A dor é definida, pela International Association for the Study of Pain (IASP), como uma experiência sensitiva e emocional desagradável relacionada com uma real ou potencial lesão, sendo sempre uma experiência individual influenciada por diversos fatores biológicos, psicológicos e sociais (Raja et al., 2020). Para ser considerada crónica, a dor tem de ser mantida por um período mínimo de três meses para além da lesão que a originou ou ser recorrentemente num período de meses (Almeida, 2018; Cardoso, 2013), sendo que, para ser possível o seu diagnóstico, é necessário que os sintomas sejam constantes e com pouca variância ao longo do tempo (Pires, 2019). Assim, a dor crónica é considerada uma das principais razões para a procura de cuidados de saúde (Pires, 2019). A pandemia da COVID-19, obrigou a uma reorganização dos serviços de saúde obrigando à suspensão dos serviços de apoio e resposta à dor. A suspensão de funções nestes serviços em conjunto com as medidas de isolamento social impostas e fatores psicossociais e emocionais da pandemia afetaram a gestão da dor originando consequências para a saúde psicológica dos pacientes (Javed et al., 2020).
Deste modo, a presente revisão sistemática da literatura procura responder à seguinte questão de investigação “Qual o impacto das alterações no atendimento aos doentes depois de declarada a pandemia, nos sintomas de ansiedade, depressão e stress dos doentes com doenças e dor crónica?”. Tem como objetivo caracterizar o impacto da pandemia da COVID-19 nos doentes com dor e doença crónica na população adulta a uma escala mundial.
Método
A pesquisa foi realizada na base de dados Biblioteca do Conhecimento Online (B-ON) utilizando como palavras-chave “chronic pain” AND “COVID-19” e “chronic disease”. Definiram-se como critérios de inclusão: 1) avaliar e descrever o impacto da pandemia em indivíduos com idade igual ou superior a 18 anos; 2) conter os termos “chronic pain” e “COVID-19 impact” 3) publicado entre 2020 e 2021; 4) em português, inglês ou espanhol; 5) de acesso livre e texto integral disponível; 6) publicado em revistas científicas com revisão por pares; como critérios de exclusão: 1) idade inferior a 18 anos; 2) sem referência ao tema e variáveis em estudo; 3) artigos redigidos noutras línguas; 4) artigos que descrevem instrumentos de avaliação sem apresentação de estatísticas descritivas ou analíticas relativas às variáveis em estudo; 5) artigos duplicados.
Resultados
Como resultado da pesquisa realizada foram recolhidos 717 artigos possivelmente relevantes. Posteriormente, foram eliminados artigos duplicados, tendo sido identificadas 318 publicações. Estas publicações foram submetidas a leitura individual, tendo sido analisados os títulos, resumos e texto integral, tornando-os elegíveis para aplicabilidade dos critérios de inclusão e exclusão, tendo sido excluídos 294 artigos por não cumprirem os critérios previamente estabelecidos. Assim, foram selecionados 24 artigos a serem incluídos na revisão sistemática (Al-Hashel & Ismail, 2020; Amja et al., 2021; Budu et al., 2021; Colais et al., 2021; Consonni et al., 2021; Dassieu et al., 2021; Fallon et al., 2020; Giannantoni et al., 2020; Grande et al., 2021; Karayanni et al., 2021; Kleinnmann et al., 2021; Lacasse et al., 2021; Lau et al., 2021; Nieto et al., 2020; Opinc et al., 2021; Pagé et al., 2021; Serrano-Ilbáñez et al., 2021; Singh et al., 2021; Subathra et al., 2021; Tourkmani et al., 2021; Wańkowicz et al., 2021; Wong et al., 2020; Zambelli et al., 2021; Ziadé et al., 2020). Os estudos têm como objetivo avaliar o impacto da COVID-19 na dor e doenças crónicas incluindo o impacto direto e indireto nos doentes e serviços de saúde. Todos os estudos têm como participantes doentes crónicos, sendo que a amostra varia entre 22 (Amja et al., 2021; Dassieu et al., 2021) e 9380 participantes (Colais et al., 2021), com idades superiores a 18 anos.
Durante a pandemia, a maioria dos serviços foi suspensa deixando os indivíduos sem possibilidades de acesso a terapias complementares (e.g. osteopatia, fisioterapia), sendo que a continuidade dos cuidados de saúde aconteceu com recurso a vias alternativas ao contacto pessoal (Consonni et al., 2021; Dassieu et al., 2021; Opinc et al., 2021). Na maioria dos estudos, o sexo feminino está associado a piores resultados relacionados com os sintomas de ansiedade, depressão e problemas de sono (Al-Hashel & Ismail, 2020; Lau et al., 2021; Wańkowicz et al., 2021). Num único estudo, apesar de não existir uma diferença estatisticamente significativa, os autores salientam que os homens apresentam maiores níveis de depressão, ansiedade e stress, e maior impacto negativo da pandemia na dor e sofrimento psicológico (Kleinmann et al., 2021). Em relação à idade, os pacientes mais velhos com histórico de várias doenças crónicas, apresentam pior estado de saúde psicossocial (Colais et al., 2021; Grande et al., 2021; Lacasse et al., 2021; Subathra et al., 2021; Wong et al., 2020). Apenas um estudo determinou o aumento da dor e sofrimento psicológico foi maior nos doentes mais novos devido ao stress gerado por mais preocupações financeiras e responsabilidades, sendo que os indivíduos que continuaram a trabalhar em regime de teletrabalho, sentem mais dor dadas as responsabilidades acrescidas (e.g. cuidar das crianças, trabalho remoto) (Pagé et al., 2021).
Existiu um declínio no acesso aos cuidados de saúde nomeadamente no atraso e descontinuação dos tratamentos e impossibilidade de contactar os médicos, resultando na deterioração dos sintomas (Al-Hashel & Ismail, 2020; Kleinmann et al., 2021; Serrano-Ilbáñez et al., 2021; Singh et al., 2021; Ziadé et al., 2020). No geral, os indivíduos mostram-se satisfeitos com as consultas virtuais (Dassieu et al., 2021; Lau et al., 2021; Tourkmani et al., 2021), no entanto, consideram que existem limitações pela falta do exame físico, importante para a avaliação da condição de saúde. Os doentes que anteriormente tinham uma boa autogestão da dor, sentiram-se limitados devido ao acesso restrito aos apoios complementares, percecionando um aumento significativo de dor (Amja et al., 2021; Fallon et al, 2020; Karayanni et al., 2021; Opinc et al., 2021). Os fatores geradores de stress na vida dos indivíduos com doenças autoimunes afetam os sintomas dessas doenças, i.e., apesar da pandemia afetar todos, estes, já estão predispostos a sintomas de ansiedade e depressão (Wańkowicz et al., 2021). Um estudo contraria este facto, justificando os resultados com duas hipóteses: 1) foram ativados sistemas de suporte para a saúde mental e 2) o estudo limitou as doenças crónicas a um número restrito (Budu et al., 2021). O suporte social é fundamental na melhoria dos sintomas confirmando-se um efeito positivo no bem-estar psicológico e dor (Nieto et al., 2020; Zambelli et al., 2021). Os grupos de ajuda de pacientes são considerados importantes no bem-estar psicológico, sobretudo na pandemia (Dassieu et al., 2021). Relativamente ao tratamento farmacológico, existe um aumento significativo na toma da medicação correlacionado com o aumento significativo da dor (Colais et al., 2021; Giannantoni et al., 2020; Lacasse et al., 2021; Zambelli et al., 2021; Ziadé et al., 2020).
Discussão
De forma a perceber-se o impacto da COVID-19 na vida dos doentes com dor e doenças crónicas, foi realizada uma revisão sistemática da literatura, na qual foram analisadas vinte e quatro investigações. Cada investigação procurou relacionar o impacto da pandemia com diferentes variáveis. Após a análise detalhada, parece consensual que a pandemia teve um grande impacto nos contextos de vida das pessoas, sobretudo as sofrem com doenças crónicas dolorosas.
Viver com condições de saúde crónicas é sinónimo de viver uma vida de marcações de consultas, tratamentos e terapias associadas ao controlo dos sintomas, sobretudo dolorosos. Apesar dos impactos positivos, os negativos parecem ter maior influência sobre a vida dos doentes. Os doentes começaram a viver um círculo de dor, menor qualidade de vida, estratégias de coping disfuncionais, recursos e apoios indisponíveis que contribuíram para o aumento do sofrimento psicológico (Consonni et al., 2021; Dassieu et al., 2021; Fallon et al., 2020; Opinc et al., 2021; Zambelli et al., 2021). O sofrimento psicológico não está diretamente associado às consequências na saúde e vida social gerados pela COVID-19, i.e., está associado às consequências indiretas nomeadamente às medidas impostas que condicionaram o acesso aos cuidados de saúde, interação social e rotinas da vida quotidiana dos doentes (Serrano-Ilbáñez et al., 2021).
No geral, as medidas tomadas pelos governos são consideradas positivas, por permitirem uma forma de vida mais adaptada às condições a que a dor crónica obriga (Dassieu et al., 2021; Nieto et al., 2020). O nível de suporte social foi maior na vida dos doentes dado que antes não conseguiam socializar com tanta frequência pelos seus horários e rotina. A socialização tem um papel importante na monitorização e incentivo de comportamentos de autocuidado dos doentes, sendo fundamental em pacientes que necessitam de apoios adicionais (Tourkmani et al., 2021). A telemedicina deve ser utilizada para apoiar os doentes, garantindo o acompanhamento e a continuidade do tratamento. A medicação será um problema com consequências no futuro, por estar associado ao sofrimento psicológico dos doentes perdurará no tempo (Opinc et al., 2021). Adicionalmente, as redes sociais são a fonte de informação mais utilizada para consultar informações sobre a pandemia, sendo importante a consciencialização para a autenticidade da informação (Ziadé et al., 2020). A pandemia teve um grande impacto em todos os domínios da vida da população, e, em particular, nestes doentes, sendo ainda pouco claro e incerto o seu impacto na vida e saúde a longo termo (Lau et al., 2021)
Assim, tendo em conta estes resultados sobre o impacto da pandemia nas várias dimensões de vida dos doentes em todo o mundo, torna-se fundamental um trabalho de investigação e intervenção mais profunda neste contexto, sobretudo em Portugal.
Contribuição dos autores
Catarina Guerra: Concetualização; Curadoria dos dados; Análise formal; Investigação; Metodologia; Administração do projeto; Recursos; Supervisão; Validação; Visualização; Redação do rascunho original; Redação - revisão e edição.
Isabel Silva: Concetualização; Curadoria dos dados; Análise formal; Metodologia; Administração do projeto; Recursos; Validação; Visualização; Redação do rascunho original; Redação - revisão e edição.