Discutir perspectivas sobre as complexas relações entre saúde na velhice e contexto ecológico-cultural na Amazônia é um enorme desafio que, mesmo com as dificuldades, jamais deixa de ser fascinante e necessário. Assim, para além da abordagem epidemiológica a despeito dos problemas de saúde, fatores de risco e meios de enfrentamento, cabe também ao cenário científico ampliar as discussões e a compreensão das especificidades desses constructos por outros ângulos, inclusive pela própria ótica da pessoa idosa (Carneiro & Magalhães, 2020; Miranda et al., 2017; Nascimento et al., 2016).
No campo gerontológico, a concepção de saúde do idoso está ancorada à perspectiva da Psicologia do Envelhecimento conhecida como life-span. Essas abordagens sugerem que por meio de um conjunto de pressupostos sobre o desenvolvimento humano, a saúde também é concebida como um processo multidimensional e multidirecional, marcado pelo equilíbrio entre ganhos e perdas concorrentes, resultantes da interação entre os recursos pessoais e recursos ambientais, implicando em atitudes de adaptabilidade, plasticidade e resiliência (Scoralick-Lempke & Barbosa, 2012).
No escopo deste ponto de vista, portanto, a subjetividade é um conceito-chave para a avaliação da saúde do idoso e corresponde a uma dimensão constitutiva importante a qual expressa o que o indivíduo compreende, percebe, pensa e comunica na relação de sentido estabelecida consigo mesmo, com os outros e com o contexto sociocultural no qual está inserido. Dessa forma, no processo de avaliação de sua saúde faz-se necessário dar voz ao próprio idoso, tendo em vista a autonomia que ele dispõe para falar sobre sua percepção no processo saúde-doença (Dias et al., 2011; Fonseca et al., 2010; Rey, 2005).
Estudos abordando os aspectos de saúde e sua relação ecológica-cultural na população idosa ribeirinha ainda são escassos, especialmente na região amazônica (Nascimento, et al., 2016; Polaro et al., 2013). Não obstante, também cabe destacar que as percepções de populações idosas ribeirinhas sobre hábitos, riscos e estratégias para a manutenção da saúde nos contextos tipicamente amazônicos ainda representam uma lacuna na literatura, o que imprime uma importante curiosidade científica.
Há de se ressaltar que na maioria das comunidades ribeirinhas amazônicas ainda predominam o acentuado isolamento territorial e importantes vulnerabilidades sociais. Por outro lado, de acordo com estudos já realizados sobre esse mesmo contexto, emergem algumas particularidades tradicionais como, por exemplo, o maior contato com um meio pródigo em tranquilidade e sem padrões rígidos de rotina; uma rede de suporte social mais alargada, representada principalmente pelas relações familiares e um ritmo de vida menos acelerado, favorável aos idosos, tal como em comunidades rurais (Nascimento et al., 2016; Silva et al., 2010; Silva et al., 2011).
A despeito do conhecimento adquirido ao longo da vida, cabe destacar que nas comunidades tradicionais ribeirinhas a transmissão do conhecimento, experiências e histórias de vida ocorre, preferencialmente, de forma verbal, por meio de narrativas transmitidas de geração a geração (Lima & Andrade, 2010), muito embora, essas regiões também sejam receptoras das contribuições da cultura urbana, provavelmente pela proximidade aos centros urbanos, o que possibilita relativo acesso, seja pelo uso de bens tecnológicos como televisores, rádios, telefones e até computadores nos contextos rurais-ribeirinhos.
No campo da saúde existem sérios problemas de infraestrutura básica de vida decorrentes da falta de investimento, especialmente no saneamento básico (Silva et al., 2014). Além disso, em geral, existem poucos programas de saúde específicos destinados a essa população. Quando eles necessitam de assistência à saúde, na maioria das vezes, buscam os “terapeutas” locais, ou são obrigados a se deslocarem à cidade-sede (Gama, et al., 2018; Vilas Bôas & Oliveira, 2017).
Considerando-se a relevância da temática, o presente estudo teve como objetivo conhecer e analisar as percepções de pessoas idosas ribeirinhas amazônicas sobre as principais crenças e estratégias de cuidado para a manutenção da saúde.
Método
Trata-se de um estudo descritivo, utilizou-se a abordagem qualitativa para alcançar inferências subjetivas sobre a temática.
Participantes
A amostra foi constituída por 31 pessoas idosas nativas das comunidades ribeirinhas do município de Cametá, estado do Pará, localizado no território do Baixo Tocantins, Nordeste Paraense. Vale ressaltar que este é um município paraense tipicamente ribeirinho por apresentar em sua extensão territorial mais de 100 ilhas fluviais, fator decisivo para sua escolha.
Todos os participantes foram contatados pelos pesquisadores por intermédio de informantes da região (moradores nativos e Agentes Comunitários de Saúde). O processo de amostragem utilizado foi por saturação teórica, considerando, em especial, o conteúdo das falas.
A despeito da caracterização da amostra, 14 eram mulheres (45,1%) e 17 homens (54,8%), com média de idade de nos. A maioria era de indivíduos casados (74,7%), analfabetos funcionais (64,8%), com arranjo domiciliar do tipo familiar, composto por c (51,1%) e que tinha afinidade com algum tipo de atividade ou prática religiosa (97,2%).
Material
Para garantir maior aprofundamento do assunto optou-se por articular as técnicas entrevistas semiestruturadas e observação-participante. As entrevistas semiestruturadas foram realizadas por três pesquisadores na própria residência dos participantes. O roteiro de entrevista foi constituído de dados demográficos e socioeconômicos da pessoa idosa ribeirinha, além de perguntas semiestruturadas sobre as dimensões biopsicossociais da saúde e suas influências sócio-históricas e culturais.
A técnica observação-participante realizada ao longo de cada entrevista permitiu o alcance das dimensões explicativas que os dados exigem em um diário de campo, segundo os preceitos de Afonso et al. (2015) e foi utilizada de forma complementar, na intenção de descrever em detalhes o nível empírico do estudo, focalizando o registro das experiências e percepções compartilhadas, bem como as características sócio-históricas tradicionais que permeiam o contexto ecológico ribeirinho amazônico, ponderando as características da população idosa referida, bem como as dinâmicas e redes de relações que conformam essa interface ambiente-pessoa.
Cabe destacar que o desenvolvimento da pesquisa de campo foi realizado em dois momentos distintos, sendo o primeiro definido como inserção ecológica dos pesquisadores. À ocasião, foram registradas informações sobre o modo de vida e o contexto físico e social do local do estudo. No segundo momento da pesquisa, realizado no período compreendido entre junho de 2015 a junho de 2017, foram percorridas 19 localidades da região das ilhas fluviais.
Procedimento
A primeira etapa da pesquisa consistiu no cumprimento dos aspectos éticos. Destaca-se que a mesma, recebeu parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos do Núcleo de Medicina Tropical da Universidade Federal do Pará (CEP/NMT/UFPA), segundo o parecer de n° 926.744/2014, obedecendo às diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisa em seres humanos, conforme a resolução nº 466/2012 CNS.
Durante o período de coleta dos dados, os participantes foram abordados individualmente; apresentou-se a proposta geral da pesquisa e o interesse em ouvi-los acerca das condições de saúde multidimensional. Após o aceite e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foram realizadas as entrevistas. Vale destacar que no decorrer da coleta de dados demonstrou-se tranquilidade, interesse e disponibilidade para ouvi-los, observando e registrando tanto os aspectos verbais quanto os não verbais, em razão da riqueza das informações e percepções da amostra. As entrevistas foram registradas com auxílio de gravador e, posteriormente, transcritas e digitadas na íntegra em Word Windows versão 2010.
Para o tratamento do corpo de dados, optou-se pela análise temática, com ênfase na análise de conteúdo temático-categorial. A partir dessa técnica, elegeram-se as escolhas lexicais consideradas chaves e a frequência dessas escolhas no discurso para a interpretação dos dados (Bardin, 2009). Operacionalmente foram percorridas as seguintes etapas: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados e interpretação. Ao final, foi construído um diagrama que colocou o sistema de categorias em evidência para análise, interpretação e inferências sobre o objeto de estudo.
Resultados
Durante a coleta de dados, à medida que os diálogos se estendiam, as percepções positivas e/ou negativas ancoradas à saúde foram sendo reveladas de maneira muito particular, por um lado refletindo influências culturais tradicionais de uma longa vida compartilhada em um ambiente distinto dos grandes centros urbanos, por outro, convergindo para uma aproximação da compreensão de saúde pelo modelo biopsicossocial.
De acordo com a proposição do estudo e mediante a apreciação dos discursos, emergiram 329 unidades de registro que deram suporte ao agrupamento inicial de três categorias para análise: Adoecimento e suas implicações funcionais; Crenças e saberes tradicionais; e Estratégias para a manutenção da saúde.
Em um segundo momento, considerando os objetivos desse estudo, as categorias foram analisadas com maior nível de detalhes e foram divididas em subcategorias temáticas. Da categoria “Crenças e saberes tradicionais”, obtiveram-se três subcategorias de análise: Preocupações alimentares; Implicações do tabaco; e Amparo terapêutico tradicional. Por sua vez, da categoria “Estratégias para a manutenção da saúde”, obtiveram-se outras quatro subcategorias de análise: Mudanças no ritmo de trabalho; Envelhecer fisicamente ativo; Suporte social ampliado; e Suporte religioso.
Categoria: Adoecimento e suas implicações funcionais
A primeira categoria criada (surgiu em 31% das respostas dos participantes), englobou as principais ponderações dos idosos em relação a percepção pessoal sobre o estado de saúde. Ao serem questionados sobre o estado de saúde durante a coleta de dados, eram frequentes as ponderações dos idosos em relação ao adoecimento físico. Viu-se que a maioria dos discursos envolvia desordens de cunho osteomioarticulares e, geralmente, faziam relação com a exposição ao esforço físico durante o trabalho ao longo da vida e com as limitações funcionais, as quais impactam na vida social dessas pessoas. A seguir, algumas exemplificações que retratam o explicitado.
“Trabalhei demais, é por isso que hoje eu sofro com dor nas juntas, nos ossos” [I81, 66 anos].
“A saúde tá mais ou menos porque sinto muita dor, só que pro que eu tava, melhorei. Tem hora que dói a modo aqui nas cadeiras [...] O doutor me falou que era desgaste da coluna” [I82, 63 anos].
“De antes quando eu tinha muita força na perna eu saia, ia visitar meus filhos, depois que apanhei esse sofrimento [reumatismo] tenho muita dificuldade nela”; “[...] lavar roupa não faço por causa do reumatismo; é minha filha que lava [...] a casa pra varrer pra limpar não dou conta, só é ela [...]” [I64, 77 anos].
Por outro lado, curiosamente, em diversos momentos das entrevistas observou-se que embora os idosos relatassem a presença de comorbidades, faziam reflexões positivas sobre a capacidade de desempenho das atividades cotidianas na velhice, inclusive remetendo percepções comparativas, como identificado nos fragmentos:
“Eu ainda tenho disposição pra trabalhar, o pessoal se admira” [I76, 77 anos].
“Se não tiver o barco no porto a gente vai a remo mesmo; ainda tenho força” [I82, 63 anos]
[I83, 68 anos].
[I72, 70 anos].
[I76, 77 anos]
Categoria: “Crenças e saberes tradicionais”
Nesta categoria, foram agrupadas as concepções mais relevantes que envolvem as crenças populares e a apropriação de saberes sobre processo saúde-doença na velhice ribeirinha. Na primeira subcategoria deste eixo Preocupações alimentares (surgiu em 16,4% das respostas dos depoentes), ficou evidente que o padrão alimentar dos idosos que vivem nessas regiões tem passado por uma importante transição nutricional (Da-Gloria & Piperata, 2019). Fato este destacado na fala de boa parte dos idosos entrevistados, como ilustram as falas:
“Praticamente, a gente tá só passando a frango, carne, charque, conserva, sardinha, farinha, feijão [...]” [I72, 70 anos].
“Não falha aqui no nosso armário, a mortadela, a sardinha, a conserva e o charque!” [I76, 77 anos].
Em contrapartida, vale destacar que grande parte das percepções catalogadas sobre alimentação reportaram crença na importância dos alimentos naturais para a manutenção da saúde. Quando questionados, alguns idosos relatavam que a ingesta de alimentos naturais é um dos fatores que mais contribui com a saúde, demostrando conhecimento plausível acerca desta pauta. Os relatos a seguir auxiliam nesta compreensão:
“Nós daqui vive no paraíso porque come o peixe, o camarão tudo natural. Tirou da água já tá na panela pra comer. Eu sou mais saudável! [I76, 77 anos]“[...] se eu sentir muito sal, não vou comer!” [I82, 63 anos].
“[...] de gordura mais apreciada, só o peixe!” [I76, 77 anos].
Na outra subcategoria deste eixo Implicações do tabaco (surgiu em 14,1% das respostas dos participantes), o
Segundo algumas narrativas, o começo da prática esteve relacionado a diversas influências socioculturais da região. No entanto, chamou atenção o fato de muitos deles atribuírem o começo da prática às condições de trabalho árduo nos roçados e nos rios, vivenciadas na adolescência e na idade adulta. Eis algumas respostas que ilustram o explicitado:
“Eu já fumei, larguei! Eu fumava muito quando eu trabalhava colocando madeira do mato” [I83, 68 anos].
“Eu fumo porque a gente que trabalhava no mato, apanhava chuva, dava muito carapanã, aí é o único vício que eu ainda tenho [...]” [I81, 66 anos].
“A gente sabe que não faz bem pra saúde, mas ainda não achei jeito de parar de fumar” [I72, 70 anos].
“Fumo muito. Gosto! Tabacão e cigarrinho (industrializado). Fumo mais porronca! Mas eu sei que os dois nos prejudica. Mas é difícil parar de fuma doutor porque ele me diverte” [I76, 77 anos].
Com relação à subcategoria Amparo terapêutico tradicional (surgiu em 17% das respostas dos participantes), esta reuniu a compreensão das relações entre o processo saúde-doença, a rede de suporte terapêutico tradicional e institucional, bem como as representações culturais e comportamentais do idoso que vive em comunidades ribeirinhas.
Nesta pesquisa, quando questionados sobre a terapêutica praticada nas regiões, notou-se que a maioria das manifestações emitidas pelos idosos confirmavam a predileção pelas práticas de cura popular. A maioria das percepções eram positivas; geralmente ancoradas às vivências pessoais e familiares; atribuíam confiança e respeito às tradições. Alguns discursos ilustram bem essa noção:
“Aqui é mais remédio da terra, negócio de planta, de chá” [I46, 86 anos].
“Eu não gosto de negócio de pílula, nem injeção, tenho medo! Prefiro mesmo é tratar por aqui!” [I72, 70 anos].
“Uma vez que eu cai e afastei três costelas, fui no puxador que tem aqui próximo e ele disse que endireitou os nervos tava torcido e que provocava a passagem do sangue pra cabeça! Olhe, endireitou tudo!” [I76, 77 anos].
“Quebrei o braço e ele emplastou com osso de macaco. Deu tudo certo. Ficou bem!” [I64, 77 anos].
Embora as terapêuticas tradicionais sejam consideradas um importante recurso interno para essas comunidades, por ser mais acessível e por preservar tradicionalmente o conhecimento popular, alguns idosos reconheceram sabiamente as limitações dessas práticas, como bem ilustra algumas falas: “Tem alguns que ela acerta, outros não” [I13, 87 anos] e “Eles dão jeito só nos casos menores, nos maiores não[...]” [I04, 64 anos]. Isto posto, é nesse ponto que o suporte terapêutico institucional parece se conectar com as práticas populares, ganhando, assim, espaço no contexto ribeirinho.
Categoria: “Estratégias para a manutenção da saúde”
Nesta categoria foram reunidas as principais estratégias adotadas pelos idosos para manterem-se saudáveis. Na primeira subcategoria Mudanças no ritmo de trabalho (surgiu em 13,9% dos diálogos), agrupou-se as respostas referentes à saúde como consequência da adoção de hábitos ao longo da vida. Durante a pesquisa, ficou evidente que ao longo da vida os idosos ribeirinhos se preocupam em modificar alguns de seus hábitos para obter a manutenção da saúde na fase da velhice.
Um bom exemplo disto é a redução do engajamento nas atividades econômicas e de subsistência, a qual modifica bruscamente a rotina dessas pessoas. Para alguns idosos, isto se deve por motivos de agravos de saúde, mas a maioria atribui ao fato de não mais precisarem se submeter ao trabalho pesado, ou por conta do provento da aposentadoria rural ou em função da noção de transferência dessa responsabilidade laborativa para os seus descendentes. Algumas falas ilustram bem essa ideia:
“Eu tenho meus filhos, são jovens, vão pra lida!” [I72, 70 anos].
“Tem atividade que não carece mais de fazer, os filhos fazem no meu lugar” [I98, 68 anos].
“Nós que já somo aposentado né, a gente já dá vaga pros filhos, pra eles terem de onde tirar né?” [I29, 79 anos].
A partir dos discursos também se nota uma importante compensação, as atividades antes exercidas nas matas e nos rios se tornam mais intensas nos espaços domiciliares, como relatado a seguir: “Olha, trabalhava antigamente, né? Que eu trabalhava no mato e a cabeça da gente fica fria. Hoje em dia é mais na casa do que no mato, porque no mato agora só partir, porque eu gostava muito de pegar camarão, peixe, agora é difícil!” [I82, 63 anos].
A segunda subcategoria Envelhecer fisicamente ativo (surgiu em 24,9% dos diálogos) enfatizou a importância da adoção do estilo de vida ativo. De acordo com os relatos, a manutenção da saúde na velhice está relacionada à continuidade das atividades físicas cotidianas.
“Quando eu não tenho nada do que fazer, eu gosto de tá andando dentro do mato porque eu fui criado no mato. É o que me dá energia!” [I81, 66 anos].
“Todo dia eu movimento o corpo. Se parar apanha doença!” [I64, 77 anos].
A despeito da subcategoria Suporte social ampliado (surgiu em 37,9% das respostas dos idosos), agrupou as respostas referentes à noção de [I83, 68 anos]
“Eu me sinto muito feliz perto dos meus filhos, mesmo que morasse longe dos meus filhos, tem o meu marido, já cuidou muito de mim e ainda cuida graças a Deus” [I72, 70 anos].
A última subcategoria estruturada, Suporte religioso (surgiu em 41,7% dos diálogos) englobou as respostas que compreendem a religiosidade como um recurso essencial que permeia a manutenção da saúde no seu cotidiano. Durante a maior parte do tempo dispensado às entrevistas, a representação do aspecto religioso/espiritual foi observada. Este, quase sempre incorporado nas falas com diferentes valores, como por exemplo, os sentimentos de gratidão, de súplica, de guia e benção divina, como ilustram os discursos:
“Eu sou um homem que tem muita fé em Deus [...] Toda noite eu peço a Deus que me guarde” [I82, 63 anos].
“A minha velhice graças a Deus e nossa senhora tá sendo boa [...] A gente envelhece conforme Deus quer”. [I13, 75 anos].
“Olha, eu agradeço muito pra Deus, entendeu como é? Primeiramente pra Deus eu agradeço muito, porque nós recebe tudo da mão dele. Porque ele ainda me deu 60 anos. Eu num pensei que eu ia chegar a 60 anos, porque na minha vida eu peguei muitas “cacetada” [I09, 67 anos].
“Hoje eu vivo satisfeito, alegre, sorrindo, conversando! A não ser que eu tenha sentindo uma dor no corpo, não tenho porque me entristecer. Já sofri perda de mãe, pai, filho e irmãos, mas todos estamos hoje aqui formado através de um Deus”. [I82, 63 anos].
Discussão
Compreender a saúde de quem vivencia a velhice às margens dos rios da Amazônia foi uma experiência desafiadora, dadas as particularidades contextuais e as riquezas culturais estabelecidas historicamente no saber empírico dessas comunidades. De modo geral, existem muitas inquietações sobre a temática, atribuídas especialmente à interação entre o contexto ambiental, o modo de vida diferenciado e a higidez da saúde física dos idosos ribeirinhos. Tais percepções são elaboradas empiricamente e fazem surgir presunções curiosas sobre as interações ecológicas entre o ambiente e suas implicações no desenvolvimento e na saúde dessas pessoas.
O adoecimento ao longo da velhice foi especialmente valorizado pelos participantes do estudo. Para Ribeiro et al. (2018), com o incremento da idade, os indivíduos tendem a apresentar mais problemas de saúde e incapacidades, o que pode contribuir de certo modo para a percepção negativa de saúde. No entanto, Schimidt e Silva (2012), chamam a atenção para o fato de as percepções sobre saúde na velhice não serem moduladas por um único mecanismo. Existe uma multiplicidade de aspectos sócio-históricos e culturais inerentes a este constructo. Mesmo assim, é comum que os próprios idosos reduzam o entendimento sobre a saúde aos aspectos biológicos, pois eles, geralmente, são mais aparentes e mais facilmente identificáveis.
Ainda que os idosos relatem a presença de doenças, foi visto que a maioria se preocupa com a capacidade de desempenho das atividades cotidianas. Tal resultado não era esperado, mas corrobora estudos anteriores (Borges et al., 2014; Alves & Rodrigues, 2016). Assim, dada à complexa interação entre os determinantes da autopercepção de saúde, é possível que idosos mesmo quando portadores de doenças crônicas apresentem uma boa percepção de saúde.
Sobre as preocupações alimentares expressadas pelos idosos, embora a pesca, caça e coleta ainda sejam importantes complementos da dieta dos ribeirinhos amazônicos, com especial destaque ao consumo de açaí nativo e manejado (Adams & Piperata, 2014), os recebimentos da aposentadoria rural, que de fato aumenta o poder de compra dos mesmos e a inserção de uma cultura capitalista e urbana, vinculada à mídia, parecem influenciar a inserção de alimentos industrializados na base alimentar familiar.
Com relação do tabagismo, enquanto hábito deletério, algumas pesquisas apontam maiores prevalências na zona rural do Brasil, em comparação à urbana, o que reflete as desigualdades sociais referentes à pobreza e baixa escolaridade nessas regiões (Monteiro et al., 2007; Xavier et al., 2018).
As representações das crenças e saberes também foram frequentemente expressadas pelos idosos ribeirinhos através da busca por terapêuticas tradicionais diante de um processo de adoecimento. Nessas regiões, é uma prática costumeira e implica desde a automedicação por fitoterápicos até a consulta com os curandeiros, benzedores e puxadores (Gama et al., 2018; Souza et al., 2019). Considerando que a maioria dos “terapeutas populares” nessas regiões são idosos, vale destacar que, nesse caso, a velhice conta a favor e apresenta-se como um diferencial positivo de valorização social. Em outras palavras, esses idosos sustentam papéis de destaque em suas comunidades, na qual, a idade parece conferir a experiência e a credibilidade necessária para o sucesso dos tratamentos (Nascimento et al., 2019).
A despeito das estratégias para se manter uma boa saúde, houve destaque para algumas seleções e compensações na velhice. Diferentemente do que é observado na maioria das comunidades urbanas, no contexto ribeirinho o trabalho é essencialmente braçal e muitas vezes iniciado durante a infância. Desse modo, faz parte do cotidiano dessas pessoas, transpassando um inestimável valor e responsável pela sensação de produtividade e utilidade para a família e para a comunidade. Para os idosos, cessar essas atividades e toda sua representação sociocultural de convivência nos rios e na floresta, por qualquer motivo que seja, parece não ser tarefa das mais fáceis (Nascimento et al., 2019).
A manutenção do estilo de vida ativo mencionado pelos idosos ribeirinhos pode ser considerado um importante fator de proteção. Sob o ponto de vista científico, essa questão é uma meta incentivada e já estabelecida inclusive pela Organização Mundial de Saúde, em razão dos seus importantes benefícios à saúde física e mental (WHO, 2018).
Especialmente no contexto ribeirinho, a estratégia de “viver em comunidade” é muito intensa e prioritária. Majoritariamente os idosos dividem domicílio com cônjuges, filhos e, muitas vezes, com filhos e netos, ampliando-se a convivência entre gerações, o que implica em outro efeito protetivo para esses idosos. Esta percepção de que há pessoas disponíveis na comunidade ou na família para ajudar no dia a dia e em tempos de necessidades, atua como moderador do efeito dos eventos estressantes sobre o bem-estar psicológico desses idosos, afetando positivamente tanto a sua saúde física, quanto mental (Batistoni et al., 2013; Hyde et al., 2011).
Além disso, os discursos dos idosos ribeirinhos reforçaram quão importante é acreditar em algo superior nessa fase da vida e desvelaram que este fator interfere de maneira positiva na saúde física e mental, favorecendo um envelhecimento bem-sucedido. De acordo com Amorim et al. (2017), várias evidências têm mostrado que a religiosidade está associada a uma melhor capacidade funcional, a um retardo do declínio funcional e a um melhor enfrentamento da incapacidade.
Enfim, diante desses resultados, foi possível perceber que os idosos ribeirinhos apresentaram uma concepção ampliada de saúde. As percepções emitidas pelo grupo indicaram um modo particular de pensar e de agir com relação ao processo de envelhecimento e manutenção da saúde, desenvolvidos a partir dos saberes tradicionais, estando coerentes com o que se estabelece para o alcance do envelhecimento bem-sucedido.
Ainda que este estudo tenha como limitação ter sido realizado em uma única região de ilhas da Amazônia, de um modo geral, o conjunto de temas discutidos neste estudo revela importantes percepções sobre envelhecimento e saúde, moldadas pelo contexto ecológico ribeirinho em que estão inseridos. Considerando a relevância da temática, a compreensão da complexa interação do desenvolvimento ao longo da vida e a necessidade de se construir pesquisas em prol da saúde geral dos idosos, sugere-se a elaboração de estudos futuros, utilizando metodologias mais objetivas, destinadas a medir o sucesso/insucesso do envelhecimento e que também possam contribuir indicando a direção do cuidado e da atenção à saúde nesses contextos.
Contrubuição dos autores
Rodolfo Nascimento: Concetualização, Análise formal, Investigação, Metodologia, Redação do rascunho original, Redação - revisão e edição.
Ronald Cardoso: Análise formal, Investigação, Metodologia, Redação do rascunho original, Redação - revisão e edição.
Denise Pinto: Análise formal, Investigação, Metodologia, Redação do rascunho original, Redação - revisão e edição.
Celina Magalhães: Concetualização, Curadoria dos dados, Análise formal, Aquisição de financiamento, Redação do rascunho original, Redação - revisão e edição.