INTRODUÇÃO
Com o aumento da prevalência de excesso de peso, a investigação tem vindo a quantificar e delimitar os aspetos do comportamento alimentar relacionados com as variações ponderais. No entanto, o processo de redução e manutenção de peso é árduo e envolve interações complexas entre fatores comportamentais, fisiológicos, ambientais e cognitivos/psicossociais (1).
As intervenções restritivas para o controlo de peso, seja o controlo rígido ou o controlo flexível (que se refere à normas menos restritas ou por compensação) (2, 3), têm demonstrado que os efeitos são pouco sustentáveis a longo prazo (4, 5) e têm apresentado consequências negativas no comportamento e distúrbios alimentares (2, 6 - 8). No entanto, reconhece-se que a restrição na alimentação e as perturbações no comportamento alimentar têm sido muito investigadas e, paralelamente a este foco, outras dimensões no âmbito do comportamento alimentar adaptativo, que tem como indicadores a ausência de características relacionadas com perturbações alimentares (restrição alimentar e compulsão alimentar) têm sido adotados e incentivados (9, 10).
Neste contexto, a alimentação intuitiva e consciente podem favorecer o comportamento alimentar adaptativo (11 - 18). Isso porque a alimentação consciente se baseia em aumentar a consciência associada ao comer e à observação dos fatores externos, emocionais ou físicos (17 - 19) e a alimentação intuitiva em enfatizar a capacidade de compreender sinais de fome e saciedade, em vez de se envolver em comportamentos alimentares reativos a estímulos externos e emocionais (16).
Princípios baseados na consciência, conexão mente-corpo, redução da alimentação emocional e na autorregulação da alimentação são mais eficazes na regulação e manutenção de peso (9, 20 - 22). Diversos autores referem outros determinantes relevantes na mudança de comportamento, como a autoeficácia relacionada com aspectos alimentares, definida pela crença na capacidade de autorregular comportamentos relacionados com a alimentação (23 - 27).
De uma forma geral, parece que estabelecer uma atitude alimentar adaptativa e consciente e incrementar competências autorregulatórias e de autocontrolo pode contribuir para a gestão do peso e para um comportamento alimentar adaptativo (21, 28, 29). Face ao exposto, realizou-se um aprofundamento desta temática ao avaliar as relações destas dimensões do comportamento alimentar com a trajetória ponderal de adultos.
OBJETIVOS
Relacionar o comportamento alimentar de adultos portugueses com a trajetória da variação ponderal no ano anterior.
METODOLOGIA
A recolha de dados foi realizada de novembro de 2019 a março de 2020. A amostra foi de conveniência, composta por adultos com nacionalidade portuguesa e residência em Portugal. Foram critérios de exclusão: gestantes ou mulheres com partos há menos de 12 meses e pessoas submetidas a cirurgia bariátrica. Foi efetuado cálculo de tamanho amostral, sendo que para uma correlação de 0,2 ser significativa com alfa = 0,05 e beta = 0,2 o tamanho amostral mínimo seria de 194 participantes. Foram contactados, por contato pessoal pelos investigadores, 334 potenciais participantes da população geral (em escolas, instituições privadas, serviços de retalho e através de contatos pessoais), dos quais 272 aceitaram participar no estudo (taxa de participação de 81,4%). Foram excluídos da análise os dados de participantes com preenchimento incompleto dos questionários (n = 16). Devido ao reduzido número de participantes com obesidade mórbida (Índice de Massa Corporal (IMC) ≥ 40,0 kg/m2; n = 4) e grande dispersão desses valores de IMC, os dados destes foram também excluídos da análise. No total, foram analisados neste trabalho dados de 252 participantes.
Este estudo teve parecer favorável da Comissão de Ética da Universidade do Porto (Parecer N.º 86/CEUP/2019) e todos os participantes assinaram um termo de consentimento após serem informados das condições de participação.
Os dados recolhidos incluíram características sociodemográficas e antropométricas auto-reportadas, entre elas a altura e o peso (atual e desejado). O IMC foi calculado e classificado de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS) (30). A trajetória ponderal no ano anterior foi avaliada através da seleção de afirmações - “Durante o último ano o meu peso manteve-se estável”; “Houve períodos durante o último ano em que o meu peso diminuiu”; e “Houve períodos durante
o último ano em que o meu peso aumentou” - e posteriormente classificada em: “peso estável”, “perda de peso”, “ganho de peso” e “peso cíclico” (este último que indica que o indivíduo referiu variações no peso em ambos os sentidos direções no último ano).
Para Avaliar o Comportamento Alimentar Aplicaram-se os Seguintes Instrumentos
Sub-escalas de Controlo Rígido e Flexível do Comportamento Alimentar: Para avaliação da restrição alimentar foram utilizadas as sub-escalas propostas por Westenhoefer et al. (1999) (2) e adaptadas e validadas para a população portuguesa por Poínhos et al. (2013) (31). Este instrumento inclui 25 itens (11 correspondentes à sub-escala de controlo flexível e 14 à de controlo rígido). As pontuações nas sub-escalas podem variar entre 0 e 11 e entre 0 e 14 pontos, respectivamente para o controlo flexível e para o controlo rígido, sendo que pontuações superiores correspondem a níveis mais elevados do respetivo tipo de restrição.
Escala de Alimentação Intuitiva: Avalia a capacidade de o indivíduo reconhecer as pistas internas ao alimentar-se, ao invés de se basear em pistas externas e/ou emoções. A versão portuguesa de Pinto-Gouveia e Azevedo (2013) (11), obtida a partir da versão original (Intuitive eating Scale - IES) de Tylka (2006) (10), é composta por 20 itens distribuídos por 3 subescalas: permissão incondicional para comer (9 itens); comer por razões físicas em vez de razões emocionais (5 itens); e confiança em pistas internas de fome e saciedade (6 itens). A pontuação total é de 20 a 100, sendo que pontuações superiores indicam nível mais elevado de alimentação intutiva, quer no total quer nas subescalas.
Questionário de Alimentação Consciente: Este instrumento, elaborado por Framson et al. (2009) (32), foi traduzido e adaptado para Português do Brasil por Lucena-Santos, Oliveira e Pinto-Gouveia (2013) (33). Dada a ausência de versão em Português Europeu, os autores deste estudo fizeram alterações linguísticas para adequação às normas do mesmo. É composto por 28 itens que avaliam o grau de atenção no momento de comer e a capacidade de responder aos indicadores internos de fome e saciedade. É composto por cinco subescalas: desinibição (8 itens); consciência (7 itens); estímulos externos (6 itens); resposta emocional (4 itens); e distração (3 itens) (33). As médias das subescalas e do total podem ter valores entre 1 e 4, sendo que quanto maior a pontuação maior o nível de alimentação consciente.
Escala de Auto-Eficácia Alimentar Global: Esta escala, desenvolvida por Poínhos et al.(2013) (34) avalia aspectos gerais da autoeficácia alimentar e é composta por 5 itens cotados de 0 a 4. A pontuação total (entre 0 e 20) é obtida através do somatório das cotações de cada item, e quanto maior for a pontuação obtida maior a autoeficácia alimentar.
Os dados foram analisados com o programa IBM SPSS versão 25.0 para Windows. A estatística descritiva consistiu no cálculo de frequências absolutas (n) e relativas (%) e de médias (M) e desvios-padrão (DP). A normalidade das variáveis cardinais foi avaliada pelos coeficientes de simetria e de achatamento. A comparação de mais de duas amostras independentes foi realizada através da ANOVA One-Way, sendo realizados testes post hoc com correção de Bonferroni sempre que aplicável. Foram ainda feitos modelos de regressão multinomial logística. Rejeitou-se a hipótese nula quando p < 0,05. Devido às diferenças em termos de comportamento alimentar entre sexos, toda a análise foi realizada separadamente por sexos.
RESULTADOS
Os 252 participantes tinham uma média de idades de 37 anos (DP = 12). A maioria (n = 181; 71,8%) era do sexo feminino. Eram maioritariamente normoponderais (n = 164; 64,1%), com cerca de um terço (n = 88; 34,4%) a apresentar excesso de peso (pré-obesidade: n = 62, 24,2%; obesidade: n = 26, 10,2%). A média do IMC da amostra foi de 24,5 kg/m2 (DP = 4,6), sendo significativamente inferior nas mulheres (média = 23,6 kg/m2 e DP = 3,7 vs. 25,7 e DP = 3,9; p < 0,001).
Relativamente à trajetória de peso no último ano, 35,9% (n = 88) da amostra tinha mantido um peso estável, indicando que os restantes participantes tinham tido variação de peso, seja perda ou ganho de peso (n = 51; 20,0% e n = 48; 18,4%, respectivamente) ou ambos (“peso cíclico”; n = 65; 25,7%).
A comparação do IMC entre participantes com diferentes trajetórias de peso revelou diferenças significativas apenas para o sexo feminino (p = 0,016), e os testes post hoc mostraram diferenças entre os grupos com peso estável (média = 22,5 kg/m2; DP = 3,2 kg/m2) e ganho de peso (24,7 kg/m2; DP = 3,2 kg/m2; p = 0,021).
Ao comparar as trajetórias da variação do peso em termos das dimensões do comportamento alimentar, no sexo feminino (Tabela 1) verificaram-se diferenças em ambos os tipos de controlo alimentar (rígido e flexível) e na autoeficácia alimentar. Para a alimentação intuitiva e consciente, mesmo sem diferenças significativas no total, foram observadas diferenças nas subescalas permissão incondicional para comer e confiança em sinais internos de fome e saciedade e na componente consciência, respetivamente. Os testes post hoc mostraram que participantes do sexo feminino com “peso cíclico” apresentavam maior controlo rígido e flexível do que aqueles com peso estável. As participantes em que o peso aumentou relataram menor controlo rígido do que as que referiram uma variação cíclica de peso. Relativamente à alimentação intuitiva, as participantes com peso estável apresentavam maior permissão incondicional para comer do que as que referiram variação cíclica de peso, bem como maior confiança nos sinais do corpo (fome e saciedade) comparativamente ao grupo que aumentou de peso. Na componente “consciência” da alimentação consciente, não se verificaram diferenças entre quaisquer pares de grupos. Finalmente, verificou-se maior autoeficácia alimentar naquelas que referiram perda de peso em comparação com aquelas que aumentaram de peso.
No sexo masculino (Tabela 2), apenas o controlo rígido e a subescala (da alimentação intuitiva) confiança em sinais internos de fome e saciedade apresentaram diferenças entre os grupos de evolução ponderal. Os testes post hoc indicaram diferenças apenas entre os participantes com estabilidade de peso, que tinham maior confiança nos sinais internos quando comparados com aqueles que tiveram variação cíclica de peso ou que tiveram ganho de peso.
Foi usado um modelo de regressão multinomial logística para prever, separadamente para mulheres e homens, os grupos de evolução ponderal (considerando o grupo de “peso estável” como referência) a partir do sexo, idade, IMC e das pontuações nas escalas de comportamento alimentar: controlo rígido, controlo flexível, alimentação intuitiva (total), alimentação consciente (total) e autoeficácia alimentar. No sexo feminino o modelo previu significativamente os grupos de evolução ponderal (p = 0,003; R2 parcial de Nagelkerke = 0,227), mas nenhuma das variáveis independentes foi preditor significativo. Já no sexo masculino a previsão não foi significativa (p = 0,137; R2 parcial de Nagelkerke = 0,351), embora olhando individualmente para as variáveis independentes quer o nível de controlo rígido quer o de alimentação intuitiva seriam preditores significativos dos grupos de evolução ponderal. Verificou-se que os grupos com ganho de peso e “peso cíclico” tinham um nível mais baixo de alimentação intuitiva do que o grupo de referência (“peso estável”).
* ANOVA One-way.
Nota: A presença da mesma letra em expoente indica ausência de diferença entre pares nos testes post hoc
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Apesar de as diferenças entre IMC serem reduzidas entre os quatros grupos de trajetória de peso, encontraram-se diferenças em termos de comportamento alimentar.
Os resultados deste estudo foram de algum modo semelhantes aos de Tylka, Calogero e Daníelsdóttir (2020) (14), que avaliaram, numa amostra composta por homens e mulheres (n = 382), a trajetória de peso referida no ano anterior classificada em quatro grupos: peso estável, perda de peso, ganho de peso e peso cíclico. Apesar das diferenças na categorização da variação do peso, dado classificarem os indivíduos com variação de aproximadamente 2,5 kg como tendo peso estável, os resultados foram semelhantes aos do presente estudo, que valorizou a perceção individual da variação ponderal. Neste enquadramento, é relevante considerar que a falta de consenso em relação aos critérios específicos (quantidade de peso perdido e recuperado; número de ciclos) para definir a variação cíclica do peso pode trazer implicações para os resultados e interpretação dos mesmos (35), pois enquanto alguns estudos não especificam o número de ciclos de variação de peso necessários (36 - 38). Outros utilizam critérios mais rigorosos (35).
Relativamente à alimentação consciente, apenas o grupo com peso estável apresentou níveis superiores, e especificamente em termos da componente “consciência”. Evidências baseadas em atenção plena e alimentação consciente revelaram que ambas favorecem a manutenção de peso (39 - 41). Independentemente dos reduzidos resultados obtidos na dimensão de alimentação consciente, há a considerar a relação íntima entre níveis de alimentação intuitiva e consciente, que envolvem aspectos complementares essenciais, como por exemplo a capacidade de se alimentar a partir da consciência alimentar relacionar-se com a alimentação intuitiva, que realça a capacidade de se alimentar por sinais internos de fome e saciedade (10, 11, 21).
De uma forma geral, outros trabalhos revelam que maior autoeficácia está relacionada com maior êxito na redução de peso (42, 43). Neste estudo, maior autoeficácia alimentar também apresentou uma relação com a perda de peso, o que se justifica pelos próprios aspetos do conceito, que determina a iniciação, manutenção e abandono de estratégias e comportamentos (25, 44). No entanto, apesar de este estudo não ter encontrado uma relação significativa entre a autoeficácia alimentar e a estabilidade de peso, estudos e revisões que investigaram preditores da manutenção do peso perdido indicaram a autoeficácia para a alimentação como eficaz na gestão de peso (24, 25, 29).
Na interpretação destes resultados devem-se considerar as limitações deste estudo, nomeadamente ter sido usada uma amostra de conveniência, a elevada prevalência de participantes normoponderais, o desequílibrio entre o sexo feminino e masculino e o facto de se terem utilizado valores antropométricos auto-reportados. Outras limitações que podem ser referidas são o uso da versão original da Escala de Alimentação Intuitiva, ao invés da versão 2, e o tipo de estudo ser transversal, uma vez que avaliar a variação ponderal longitudinalmente e em conjunto com avaliações sucessivas do comportamento alimentar permitiria esclarecer possíveis relações de causalidade.
Apesar destas limitações inerentes aos aspetos metodológicos, este trabalho apresenta-se como um contributo para a prática e tem implicações clínicas em contexto de gestão de peso, validando a relevância do comportamento alimentar adaptativo baseado na alimentação intuitiva e consciente, tal como a influência da autoeficácia alimentar, nas relações que envolvem o estado ponderal, em contraste com o que se verifica para o controlo rígido da alimentação.
CONCLUSÕES
Esta investigação valida a relevância de um comportamento alimentar adaptativo em detrimento de um baseado no controlo rígido da alimentação. Os aspetos comportamentais alimentares envolvidos na variação ponderal sustentam o uso de estratégias comportamentais baseadas nos princípios da alimentação intuitiva, da alimentação consciente e da autoeficácia relacionada com a alimentação em ações e intervenções que visem a gestão do peso. Pesquisas longitudinais futuras poderão esclarecer relações de causalidade entre estas dimensões e a variação cíclica ponderal a longo prazo e, possivelmente, esclarecer se estes comportamentos seriam preventivos para o excesso de peso.
CONTRIBUIÇÃO DE CADA AUTOR PARA O ARTIGO
FRFR, LBB e RP estiveram envolvidos no planeamento da investigação. FRFR foi responsável pela recolha de dados e a análise estatística foi realizada por FRFR e RP. A interpretação e discussão dos resultados foi feita por todos os autores. FRFR redigiu a primeira versão do manuscrito. Todos os autores reviram e aprovaram a versão final do artigo.