Panorama atual da governança climática global
A crise climática continua a agravar-se. 2011-2020 foi a década mais quente desde 1880. À medida que as temperaturas globais aumentam, eventos climáticos extremos mais frequentes e intensos, como fogos, secas, ondas de calor e vagas de frio, inundações e tempestades severas, afetam sociedades humanas, inúmeras espécies de animais e plantas, e ecossistemas de importância global1. Apesar da retração mundial das atividades económicas e sociais no contexto da pandemia de covid-19, e da ocorrência do fenómeno La Niña, associado a um efeito temporário de arrefecimento, 2020 é, a par de 2016, o ano mais quente desde que há registo2. A covid-19 foi responsável por uma diminuição de aproximadamente 6,4% das emissões globais de dióxido de carbono (CO2), uma percentagem significativa, mas menor do que muitos cientistas climáticos esperavam - após uma queda acentuada no início da pandemia, as emissões globais de CO2 aumentaram na segunda metade de 2020, como consequência da recuperação da atividade económica mundial3. A redução de emissões registada não é suficiente para que a concentração atmosférica de CO2 diminua, pelo que os níveis continuarão a subir, embora a um ritmo ligeiramente menor4.
A temperatura média global atingiu já 1,2 (± 0,1) °C acima dos níveis pré-industriais5. Limitar o aquecimento global a 1,5 °C - a meta aspiracional do Acordo de Paris (AP) - é absolutamente essencial para proteger a maioria das espécies da extinção, os Estados insulares de baixa altitude do aumento do nível do mar e os países mais pobres dos extremos climáticos, bem como para garantir uma margem de segurança adequada relativamente a pontos de inflexão do sistema terrestre que, se ultrapassados, poderão desencadear processos na biosfera passíveis de conduzir o planeta a um efeito estufa catastrófico6. Recentemente, vários grandes emissores anunciaram metas de neutralidade carbónica: a China para 2060 e os Estados Unidos, a União Europeia (UE), o Japão, a Coreia do Sul, o Canadá, a África do Sul e o Reino Unido para 2050. Cento e vinte e sete países responsáveis por mais de 60% das emissões globais estão a considerar ou já adotaram metas de neutralidade carbónica. Os objetivos (otimistas) de mitigação anunciados traduzir-se-iam, ainda assim, num aumento da temperatura global de aproximadamente 2,1 °C em 2100. Já os compromissos e políticas atuais conduziriam o planeta a um aumento de 2,6 °C e 2,9 °C, respetivamente, no final do século, colocando a humanidade à beira de uma catástrofe climática7. Urge, portanto, definir metas mais ambiciosas para 2030 e, mais importante ainda, implementar políticas que permitam, efetivamente, atingir essas mesmas metas.
Em março de 2021, a UE, o terceiro maior emissor mundial, responsável por cerca de 8% das emissões globais, e 44 países haviam já submetido à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas (CQNUAC) uma nova contribuição nacionalmente determinada. No entanto, e contrariando o texto do AP, dez das contribuições apresentadas não representam, em termos de ambição, uma progressão relativamente às anteriores. Muitos outros países, incluindo a China, os Estados Unidos e a Índia - primeiro, segundo e quarto maiores emissores mundiais, responsáveis por aproximadamente 26%, 13% e 7% das emissões globais, respetivamente - não atualizaram ainda as suas contribuições. Espera-se, contudo, que, em abril de 2021, os Estados Unidos apresentem uma nova e ambiciosa meta de mitigação8, e que o regresso do país ao AP, oficializado em fevereiro de 2021, um mês após a assinatura de uma ordem executiva por parte do novo Presidente, Joe Biden, poucas horas após a sua tomada de posse, facilite as negociações durante a 26.ª Conferência das Partes (COP) da CQNUAC, a qual terá lugar em novembro deste ano, em Glasgow, e permita reconstruir o consenso global em torno da implementação do ap. Em 2019, um ano marcado por severos fogos e tempestades, protestos sociais e greves climáticas um pouco por todo o mundo, a última COP terminou, ainda assim, em fracasso. As partes foram incapazes de chegar a consenso em diversas áreas - por exemplo, no que diz respeito às regras para estabelecer um sistema global de comércio de carbono e ao financiamento adicional para ações de mitigação e adaptação, e mecanismos de perdas e danos para os países mais vulneráveis - tendo adiado as decisões para a COP269.
Biden colocou as alterações climáticas no topo das prioridades políticas da sua Administração, a par do controlo da pandemia, da recuperação económica e da equidade racial. O ambicioso plano climático do Presidente - desenhado em colaboração com a fação mais à esquerda do Partido Democrata, nomeadamente Bernie Sanders e os partidários de um New Deal ecológico - une a redução acentuada das emissões a medidas de justiça social e ambiental, e de apoio às comunidades e trabalhadores dependentes das indústrias mais poluentes, colocando os Estados Unidos na liderança de um esforço diplomático sem precedentes para galvanizar uma ambiciosa resposta global à ameaça climática10. Existe, por isso, uma elevada expetativa em torno da nova Administração, a qual terá, todavia, de enfrentar uma série de desafios para implementar a sua agenda verde.
Que papel para a administração Biden na luta contra as alterações climáticas?
Os Estados Unidos são a primeira economia mundial, o segundo maior emissor em volume total e o maior emissor per capita entre os principais emissores mundiais, com aproximadamente 16,2 toneladas de carbono equivalentes emitidas, um valor mais de três vezes superior à média global11. Detêm uma elevada capacidade de inovação tecnológica e mantêm uma importante influência no mundo. Consequentemente, garantir a segurança climática planetária exige um compromisso de mitigação ambicioso por parte do país.
Para avançar a sua agenda, Biden terá de reverter o legado de destruição ambiental, negacionismo climático, politização e agressão à ciência, e de ataque à CQNUAC por parte de Donald Trump12, o que custará tempo, recursos e capital político significativos à nova Administração13. Contudo, o novo Presidente parece determinado a fazê-lo. Biden pretende reverter mais de 100 políticas ambientais da era Trump e transformar os Estados Unidos num líder climático mundial. Uma semana após tomar posse, e agindo em conformidade com o discurso de campanha, emitiu uma ordem executiva para combater as alterações climáticas aos níveis doméstico e internacional. Colocou a crise climática no centro da política externa dos Estados Unidos e da segurança nacional do país, e assumiu os compromissos de canalizar toda a capacidade das diferentes agências governamentais para implementar medidas de mitigação, assim como promover uma ação coordenada entre as mesmas, e agir em conformidade com a ciência. Através dessa mesma ordem, Biden estabeleceu um gabinete na Casa Branca para a política climática doméstica, criou os cargos de conselheiro nacional e enviado presidencial especial para o clima (este último atribuído a John Kerry, um dos principais arquitetos do AP), suspendeu novas concessões para a exploração de petróleo e gás, e definiu os objetivos a cumprir no âmbito de um plano que a sua Administração deverá desenhar para reforçar as regras sobre a qualidade do ar e as emissões de carbono, incluindo uma matriz elétrica limpa em 2035, e suprimir os regulamentos que favorecem as indústrias em detrimento do ambiente. Anunciou também a organização de uma conferência de líderes climáticos para abril de 2021, durante a qual o país procurará elevar o nível de ambição climática global, bem como a sua intenção de exercer pressão para que um amplo conjunto de fóruns internacionais, entre os quais o G7 e o G20, integrem considerações climáticas nas suas discussões e resoluções14, para referir apenas alguns exemplos. Biden expressou igualmente a sua vontade de impor taxas ou quotas aos países que não cumpram as suas obrigações climáticas, condicionar futuros acordos comerciais ao cumprimento das metas estabelecidas no AP e usar a influência económica e diplomática dos Estados Unidos para travar projetos associados a elevadas emissões de carbono e políticas antiambientais nos principais emissores15. Esta é uma abordagem holística e transversal revolucionária no país.
Dever-se-á notar, no entanto, que o processo de reversão de algumas das políticas de Trump poderá levar vários anos16; o próprio processo formal de elaboração de regras por via das quais os presidentes exercem controlo sobre os órgãos do poder executivo é, por si mesmo, moroso17. Para além disso, as maiorias democratas no Congresso são reduzidas, o que exigirá cooperação bipartidária e limitará a margem de manobra de Biden, que terá de enfrentar a oposição republicana. Embora o Presidente detenha uma longa experiência de trabalho no Senado com ambos os partidos, e isso possa ser um ponto a favor da sua Administração, propostas legislativas ambiciosas para combater as alterações climáticas serão, certamente, alvo de forte resistência18, sobretudo se, em 2022, os republicanos reassumirem o controlo do Congresso (historicamente, dois anos após a sua eleição, o presidente em funções vê o seu partido perder lugares no Congresso)19. Outro desafio prende-se com as crises orçamentais desencadeadas pela pandemia, que ameaçam afetar a capacidade dos governos estatais e locais, muitos dos quais assumiram, durante a Presidência de Trump, a responsabilidade de avançar no sentido de cumprir as metas definidas por Obama no âmbito do AP20. Por último, o nível de apoio da população a uma recuperação económica verde no contexto da pandemia é pouco claro: mais de metade (57%) dos inquiridos num questionário recente conduzido pelo IPSOS concordou que as alterações climáticas deveriam ser priorizadas no processo; todavia, em resposta a uma outra pergunta do mesmo questionário, quase metade (47%) dos inquiridos referiu que o Governo deveria priorizar a retoma da economia, mesmo que isso implicasse danos ambientais21.
Biden enfrenta assim uma conjuntura complexa, marcada não apenas pelo legado antiambiental de Trump, mas também por uma forte polarização social e política, com visões partidárias sobre a questão ambiental, uma longa história de impasse federal no que diz respeito a ações de mitigação das alterações climáticas e a difícil situação socioeconómica provocada pela covid-1922. Assim, as hipóteses de que os planos climáticos mais ambiciosos do Presidente se concretizem parecem, à partida, reduzidas. Consequentemente, muitos esperam que a nova Administração impulsione a descarbonização do país através de medidas climáticas menos abrangentes. O progresso alcançado poderá, no entanto, ser revertido, caso um presidente republicano seja eleito em 2024 ou 2028. Este é um ponto relevante a considerar, uma vez que a tarefa de restituir a credibilidade dos Estados Unidos na governança climática global e impulsionar ações mais ambiciosas por parte dos maiores emissores globais exigirá de Biden a capacidade de, por exemplo, liderar e convencer a comunidade internacional de que os regulamentos e legislação ambientais colocados em prática durante a sua Presidência não serão facilmente revertidos no futuro23.
Apesar de todos os desafios, parece existir atualmente uma importante janela de oportunidade para que Biden possa, a nível doméstico, ir mais além do que se prevê. A onda internacional rumo à neutralidade carbónica em 2050-2060 - com cerca de dois terços da economia mundial, os quais representam aproximadamente metade das emissões de carbono globais, orientados (no plano discursivo, pelo menos) a esse objetivo - poderá ajudar a quebrar alguma resistência interna no país. Se Biden for capaz de utilizar a presente conjuntura internacional a seu favor, a tarefa de construir os alicerces de uma economia de baixo carbono no país poderá tornar-se um pouco mais fácil. Simultaneamente, o Presidente terá, através da implementação de medidas concretas, e em linha com o plano climático apresentado durante a sua campanha, de demonstrar ao público a compatibilidade entre proteção ambiental e regeneração económica, criação de emprego e justiça social24. Como observado por Battistoni,
«para que a política climática seja mais duradoura do que uma presidência, precisamos de políticas que ajudem a construir uma base para a ação climática, conectada com melhorias materiais na vida das pessoas. Este ponto é onde o uso das ações do executivo para atingir objetivos climáticos - o tipo de programas que apenas é notado pelos falcões do clima - se mostra insuficiente. Não se faz nada para fomentar o apoio entre aqueles que são céticos ou totalmente hostis à política verde»25.
É importante notar que a proliferação de líderes políticos manifestamente céticos em relação à ciência do clima, entre os quais se destaca Donald Trump, transformou o negacionismo climático - anteriormente uma tendência política minoritária - numa força global26. Para além disso, a recusa, por parte de vários segmentos da população, em reconhecer os riscos de agir irresponsavelmente no contexto da pandemia, as acusações de que regras básicas e pouco dispendiosas, como o uso de máscara, constituem um atentado à liberdade individual e à democracia, e as ameaças violentas contra funcionários públicos - e repare-se que, neste caso, os efeitos e custos da inação são muito mais rapidamente visíveis e evidentes do que acontece no contexto da inação climática, e que a ação necessária para mitigar a crise sanitária é também bastante mais simples - são uma prova contundente da imperatividade de associar a resposta à crise climática à criação de novos empregos e à melhoria das condições de vida das populações, numa abordagem que ultrapasse a mera imposição de limites e custos27. Por outras palavras, é absolutamente necessário iniciar o processo de construção de um verdadeiro Estado socioecológico. Biden poderá lançar as bases de um país mais justo e sustentável através de uma estratégia que, de forma inteligente, combine as esferas internacional e doméstica, utilizando a primeira como elemento de pressão para avançar a nível nacional, e beneficiando dos progressos internos para consolidar a sua liderança no plano externo e convencer os restantes grandes emissores a elevar o seu nível de ambição, o que, por sua vez, reforçaria a legitimidade da política doméstica da sua Administração e permitiria novos avanços.
No que diz respeito à política externa climática, e para ser bem-sucedido, será importante que Biden, entre outras ações: a) reconstrua a aliança transatlântica que Trump destruiu, trabalhando em estreita colaboração com a UE e o Reino Unido28 (não apenas no âmbito da CQNUAC, mas também, por exemplo, na criação de medidas comerciais de apoio a exportações de baixo carbono); b) reanime a aliança climática tradicional dos Estados Unidos com países como o Canadá, o México, o Japão, a Austrália e a Nova Zelândia, e se aproxime de outros atores importantes, como a Índia, o Brasil,29 a África do Sul e a Indonésia30; c) restabeleça e, posteriormente, duplique o compromisso assumido pelos Estados Unidos durante a Presidência de Obama para com o Fundo Verde do Clima, uma ação fundamental para auxiliar os países mais pobres a implementar soluções de mitigação31, e contribua para outros fundos climáticos, tais como o Fundo de Adaptação e o Fundo para os Países Menos Desenvolvidos; d) reponha o financiamento para o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) e a CQNUAC32; e) promova parcerias internacionais que permitam a transferência, para os países mais vulneráveis, de tecnologias verdes, de modo a apoiar a diversificação das suas economias, as quais continuam dependentes da exportação de commodities; f) utilize a posição de poder dos Estados Unidos em instituições financeiras internacionais como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial para solucionar a crise da dívida dos países mais pobres33; g) elimine o financiamento externo para combustíveis fósseis e promova uma coligação internacional para administrar coletivamente o declínio da indústria fóssil a nível mundial; h) pressione os bancos multilaterais de desenvolvimento, como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, a alinhar as suas atividades com os objetivos do AP34; i) apoie ou proponha, no âmbito da CQNUAC e outros fóruns internacionais, o estabelecimento de critérios que permitam avaliar até que ponto os planos de recuperação económica dos vários países são compatíveis com o AP35; e j), extremamente importante no curto prazo, coopere com a China, pois nenhuma resposta à crise climática poderá ser bem-sucedida sem a participação do maior emissor mundial.
Estados Unidos e China terão de trabalhar para mitigar as sérias diferenças que os separam e restabelecer a cooperação climática iniciada com Obama36, cooperação essa que foi absolutamente decisiva para a concretização do AP37. Nos últimos anos, a relação entre os dois países deteriorou-se significativamente - ambos viveram uma «guerra fria» nas áreas do comércio e da tecnologia - e não apenas como resultado das políticas de Trump. Nos Estados Unidos, tanto republicanos como democratas demonstraram preocupação relativamente a uma série de comportamentos por parte da China, entre os quais se destacam, por exemplo, a destruição da autonomia de Hong Kong, as agressões no mar do Sul da China, a repressão autoritária do Presidente chinês e as práticas comerciais do país. Não obstante, a questão climática poderá ser um importante catalisador de uma nova era de cooperação sino-americana. Para tal, Biden deverá mostrar-se determinado em encontrar «terreno comum» entre os dois países, identificando o clima como área-chave para a cooperação bilateral, expondo a sua visão para o futuro e realçando os benefícios económicos e políticos a ela associados, bem como os ganhos mútuos de uma parceria climática entre as duas principais economias e emissores mundiais38.
Restaurar alguns dos mecanismos de cooperação bilateral da era Obama, como a US-China Ten-Year Framework for Cooperation on Energy and the Environment, o US-China Climate Change Working Group, criado no âmbito do Strategic and Economic Dialogue, ou o US-China Clean Energy Research Center, poderia ser o primeiro passo da Administração Biden para restabelecer a confiança entre as duas potências. Áreas de interesse comum para avançar a cooperação bilateral incluem, por exemplo, a transformação do setor energético/elétrico, veículos e edifícios de baixas emissões, e soluções baseadas na natureza. Uma vez que ambos os países planeiam atingir a neutralidade carbónica em meados do século, poderiam também promover e coliderar uma iniciativa global que permitisse a troca de informação e a coordenação de ações, no sentido de facilitar a consecução desse objetivo aos níveis doméstico e internacional. Paralelamente, dado que a ação subnacional será fundamental para caminhar rumo à neutralidade carbónica, incentivar a cooperação entre governos subnacionais de ambos os países seria, igualmente, importante. Embora pareça evidente que a tensão e a competição irão continuar a marcar (em parte, pelo menos) as relações sino-americanas, a China parece ter interesse na troca de informação e colaboração com os Estados Unidos na investigação orientada à pandemia, ao clima e à saúde. A crise provocada pela covid-19 tornou claramente visível a importância da cooperação entre os dois países para responder a problemas globais urgentes, o que poderá facilitar o diálogo bilateral39.
Em síntese, a Administração Biden irá enfrentar inúmeros desafios para implementar a sua agenda climática. No entanto, parece existir igualmente uma importante janela de oportunidade, a qual, se aproveitada de forma inteligente pelo novo Presidente, poderá colocar os Estados Unidos e o mundo mais próximos do rumo a seguir para garantir a segurança climática planetária. Até onde Biden conseguirá chegar? No início de 2021, esta é ainda uma questão em aberto.