreto-Lei n.º 496, introduzindo significativas alterações ao Código Civil, das quais as mais vastas e profundas foram no domínio do direito da família. O número 11 do preâmbulo deste documento legal evidencia uma certa similitude com as alterações que, nessa matéria, se seguiram no direito brasileiro após a Constituição de 1988, v.g.:
11. Foi no domínio do direito da família que os novos princípios proclamados pela Constituição impuseram alterações mais vastas e profundas. A igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges, nomeadamente no que toca à manutenção e educação dos filhos (artigo 36.º, n.º 3, da Constituição) e o princípio de que os filhos nascidos fora do casamento não podem, por esse motivo, ser objecto de qualquer discriminação (artigo 36.º, n.º 4) desde logo importavam a revisão de largos sectores da disciplina do casamento e de praticamente toda a disciplina da filiação.
Também em Portugal percebeu-se nitidamente como na vivência familiar, na relação conjugal e na relação de filiação estão contidas a discriminação e a violência contra as mulheres, exigindo maior esforço legislativo nessa área.
A proteção da união conjugal fora do casamento e seu reconhecimento como entidade familiar ficaram de fora da Constituição portuguesa, mas constaram do Decreto Lei n.º 496/77 que, utilizando a expressão “União de Facto” no título do artigo 2020.º, atribuiu ao sobrevivo de pessoa com quem vivia há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges o direito de exigir alimentos da herança do falecido. Era ainda um direito condicionado à impossibilidade de o sobrevivo obter auxílio alimentar por outra forma, mas foi o impulso inicial para as posteriores leis que elevaram o status e os direitos conferidos aos unidos de facto, designadamente a Lei n.º 135/1999 de 28 de agosto, revogada pela vigente Lei n.º 7/2001 de 11 de maio17.
A seguir às respectivas Constituições, ao longo de 32 anos, no caso do Brasil, e 44 anos no caso de Portugal, muitas outras elaborações legislativas foram efetivadas, em alguns casos inovando o ordenamento jurídico, a exemplo das leis de combate à violência contra a mulher e à violência doméstica, e em outros casos procedendo a reformas cirúrgicas.
De entre essas reformas pontuais de leis antigas que continham viés discriminatório, ou inovações legislativas para corrigir desequilíbrios, pode-se apontar, dentre outras, no Brasil, a Lei 9.100 de 1995, que instituiu a reserva de vagas para partidos políticos e coligações, a Lei 11.106 de 2005, que excluiu o termo “mulher honesta” que constava no Código Penal no título que disciplina os crimes contra a liberdade sexual, a Lei 13.112 de 2015, que alterou a Lei dos Registos Públicos para afastar a hierarquia que havia em favor do pai para registar o nascimento de filhos; e em Portugal, dentre outras, a Lei 61/2008, que substituiu o termo “poder paternal” pelo termo “responsabilidade parental”, a Lei 112/2009, que alterou o artigo 152.º do Código Penal para transformar em crime de Violência Doméstica o que antes era considerado crime de maus-tratos entre cônjuges.
No enfrentamento da violência doméstica, o Brasil promulgou a Lei 11.340 de 07 de agosto de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha, e criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Em Portugal, a Lei n.º 61/91, de 13 de agosto, garante proteção adequada às mulheres vítimas de violência e a Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à proteção e assistência das suas vítimas.
Muitas outras alterações havidas no ordenamento jurídico interno dos dois países devem-se, em grande parte, aos compromissos assumidos na esfera internacional de erradicar a violência contra as mulheres. Se os movimentos sociais são os grandes impulsionadores dessas alterações, inclusive no plano internacional, uma mais-valia desses instrumentos reside na previsão de acompanhamento das ações a que se obrigaram os Estados signatários, por um órgão internacional.
IV. Monitoramento das ações para eliminar a violência contra as mulheres
A complexidade das relações internacionais e do Direito Internacional Público justifica um exercício constante de diplomacia, para manter-se de forma pacífica o encontro das soberanias dos Estados, notadamente no que diz respeito à prestação de contas das ações de cumprimento dos acordos e tratados internacionais. Na maioria dos Tratados e Convenções internacionais, entretanto, há a previsão de mecanismos de monitoramento das ações desenvolvidas pelos Estados no cumprimento dos compromissos assumidos. No que diz respeito aos direitos das mulheres, uma das formas desse monitoramento é a criação de comitês ou grupos especialmente para esse fim.
Pela Declaração e Plataforma de Ação de Pequim, os países se obrigam ao monitoramento e avaliação da implementação dos objetivos estratégicos a que aderiram, de que o primeiro é a promoção dos direitos humanos das mulheres, por meio da plena implementação de todos os instrumentos de direitos humanos, especialmente a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW).
A CEDAW prevê, na Parte V, artigos 17 a 22, a existência e o funcionamento de um Comitê para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher, com o fim de examinar os progressos alcançados na sua aplicação. De acordo com o artigo 18 desta Convenção, os “Estados-parte comprometem-se a submeter ao Secretário-Geral das Nações Unidas, para exame do Comitê, um relatório sobre medidas legislativas, judiciárias, administrativas ou outras que adotarem para tornarem efetivas as disposições desta Convenção e sobre os progressos alcançados a esse respeito”.
Espera-se que esta obrigação se cumpra, tendo em conta que as cláusulas que lhe subjazem se tornam efetivas independentemente de coação ou coerção. Isso porque não seria possível pensar, lógica e juridicamente, que o próprio sancionado/infrator autorizasse a aplicação de uma sanção a si mesmo, se ele, Estado subscritor da Convenção, não tivesse a intenção de reconhecer os efeitos jurídicos dos mecanismos destinados a tornar concretas as disposições da CEDAW (Tavares, 2002, p. 170).
Assim, a conclusão a que se chega é de que o mencionado artigo 18 seria cumprido por respeito e acatamento lógico-jurídico à imperatividade da norma internacional, fixada na vontade e decisão estatal representativa da assinatura da Convenção, como medida de proteção do próprio ordenamento jurídico interno (e dos bens que se pretende resguardar) e que encontra fundamento nas finalidades que levaram à criação e à manutenção do espaço internacional democrático e do Estado de direito, como expressão de sociedades civilizadas a que todos pertencemos (Tavares, 2002, p. 177).
O Governo português apresentou e tem disponível para consulta os relatórios 8.º e 9.º, que abrangem o período que vai até o ano de 2015, assim como os comentários do Comitê CEDAW sobre esses mesmo relatórios18.
O último relatório apresentado ao Comitê CEDAW pelo Governo brasileiro de que se tem notícia foi o n.º 7, referente ao período de 2006 a 2009. Esse atraso pode ser tributado à interrupção das políticas para mulheres havidas na transição do último governo federal, prova de que as descontinuidades políticas são ainda um grande obstáculo à promoção da plena igualdade19.
Em conclusão
As enunciações apresentadas neste artigo tiveram como propósito pontuar a universalidade da violência contra as mulheres, nem sempre percebida como violência em todas as suas formas de manifestação. Também objetivou apontar que, embora os governos dos países analisados tenham promovido ações políticas e legislativas significativas, os censos da violência denunciam que há ainda muito a fazer.
Tanto o Brasil quanto Portugal firmaram tratados e convenções, procederam a alterações nas suas legislações internas, desenvolveram ações afirmativas e criaram mecanismos de implementação dos direitos das mulheres. Contudo, a violência permanece e, se a equação dos direitos ainda é desfavorável às mulheres na família, no trabalho, no parlamento e nas demais esferas da vida, é necessário ajustar a direção e a condução de tudo que se convencionou e não resultou.
Em nenhum dos dois lados do Atlântico é tempo de descansar. Disse uma vez Virgínia Ferreira (1988, p. 94): “é um erro pensar que a sociedade dos homens permanece igual quando a das mulheres muda”. Por isso, enquanto houver uma mulher discriminada, agredida ou violada, a luta está em movimento.