Introdução
A osteoporose é a doença metabólica mais comum do osso, caracterizando-se por redução da massa óssea e deterioração da microarquitetura do osso, alterações que condicionam um maior risco de fratura.1-3
Os bifosfonatos são a classe farmacológica de primeira linha utilizada no tratamento da osteoporose, sendo eficazes na redução do risco de fraturas. 3-6 O seu mecanismo de ação passa pela inibição da atividade dos osteoclastos, o que acaba por também condicionar uma inibição da remodelação óssea, tornando o osso mais suscetível à acumulação de lesões microscópicas que, com o tempo, podem culminar em fraturas. 3-8
De facto, têm surgido, na última década, relatos de fraturas atípicas do fémur como uma potencial complicação do tratamento a longo-prazo com bifosfonatos. 2-3,5
Este artigo tem como objetivo apresentar um caso de fratura atípica do fémur potencialmente induzida pelo uso prolongado de bifosfonatos e discutir aspetos importantes desta entidade para a prática clínica.
Descrição do caso
Doente do sexo feminino, caucasiana, de 78 anos, reside com o marido, encontrando-se na fase VIII do ciclo de vida familiar de Duvall. Tem o 4.o ano de escolaridade e era costureira numa empresa de confeções, encontrando-se reformada.
Antecedentes pessoais de insuficiência venosa periférica (submetida a safenectomia bilateral em 2009), gonartrose bilateral (submetida a colocação de prótese total do joelho direito em 2013), rizartrose da mão direita (intervencionada em 2016), dislipidemia medicada com sinvastatina 40 mg/dia e perturbação depressiva medicada com alprazolam 0,75 mg/dia e venlafaxina 150 mg/dia.
Dos antecedentes familiares destacam-se diabetes mellitus tipo 2 e carcinoma renal na mãe da utente.
Aos 57 anos realizou uma osteodensitometria com os seguintes resultados: coluna lombar com índice T -2,8 e densidade mineral óssea (DMO) de 0,743 g/cm2 e colo femoral com T -1,9 e DMO de 0,749 g/cm2. Tendo valores compatíveis com o diagnóstico de osteoporose iniciou terapêutica com ácido ibandrónico 150 mg mensal.
Um ano depois repetiu a osteodensitometria, a qual revelou uma ligeira melhoria do índice T e da DMO, tanto na coluna lombar (T -2,1 e DMO de 0,818 g/cm2) como no colo do fémur (T -1,5 e DMO de 0,940 g/cm2).
Passados dois anos, na altura em que perfazia três anos de tratamento com ácido ibandrónico 150 mg mensal, voltou a repetir o mesmo exame, que revelou manutenção dos valores na coluna lombar (T -2,1 e DMO de 0,818 g/cm2), mas uma melhoria dos parâmetros no colo femoral (T +0,5 e DMO de 1,040 g/cm2).
No ano 2007, sete anos após ter iniciado ácido ibandrónico 150 mg mensal, realizou switch terapêutico para ácido alendrónico 70 mg + colecalciferol 2800 U.I./semanal, que mantém desde então, perfazendo treze anos de tratamento contínuo com este fármaco e vinte anos de terapêutica com bifosfonatos.
Desde 2015, a utente recorreu múltiplas vezes à consulta aberta da sua Unidade de Saúde Familiar com queixas de dor na virilha e coxa, à esquerda, interpretadas como decorrentes de lombociatalgia e patologia muscular e osteoarticular.
Em 2020, ao realizar as suas atividades domésticas no domicílio, sofreu queda da própria altura após um movimento de rotação associado a dor na coxa esquerda, da qual resultou incapacidade funcional imediata com perda da capacidade de marcha.
Foi conduzida ao serviço de urgência de ortopedia, onde realizou radiografia simples, que revelou uma fratura subtrocantérica de traço simples, oblíquo curto com spike interno e espessamento cortical a este nível (Figura 1).
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Figura 1 Radiografia simples relativa ao caso clínico. Observa-se espessamento da cortical óssea, traço de fratura não cominutivo, com pequena obliquidade, e um spike medial.
Foi submetida a correção cirúrgica com redução da fratura e encavilhamento anterógrado com gamma nail. Posteriormente realizou um programa de reabilitação individualizado, inicialmente com treino de marcha com recurso a apoio de marcha (andarilho, canadiana). Cerca de seis meses após o início do programa de reabilitação já havia recuperado a capacidade de marcha autónoma e a independência para as suas atividades de vida diária.
Comentário
Os bifosfonatos são o gold-standard no tratamento da osteoporose, com eficácia suportada pela evidência científica na prevenção das fraturas osteoporóticas. 1-4,7,9-11
Desde 2005 têm surgido relatos de casos a sugerir uma relação entre o uso prolongado de bifosfonatos e a ocorrência de fraturas atípicas do fémur. 4-7,9,12
As fraturas atípicas do fémur diferem das fraturas osteoporóticas clássicas em vários aspetos, nomeadamente no mecanismo de lesão, na localização e na configuração do traço de fratura (Tabela 1). 4,9
Os resultados dos estudos desta área não têm sido conclusivos, não estando estabelecida uma relação causal entre o uso prolongado de bifosfonatos e as fraturas atípicas do fémur. 4-7 Por esse motivo, a American Society for Bone and Mineral Research (ASBMR) criou um grupo de trabalho para rever o estado da arte, estabelecer critérios de diagnóstico (Tabela 2) e elaborar linhas orientadoras para a prática clínica. 13
Tabela 2 Critérios major e minor para o diagnóstico de fraturas femorais atípicas segundo a ASBMR (American Society for Bone and Mineral Research)
![](/img/revistas/rpmgf/v39n1//2182-5173-rpmgf-39-01-62-gt2.png)
Apresenta-se o caso de uma fratura femoral que cumpre os critérios de fratura atípica (Tabela 2), que ocorreu na sequência de um trauma de baixa energia, numa utente medicada com bifosfonatos por um período prolongado e para a qual não foi determinada uma causa.
Esta potencial complicação deve ser considerada na prática clínica, quer na instituição da terapêutica com bifosfonatos quer na realização de um intervalo no tratamento (Tabela 3). 2-3,5,14 Outro aspeto que se deve considerar são as comorbilidades e outros fatores de risco que possam contribuir para a ocorrência destas fraturas, nomeadamente a menopausa precoce, a etnia asiática, a corticoterapia e a presença de um ângulo varo do colo do fémur. 4,15
Na vigilância dos utentes medicados com bifosfonatos, o clínico deve ter em conta este possível efeito secundário, solicitando a realização de uma radiografia do fémur caso o utente apresente sintomas prodrómicos, nomeadamente dor inguinal e/ou da coxa, como no caso descrito. 2,13-14,16
Provavelmente a relação causal entre o tratamento prolongado com bifosfonatos e a ocorrência de fraturas femorais atípicas só se conseguirá estabelecer através da realização de ensaios clínicos aleatorizados e controlados.
A eficácia dos bifosfonatos na prevenção de fraturas osteoporóticas está bem estabelecida. 1-2,4,14 Já a sua associação a fraturas atípicas do fémur ainda é controversa. Deste modo, a avaliação do risco/benefício favorece a sua utilização como tratamento de primeira linha na osteoporose. 1-2,4,14
Com este relato de caso pretende-se alertar para a possível associação entre a terapêutica prolongada com bifosfonatos e a ocorrência de fraturas femorais atípicas, sem esquecer outros fatores metabólicos que poderão estar também envolvidos na etiologia das mesmas, destacando a importância da vigilância ativa destes doentes.