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Análise Social
versão impressa ISSN 0003-2573
Anál. Social no.221 Lisboa dez. 2016
ARTIGO
Participação cívica e política de jovens imigrantes e portugueses
Civic and political participation of young immigrants and Portuguese
Norberto Ribeiro*, Tiago Neves* e Isabel Menezes*
*CIIE Centro de Investigação e Intervenção Educativas, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, Universidade do Porto»Rua Alfredo Allen 4200-135 Porto, Portugal. E-mails: norberto@fpce.up.pt, tiago@fpce.up.pt e imenezes@fpce.up
RESUMO
Este artigo procura contribuir para a discussão dos fatores que podem promover ou obstaculizar a participação cívica e política de jovens de origem nacional e imigrante. Analisaram-se inquéritos por questionário (N=1010) administrados a jovens de origem angolana, brasileira e portuguesa (15-29 anos). As análises apresentadas exploraram as diferenças do grupo de origem, do sexo e do número de livros em casa (i.e., capital cultural) relativamente aos seus efeitos sobre as motivações e barreiras para participar, e sobre as conceções de cidadania. Os resultados indicaram que índices elevados de capital cultural podem suplantar desvantagens étnicas.
PALAVRAS-CHAVE: participação cívica e política; jovens; imigrantes; género; capital cultural.
ABSTRACT
This article contributes to the discussion of the factors that can promote or hinder civic and political participation of young people of Portuguese and immigrant origin. Survey data (N=1010) of youngsters of Angolan, Brazilian, and Portuguese origin (15-29 years old) were analyzed, exploring the differences in origin group, gender and number of books at home (i.e., cultural capital) regarding their effects on the motivations and barriers to participate, and on the conceptions of citizenship. The results indicate that high levels of cultural capital can overcome ethnic disadvantages.
KEYWORDS: civic and political participation; young people; immigrants; gender; cultural capital.
INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas, a necessidade de se procurar apropriar e compreender os fatores que pudessem estar relacionados com a participação cívica e política, fenómeno que foi ganhando crescente relevância académica e social, originou um fluxo abundante de estudos. Contribuindo precisamente para esta leitura, Norris (2002, p. 20) apresenta um modelo que organiza as teorias do ativismo político em três grandes níveis: o nível macro, que integra a modernização societal e a estrutura do Estado (e.g., leis eleitorais, sistema partidário, estruturas constitucionais); o nível meso, que diz respeito às agências de mobilização (e.g., sindicatos, igrejas, partidos, movimentos, média); e o nível micro, que é constituído por dois campos que concorrem para o ativismo político, sendo eles os recursos (e.g., tempo e competências) e a motivação (e.g., interesse político e confiança). É nesse contexto de afirmação e de reconhecimento do valor da participação que se compreende que uma revisão das perspetivas teóricas e de investigação desenvolvidas (mormente no âmbito da ciência política, bem como no âmbito das teorias psicológicas e sociológicas sobre a participação) identifique, à imagem de Norris (2002), três grandes grupos de fatores que influenciam de forma relevante a participação cívica e política. Os fatores macrossociais, reconhecendo-se que toda a atividade humana não se desenvolve num vácuo social, mas está antes rigorosamente situada num contexto sociohistórico e cultural de significados e relações (Rosnow e Georgoudi, 1986, p. 4), e que, em conformidade com essa premissa, a participação cívica e política também não poderá ocorrer no vazio social (Menezes, et al., 2012). Os fatores proximais, que têm sido profusamente abordados pela investigação e que representam importantes contextos sociais de influência como a família (Azevedo e Menezes, 2007; Gniewosz, Noack e Buhl, 2009; Schulz et al., 2010; Verba, Scholzman e Brady, 1995), a escola (Barrett, 2007; Delli Carpini e Keeter, 1996; Emler e Frazer, 1999), os grupos de pares (Torney-Purta, 2002; Torney-Purta et al. 2001; Yates e Youniss, 1998; Zaff, Malanchuk e Eccles, 2008), os media (Bennet, Wells e Rank, 2009; Malafaia et al., 2013; Torney-Purta et al., 2001; Zukin et al, 2006), as organizações não governamentais (Albanesi, Cicognani e Zani, 2007; Cicognani e Zani, 2009; Crystal e DeBell, 2002; Zaff, Malanchuk e Eccles, 2008), e as instituições políticas (Green e Gerber, 2004; Zukin et al. 2006). E os fatores psicológicos que decorrem de variáveis cognitivas, atitudinais, identitárias, motivacionais e comportamentais, e que têm sido trabalhados pela investigação quer ao nível da ação individual (Luskin, 1990; Nie, Junn e Stehlik-Barry, 1996; Zukin et al., 2006), quer ao nível da ação coletiva (Klandermans, 1986, 1997, 2002; Simon e Klandermans, 2001; van Zomeren, Postmes e Spears, 2008).
Para além destes três grandes grupos de fatores, importa também mencionar a importante influência das tradicionais variáveis de natureza sociodemográfica, como o sexo, a idade, o estatuto legal e o capital cultural, sobre a participação cívica e política. No que se refere, em particular, ao capital cultural, assumindo que este é impulsionado pela educação, a literatura tem reconhecido de forma consistente que este assume um papel central na participação cívica e política, especialmente pelo modo como pode promover o desenvolvimento sociopolítico no sentido de uma participação mais crítica e cidadã (Emler e Frazer, 1999; Verba, Schlozman e Brady, 1995). Recentemente, duas investigações que desenvolveram análises multinível vieram mais uma vez reforçar essa ideia. Hadjar e Beck (2010), num estudo que envolveu 24 países, concluem especificamente que nas pessoas com níveis de educação mais baixos a probabilidade de não votar é maior. Na mesma linha, num estudo que considerou 39 países e que se focou, em particular, nas formas de participação não convencional (participar em boicotes e manifestações, assinar petições), Stockemer (2014) indica que a probabilidade de se assinar petições aumenta ou diminui exponencialmente conforme os níveis educacionais: 68% para as pessoas que possuem graus superiores, 6% para as que não têm educação formal.
Não obstante o interesse multidisciplinar que tem sido dedicado ao estudo da participação cívica e política, a literatura tem conferido uma atenção particular aos/às jovens e aos/às imigrantes, argumentando especificamente que estes/as possuem características que, do ponto de vista dos direitos e das oportunidades para o exercício da sua cidadania, é pertinente estudar. Por um lado, porque os estatutos de jovem e imigrante inibem o acesso a direitos políticos fundamentais, como votar e ocupar cargos de governo. Por outro, porque a sua participação cívica e política tem revelado sinais de mudança importantes que têm sido alvo de diferentes leituras: ora a identificação de apatia e desinteresse político, ora a identificação da opção política por novas formas de participação menos convencionais. Reconhecendo-se a dificuldade que constituiria analisar simultaneamente os múltiplos fatores de influência do fenómeno da participação cívica e política, pretende-se que este estudo, desenvolvido a partir de dados recolhidos no âmbito do projeto europeu PIDOP1, se foque especificamente nas perceções de jovens de origem nacional e imigrante relativamente às motivações e barreiras para participar, e às suas conceções de cidadania. No que se refere, em particular, à questão das barreiras para participar e às conceções de cidadania, reconhecemos que estas não têm sido objeto de grande investimento analítico, especialmente se tomarmos em conta a condição de imigrante que este estudo contempla, o que reforça a nossa opção em analisá-las.
Com efeito, pretende-se que a análise das dimensões referidas possa assim contribuir para o aumento do conhecimento sobre as condições de participação cívica e política que os/as jovens de origem nacional e imigrante percecionam ter atualmente em Portugal; assim como também se pretende que a análise contribua para aprofundar o modo como estes e estas jovens concebem o exercício da cidadania. Sendo a participação cívica e política um fenómeno multideterminado (fatores macrossociais, fatores proximais, fatores individuais), como a vasta literatura científica publicada neste domínio claramente sugere, reconhecemos que o estudo das duas dimensões referidas (motivações e barreiras para participar, e conceções de cidadania) contribuirá exclusivamente para um conhecimento parcial do fenómeno que se quer analisar. No entanto, também reconhecemos que as dimensões que iremos aqui considerar condicionam efetivamente, em maior ou menor grau, dependendo das condições contextuais e individuais, a participação cívica e política de jovens. Por conseguinte, consideramos que, apesar de parcial, o estudo destas duas dimensões tem objetivamente um certo valor explicativo, constituindo-se, assim, como mais um recurso que importa integrar para uma compreensão mais abrangente do fenómeno da participação cívica e política.
Para uma melhor contextualização do fenómeno que se coloca aqui como pano de fundo, no que respeita particularmente a determinados grupos que têm sido identificados como estando potencialmente em risco de exclusão, apresentamos de seguida uma breve revisão da literatura sobre a participação cívica e política de jovens, imigrantes e mulheres. Procurar-se-á integrar nessa revisão uma breve referência ao estado da arte em Portugal nesses domínios.
JOVENS E PARTICIPAÇÃO CÍVICA E POLÍTICA
Em termos gerais, a literatura sobre a participação cívica e política dos/as jovens divide-se em duas grandes linhas: uma que identifica apatia, desinteresse político e baixos índices de participação nos/as jovens, outra que prefere identificar a existência da opção política dos/as jovens por novas formas de participação. A primeira linha ressalta que os índices elevados de apatia e desinteresse político (Benedicto e Morán, 2002; Perliger, Canetti-Nisim e Pedahzur, 2006) ameaçam a coesão social (Galston, 2001; Putnam, 2000, 2007) e comprometem, nomeadamente, a legitimidade democrática europeia (Commission of the European Communities, 2001, 2005, 2006). Num registo diferente de análise, a segunda linha da literatura prefere, por sua vez, enfatizar os níveis baixos de participação evidenciados pelos/as jovens nas formas mais tradicionais de participação cívica e política (Azevedo, 2009; Ferreira, 2006; Marsh, OToole e Jones, 2007; Putnam, 2000; Veiga, 2008; Zukin et al., 2006) servindo esta leitura de base para contra-argumentar que não existe um declínio acentuado da participação (Harris, Wyn e Younes, 2010; Juris e Pleyers, 2009; Norris, 2002), mas sim que esta tem vindo a assumir formas mais fluidas de expressão, menos institucionalizadas e hierárquicas, e mais horizontais (e.g., Bauman, 2000; Beck, 2000; Norris, 2002). Aliás, é devido a esta leitura que se considera que a denúncia da crise participatória difundida nas últimas décadas tem sido exagerada (Forbrig, 2005; Haste e Hogan, 2006; Stolle, Hooghe e Micheletti, 2005), porquanto baseia a sua análise em medidas convencionais de participação, como o voto e a filiação partidária (Beaton e Deveau, 2005; Harris, Wyn e Younes, 2010; Van Deth e Elff, 2004).
Os estudos nacionais indicam-nos que Portugal também se enquadra nessa leitura. O sistema democrático português, implementado após a Revolução de Abril em 1974, é ainda recente e sobre ele tem-se enfatizado a existência de uma cultura política frágil (Cruz, 1985), bem como o afastamento das gerações mais jovens relativamente aos mecanismos políticos tradicionais (Augusto, 2008), que terá contribuído para a desconfiança da sociedade em relação à denominada geração perdida (Pais, 1990). A investigação realizada tem evidenciado, de facto, que os/as jovens apresentam níveis baixos de satisfação democrática e de participação política (Augusto, 2008; Magalhães e Moral, 2008). No entanto, salientam também que os baixos níveis de participação entre os/as jovens são, ainda assim, mais elevados do que os da restante população (Magalhães e Moral, 2008). Com a exceção do voto, destaca-se a existência de um ceticismo generalizado desta camada populacional relativamente à eficácia das formas convencionais de participação política, e de um maior envolvimento e participação em organizações de carácter voluntário, civil e escolar (Dias e Menezes, 2013; Magalhães e Moral, 2008; Menezes, 2003).
IMIGRANTES E PARTICIPAÇÃO CÍVICA E POLÍTICA
Relativamente aos/às imigrantes, à semelhança das perspetivas sobre a participação dos/as jovens, a investigação tem enfatizado também o desinteresse e a apatia relativamente à política (Martiniello, 2005), bem como os níveis baixos de participação cívica e política quando comparados com os/as não-imigrantes (Couton e Gaudet, 2008; Putnam, 2000; Vogel e Triandafyllidou, 2005). No entanto, essas perspetivas também têm sido contestadas por argumentos que sustentam a inexistência de um padrão único de participação, sugerindo a necessidade de se considerar a diversidade na participação cívica e política de imigrantes e minorias étnicas (Dávila e Mora, 2007; Fennema e Tillie, 1999; Fernandes-Jesus, 2013; Marcelo, Lopez e Kirby, 2007; Simon, 2011). Apesar de se reconhecer que a participação cívica e política de imigrantes é importante para se promover a sua inclusão social, continuam ainda a existir lacunas variadas que obstaculizam a sua efetiva participação, o que tem levado a investigação a associar de forma consistente o estatuto de imigrante a uma situação de desvantagem (Eggert e Giugni, 2010; Kelly, 2009; Munro, 2008; Vogel e Triandafyllidou, 2005). As razões que levam esses estudos a identificar a desvantagem do estatuto de imigrante prendem-se com uma complexa interação de fatores pessoais, sociais, políticos e culturais, como por exemplo: o conhecimento e interesse políticos, a ideologia, os valores, as competências linguísticas, o sentido de pertença, o estatuto em termos de residência ou nacionalidade, a história colonial e a cultura democrática do país de origem e de acolhimento (Ahmad e Pinnock, 2007; Lages e Policarpo, 2003; Lageset al., 2006; Lopez e Marcelo, 2008; Machado, 2006; Martiniello, 2005; Penninx, Martiniello e Vertovec, 2004; Sánchez-Jankowski, 2002).
Sendo um país historicamente marcado pela emigração, Portugal foi alvo, após a queda do regime ditatorial em 1974, de um aumento significativo de imigrantes provenientes sobretudo das ex-colónias africanas e, mais recentemente, do Brasil e do Leste da Europa. Apesar de não haver muitos estudos sobre a participação cívica e política de imigrantes, a investigação existente sugere que Portugal parece ter criado as condições necessárias para a participação (Ramalho e Trovão, 2010). Embora também identifique a existência de uma crescente desconfiança relativamente ao Estado (Grassi, 2009), e chame especificamente a atenção para a desvantagem do acesso limitado que os/as imigrantes têm relativamente aos direitos políticos (Carvalhais, 2004, 2006; Zobel e Barbosa, 2009), assim como para o facto de os estudos se centrarem meramente em aspetos demográficos, havendo, portanto, falta de trabalhos que comparem a participação cívica e política de nacionais e não-nacionais (Teixeira e Albuquerque, 2005).
MULHERES E PARTICIPAÇÃO CÍVICA E POLÍTICA
No que concerne às mulheres, a literatura tem destacado de forma consistente que estas ainda se encontram em desvantagem em relação aos homens relativamente a vários domínios da participação cívica e política (Atkeson e Rapoport, 2003; Huckfeldt e Sprague, 1995; Paxton, Kunovich e Hughes, 2007; Rosenstone e Hansen, 1993; Verba, Schlozman e Brady, 1995), particularmente nos que são de ordem formal e pública (Galligan, 2015; Marien, Hooghe e Quintelier, 2010). Essa desvantagem também tem sido identificada no contexto português, havendo já um conjunto significativo de estudos nacionais que, apesar de reconhecerem ter havido nas últimas décadas uma evolução positiva com destaque para a aprovação da Lei da Paridade em 2006 (Baum e Espírito-Santo, 2012; Santos e Amâncio, 2012a; Santos e Amâncio, 2012b; Santos e Amâncio, 2014) , continuam a denunciar a existência de uma relação desigual entre mulheres e homens (Espírito-Santo e Baum, 2004; Espírito-Santo, 2015; Ribeiro et al., 2015; Santos e Amâncio, 2012b). Embora se tenha sublinhado que as diferenças de género só seriam significativas ao nível da participação não convencional, afirmando-se que relativamente à participação eleitoral e extra-eleitoral não se verificariam quaisquer diferenças entre homens e mulheres (Espírito-Santo e Baum, 2004), também se tem mais recentemente enfatizado que as mulheres continuam a estar sujeitas a uma ideologia de género (Santos e Amâncio, 2012a) de discriminação e preconceito que enfraquece e dilui os avanços concretizados sobretudo ao nível das oportunidades institucionais e políticas de participação. A este respeito, particularmente no que se refere ao campo da política convencional, Santos e Amâncio (2012b) verificam a existência de uma genderização da profissão de político/a em Portugal que se prende com a organização político-partidária e com a persistência de uma visão social que considera que a esfera privada é um mundo feminino e que a política é um mundo masculino, tanto em termos das competências que exige, como da sua organização interna (p. 55). As mesmas autoras, num outro texto, falam ainda na genderização do mérito que decorre da dúvida ou desconfiança relativamente ao mérito das mulheres no contexto político (Santos e Amâncio, 2012a, p. 101). Esta última leitura é reforçada por um estudo recente de Espírito-Santo (2015) que demonstra que a população portuguesa está disposta a ver uma maior presença das mulheres no poder político, mas só até a um certo ponto: embora a maioria das pessoas apoie um aumento de mulheres deputadas, somente uma minoria é que deseja um aumento substancial (p. 1).
Mas não é exclusivamente no campo da política que se identifica que as mulheres se encontram numa situação de desvantagem em relação aos homens. Também no campo das profissões se tem feito este tipo de análise, ao apurar-se que as mulheres, em contextos de sobreminoria, estão sujeitas a consequências mais negativas e reagem às mesmas de uma forma menos proativa do que os homens (Santos e Amâncio, 2014, p. 702).
No que diz respeito, em particular, ao papel do género na imigração, salienta-se fundamentalmente a pouca atenção que a investigação lhe tem dedicado (Miranda, 2009), na linha, aliás, do que tem sido apontado a nível internacional relativamente a uma exploração deficitária da dimensão do género na participação cívica e política de imigrantes (Martiniello, 2005).
OBJETIVO DO ESTUDO E HIPÓTESES DE TRABALHO
O presente estudo pretende contribuir para a discussão e produção de conhecimento sobre a problemática da participação cívica e política. Nesse sentido, irão ser apresentados dados do projeto europeu PIDOP sobre a participação de grupos considerados em risco de exclusão (jovens, mulheres e imigrantes/minorias étnicas) e que em Portugal envolveu jovens de origem nacional e imigrantes. Considerando a recente história de descolonização (Grillo e Mazzucatto, 2008) e a representatividade das suas comunidades em Portugal, optou-se por estudar jovens de origem angolana e brasileira segundo dados publicados pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF, 2013), o Brasil é a comunidade estrangeira mais representativa, com um total de 105 622 residentes, e Angola a quinta, com 20 366 residentes. Em concreto, este estudo tem como objetivo analisar dados dos inquéritos por questionário recolhidos no âmbito do projeto PIDOP relativamente às duas seguintes dimensões: motivações e barreiras, e conceções de cidadania2 esta última dimensão motivada especificamente por investigação que questiona a relação entre aquisição do estatuto de cidadania política e aumento das oportunidades e expectativas de participação, na medida em que as conceções e as perceções dos/as jovens variam muito relativamente ao estatuto de cidadania, associando-o a múltiplas dimensões como o acesso ao trabalho, a independência económica, o direito à voz e a participação na comunidade (Bolzendahl e Coffé, 2013; Dalton, 2008; Lister et al., 2003; Torney-Purta et al., 2001). Os dados serão analisados considerando o efeito do grupo de origem, do sexo e do número de livros em casa nas dimensões: motivações e barreiras para participar, e nas conceções de cidadania. O número de livros em casa é aqui considerado como um indicador do capital cultural das famílias.
As nossas hipóteses de trabalho centram-se nos efeitos que cada uma das variáveis independentes, i.e., grupo de origem, sexo e número de livros em casa (capital cultural) têm sobre as duas dimensões que aqui nos propomos analisar. Para a variável grupo de origem, tendo presente que o estatuto de imigrante tem sido consistentemente relacionado com uma situação de desvantagem devido a uma interação complexa de múltiplos fatores, tais como o sentido de pertença, a história colonial e a cultura democrática do país de origem e de acolhimento (Ahmad e Pinnock, 2007; Carliner, 2000; Lopez e Marcelo, 2008; Martiniello, 2005; Penninx, Martiniello, e Vertovec, 2004), prevemos que existam efeitos estatisticamente significativos no seguinte sentido: os grupos de origem imigrante percecionam menos motivações e mais barreiras para participar do que o grupo de origem portuguesa (H1); da mesma forma, apresentam conceções mais condicionadas de cidadania, possivelmente influenciadas pelas restrições do estatuto legal (H2). No que concerne à variável do sexo, em conformidade com o que tem sido salientado pela literatura relativamente a uma ideologia de género( Santos e Amâncio, 2012a, 2012b) que continua a prejudicar as mulheres sobretudo ao nível da participação mais convencional, antecipamos que existam efeitos significativos no seguinte sentido: as mulheres percecionam menos motivações e mais barreiras para participar do que os homens (H3); tal como apresentam conceções de cidadania menos relacionadas com os contextos mais convencionais de participação (H4). No que se refere, por último, à variável do número de livros em casa (capital cultural), de acordo com a literatura que tem destacado consistentemente a centralidade da educação na participação cívica e política (Emler e Frazer, 1999; Verba, Schlozman e Brady, 1995), esperamos que existam efeitos significativos no seguinte sentido: os/as participantes com um maior número de livros em casa (maior capital cultural) percecionam mais motivações e menos barreiras para participar do que os/as que apresentam um menor número de livros em casa (menos capital cultural (H5)); expectavelmente apresentam conceções de cidadania mais expressivas (H6).
AMOSTRA E METODOLOGIA
PARTICIPANTES
Como já se mencionou, a amostra deste estudo envolveu jovens dos 15 aos 29 anos de idades3, de origem angolana, brasileira e portuguesa. No total, a amostra é constituída por 1010 participantes: 255 participantes de origem angolana (121 do sexo masculino e 134 do feminino), 367 participantes de origem brasileira (158 do sexo masculino e 209 do feminino), e 388 participantes de origem portuguesa (166 do sexo masculino e 222 do feminino). Relativamente ao seu estatuto em termos de cidadania, 29,9% dos participantes de origem angolana tem nacionalidade portuguesa, 13,9% dupla cidadania (portuguesa e angolana), e 56,2% cidadania angolana. No que concerne aos participantes de origem brasileira, 0,8% tem nacionalidade portuguesa, 13,6% a dupla cidadania (portuguesa e brasileira), e 85,6% a cidadania brasileira. Por sua vez, em relação à variável do número de livros em casa, os dados mostram que os participantes apresentam uma tendência semelhante nas categorias de menos de 10 livros e de 11 a 50 livros: de origem portuguesa (27,9% e 21,7%), de origem brasileira (37,3% e 28,3%) e de origem angolana (25,4% e 24,6%). Porém, na categoria de nenhum livro, são os participantes de origem angolana que apresentam valores mais elevados (23,8%) (Quadro 1).
PROCEDIMENTOS DE RECOLHA DE DADOS
O processo de administração e recolha de questionários implicou uma amostragem intencional e decorreu em vários contextos de modo a possibilitar o acesso a perceções e a experiências diversificadas de participação: escolas secundárias, universidades, associações de imigrantes, associações juvenis, associações religiosas, associações recreativas e de lazer, grupos desportivos, centros de formação profissional e centros nacionais de apoio aos imigrantes (CNAI). A estratégia mais eficaz na mobilização dos/as jovens variou de acordo com a origem do grupo. No grupo de origem angolana, a colaboração de líderes associativos foi fundamental para a concretização desse processo. No grupo de origem brasileira, foi a autorização e a colaboração do Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural (ACIDI) para administrar questionários nos CNAI de Lisboa e do Porto que se revelou preponderante a maioria dos participantes desta origem foi recrutada nestes espaços. Por sua vez, no grupo de origem portuguesa foram os contactos com as escolas secundárias e centros de formação profissional que se manifestaram fundamentais para mobilizar os participantes apesar de estes contextos terem privilegiado sobretudo os jovens de origem portuguesa, eles também contemplaram (embora com menos peso do que os CNAI e a ação desenvolvida pelos líderes associativos) jovens alunos e alunas de origem angolana e brasileira que frequentavam esses espaços. Contudo, apesar da recolha de questionários se ter verificado em diversos contextos de participação, a amostra constituiu-se maioritariamente, no que se refere à atividade principal dos participantes, por estudantes a tempo inteiro. Essa situação é sobretudo verificada nos grupos de jovens de origem portuguesa (89%) e angolana (63,7%). O grupo de jovens de origem brasileira é o que apresenta maior equilíbrio entre os participantes que são estudantes a tempo inteiro (50,1%) e os restantes que trabalham quer a tempo inteiro, quer a tempo parcial. Na administração dos questionários foram apresentados os objetivos do estudo, deu-se a garantia de que este iria respeitar o anonimato e confidencialidade dos dados recolhidos, e obteve-se o consentimento informado dos jovens. No sentido de se poder alargar mais a amostra, procedeu-se também à construção de um questionário online que foi divulgado, sobretudo, através de redes sociais, associações de imigrantes e associações de estudantes, e que se revelou bastante útil para a obtenção da amostra relativa aos jovens de origem portuguesa. Importa ainda ressalvar que, apesar de ser uma amostra não probabilística, consideramos que estes dados nos podem dar pistas valiosas para aprofundar o nosso conhecimento sobre os grupos que aqui pretendemos analisar.
ESTRATÉGIA ANALÍTICA
Antes de analisarmos o efeito do grupo de origem, do sexo e do número de livros nas dimensões: motivações e barreiras para participar, e nas conceções de cidadania, realizámos previamente análises confirmatórias para validar a sua estrutura, utilizando para tal procedimento estatístico o programa Analysis of a Moment Structures (AMOS) 19 Structural Equation Modeling (SEM) package. No sentido de avaliar a qualidade do modelo de análise, considerámos os seguintes índices de ajustamento: o ratio X2/graus de liberdade (X2/gl); Room Mean Square Residual (RMSEA); Goodness-of-fit índex (GFI); e Comparative Fit Index (CFI). Relativamente ao índice X2/gl: igual a 1 indica um ajustamento perfeito; abaixo de 2 um modelo bom; valores entre 2 a 5 um modelo razoável; e valores superiores a 5 não são aceitáveis (Arbuckle, 2008). No que se refere ao RMSEA: 0.05 ou inferior indica um bom ajustamento; e valores inferiores a 0.07 são ainda aceitáveis (Browne e Cudeck, 1993). Por sua vez, os valores do CFI e do GFI: superiores a 0.95 são muito bons; entre 0.90 a 0.95 ainda indicam um bom ajustamento; e abaixo de 0.90 um mau ajustamento do modelo. Tendo em conta estes valores de referência, ambas dimensões revelaram índices de ajustamento satisfatórios. Os indicadores foram calculados utilizando as médias ponderadas dos valores dos itens das escalas:
Motivações e Barreiras
(X2/gl=2.79; CFI=0.979, GFI=0.972, RMSEA=0.056; P [rmsea<=0.05] <0.056) é uma adaptação das escalas usadas por Collom (2011), sendo composta por três subescalas: motivações para o desenvolvimento pessoal (Participaria numa causa política se sentisse que poderia apreender coisas novas; Participaria numa causa política porque gosto de ajudar as outras pessoas; Participaria numa causa política porque é uma boa forma de conhecer novas pessoas), motivações para a mudança social (Participaria numa causa política se acreditasse mesmo nela; Participaria numa causa política se sentisse que poderia influenciar pessoas; Participaria numa causa política se isso ajudasse a criar uma sociedade melhor) e barreiras (Não me envolvo em causas políticas porque sou muito novo; Nunca ninguém me perguntou se me queria envolver numa causa ambiental; Nunca ninguém me perguntou se me queria envolver numa organização política; Nunca ninguém tentou convencer-me a votar a favor ou contra um determinado candidato nas eleições). Todas as subescalas revelaram índices de fiabilidade positivos: Alpha de Cronbach com valores de 0,80, 0,82 e 0,72, respetivamente.
Conceções de cidadania
(X2/gl=3.242; CFI=0.986, GFI=0.983, RMSEA=0.063; P [rmsea<=0.05] =0.063) é uma adaptação das escalas usadas por Torney-Purta et al. (2001). À semelhança da anterior, esta escala é composta também por três subescalas: deveres cívicos (Um/a bom/boa cidadão/ã vota em todas as eleições; Um/a bom/boa cidadão/ã trabalha/tem um emprego; Um/a bom/boa cidadão/ã paga impostos), cidadania convencional (Um/a bom/boa cidadão/ã pertence a um partido político; Um/a bom/boa cidadão/ã conhece a história do seu país; Um/a bom/boa cidadão/ã está disposto a servir nas forças armadas para defender o país; Um/a bom/boa cidadão/ã acompanha os assuntos políticos nos jornais, na rádio ou na TV; Um/a bom/boa cidadão/ã envolve-se em discussões políticas) e cidadania cosmopolita (Um/a bom/boa cidadão/ã participa numa manifestação pacífica contra uma lei injusta; Um/a bom/boa cidadão/ã participa em atividades em favor dos direitos humanos; Um/a bom/boa cidadão/ã participa em atividades para ajudar as pessoas da comunidade; Um/a bom/boa cidadão/ã participa em atividades para proteger o ambiente; Um/a bom/boa cidadão/ã defende os direitos das mulheres). Todas as subescalas revelaram índices razoáveis de fiabilidade: Alpha de Cronbach com valores de 0,85, 0,74 e 0,77.
Realizado o procedimento estatístico de validação das escalas, exploramos de seguida o efeito do grupo de origem (portuguesa; angolana; brasileira), do sexo (masculino; feminino) e do número de livros em casa (menos de 10; entre 10 a 100; e mais do que 100 livros transformadas a partir das 6 categorias iniciais) sobre as dimensões motivações e barreiras, e conceções de cidadania através de análises de variância multivariadas (MANOVA Multivariate Analysis of Variance), recorrendo ao programa de análise estatística de dados IBM SPSS versão 20. Apenas serão apresentados os valores estatisticamente significativos.
RESULTADOS
MOTIVAÇÕES E BARREIRAS
Os testes multivariados mostram um efeito significativo do grupo de origem (Traço de Pillai=,127; F(6,1936)=21,903, p<,001, ηp2=.064); e do número de livros em casa (Traço de Pillai=,071; F(6,1936)=11,872, p<,001, ηp2=.035). Indicam também que existe um efeito de interação significativo entre grupo de origem e o número de livros em casa (Pillais Trace=,035; F(12,2907)=2,820, p<,001, ηp2=.012). Em relação ao efeito do número de livros em casa, os Testes de Efeitos entre Sujeitos (Test of Between-Subjects Effects) mostram que as diferenças são significativas em todas as subdimensões: motivações para o desenvolvimento pessoal (F(2)≥4,243, p<,05, ηp2=.009), motivações para a mudança social (F(2)≥22,986, p<,001, ηp2=.045) e barreiras (F(2)≥7,018, p<,001, ηp2=.014). Quanto ao efeito de interação entre grupo de origem e o número de livros em casa, apenas existem diferenças significativas em duas subdimensões: motivações para o desenvolvimento pessoal (F(4)≥2,586, p<,05, ηp2=.011) e barreiras (F(4)≥2,447, p<,05, ηp2=.010).
No que concerne ao efeito do grupo de origem, os resultados relativos à média (M) e desvio padrão (DP) mostram que os grupos de origem brasileira (M=3,302; DP=,071) e portuguesa (M=3,207; DP=,055) apresentam níveis mais elevados de motivação para o desenvolvimento pessoal quando comparados com o grupo de origem angolana (M=2,510; DP=,086). A mesma tendência é verificada na motivação para a mudança social: origem portuguesa (PT) (M=3,621; DP=,056); origem brasileira (BRA) (M=3,578; DP=,072); origem angolana (ANG) (M=2,641; DP=,087). No que se refere às perceções de barreiras para participar, o grupo de origem angolana é o que apresenta níveis mais elevados: ANG (M=2,891; DP=,091); PT (M=2,624; DP=,058); BRA (M=2,267; DP=,074).
Relativamente ao efeito do número de livros em casa, os resultados indicam um impacto maior quando o número de livros reportados aumenta, quer nas motivações para o desenvolvimento pessoal: ≤10 (M=2,885; DP = ,054), 11-100 (M=3,015; DP=,055), ≥101 (M=3,149; DP=,097), quer nas motivações para a mudança social: ≤10 (M=2,926; DP=,055), 11-100 (M=3,273; DP=,056), ≥101 (M=3,641; DP=,099). O contrário acontece com a subdimensão das barreiras para participar: quanto mais livros reportados, menor é a perceção de barreiras: ≤10 (M=2,758; DP=,057), 11-100 (M=2,700; DP=,058),≥101 (M=2,324; DP=,103).
Quanto ao efeito de interação entre grupo de origem e o número de livros em casa (Quadro 2), os resultados mostram a ausência de impacto do número de livros em casa no grupo de origem portuguesa quer nas motivações para o desenvolvimento pessoal, quer nas barreiras para participar. Já no que se refere aos grupos de origem imigrante, os resultados indicam a existência de efeitos significativos sempre no seguinte sentido: quanto mais livros reportados, maior é a motivação para participar e menor é a perceção de barreiras. Este dado sugere que o capital cultural tem um efeito diferenciado sobre os grupos de origem portuguesa e imigrante.
CONCEÇÕES DE CIDADANIA
Os testes multivariados mostram um efeito significativo do sexo (Traço de Pillai=,018; F(3,959)=5,978, p<,001, ηp2=.018), do grupo de origem (Traço de Pillai=,164; F(6,1920)=28,678, p<,001, ηp2=.082) e do número de livros em casa (Traço de Pillai=,032; F(6,1920)=22,702, p<,001, ηp2=.066). Mostram também que existe um efeito de interação significativo entre grupo de origem e o número de livros em casa (Traço de Pillai=,054; F(12,2883)=4,402 p<,001, ηp2=.018). Os Testes de Efeitos entre Sujeitos (Test of Between-Subjects Effects) revelam um efeito significativo do grupo de origem e do número de livros em casa nas três subdimensões: cidadania cosmopolita (F(2)≥ 32,932, p<,001, ηp2=.064; F(2)≥63,923, p<,001, ηp2=.117), cidadania convencional (F(2)≥8,285, p<,001, ηp2=.017; F(2)≥17,443, p<,001, ηp2=.035) e deveres cívicos (F(2)≥81,088, p<,001, ηp2=.144; F(2)≥38,327, p<,001, ηp2=.074); e um efeito significativo do sexo apenas no caso da cidadania convencional (F(1)≥10,277 p<,005, ηp2 = .011). No que diz respeito ao efeito de interação entre grupo de origem e o número de livros em casa, verifica-se também que é significativo em todas as subdimensões: cidadania cosmopolita (F(4)≥10,984, p<,001, ηp2=.044), cidadania convencional (F(4)≥7,636, p<,001, ηp2=.031) e deveres cívicos (F(4)≥6,007, p<,001, ηp2=.024).
Relativamente ao efeito do sexo, os resultados mostram um valor mais elevado do sexo masculino na cidadania convencional: masculino (M=2,972; DP=,050); feminino (M=2,760; DP=,044).
No que concerne ao efeito significativo do grupo de origem, verifica-se que o grupo de origem brasileira e o grupo de origem portuguesa apresentam valores mais elevados do que o grupo de origem angolana em todas as subdimensões das conceções de cidadania: cidadania cosmopolita: PT (M=3,656; DP=,047), BRA (M=3,561; DP=,060), ANG (M=2,966; DP=,073); cidadania convencional: PT (M=2,968; DP=,044), BRA (M=2,972; DP=,057), ANG (M=2,657; DP=,068); deveres cívicos: PT (M=3,836; DP=,054), BRA (M=3,971; DP=,070), ANG (M=2,688; DP=,085).
Quanto ao efeito do número de livros em casa, os resultados revelam uma progressão linear. Quantos mais livros em casa, mais elevados são os valores das conceções de cidadania: cidadania cosmopolita: ≤10 (M=2,901; DP=,046), 11-100 (M=3,381; DP=,047), ≥101 (M=3,901; DP=,082); cidadania convencional: ≤10 (M=2,627; DP=,043), 11-100 (M=2,838; DP=,044), ≥101 (M=3,133; DP=,078); deveres cívicos: ≤10 (M=3,052; DP=,053), 11-100 (M=3,511; DP=,054), ≥101 (M=3,932; DP=,096).
Não obstante, o padrão observado em cima varia de acordo com o grupo de origem. Por exemplo, tal como a Quadro 3 revela, o grupo de origem portuguesa apresenta conceções de cidadania convencional relativamente estáveis independentemente do número de livros em casa embora, importa registar, nas outras duas conceções de cidadania (deveres cívicos e cosmopolita) se verifique um aumento significativo dos valores: quanto mais livros, maiores os valores das conceções. Um aumento de valores que é, de forma gradual, também observado no grupo de origem brasileira para todas as conceções de cidadania: os valores das conceções aumentam gradualmente conforme o número de livros em casa também aumenta. Já o grupo de origem angolana, por sua vez, apresenta resultados que indicam que mais livros em casa aumentam exponencialmente os valores de todas as conceções de cidadania. O grupo de origem angolana apresenta mesmo valores mais elevados do que os outros dois grupos para a cidadania convencional e para a cidadania cosmopolita. Este dado sugere que o aumento significativo de livros em casa (capital cultural) pode promover a superação de desvantagens.
DISCUSSÃO E CONCLUSÃO
O objetivo deste estudo foi o de contribuir para a discussão dos fatores que podem promover ou obstaculizar a participação cívica e política de grupos considerados em risco de exclusão. Nesse sentido, analisaram-se dados do projeto PIDOP para explorar as diferenças do grupo de origem, do sexo e do número de livros em casa (i.e., capital cultural) no que concerne aos seus efeitos sobre as motivações e barreiras para participar, e sobre as conceções de cidadania. Consideraram-se neste estudo três grupos de jovens de origem angolana, brasileira e portuguesa.
Os resultados apresentados neste estudo salientam, em primeiro lugar, que os grupos de jovens de origem brasileira e portuguesa estão mais motivados para participar (quer para o desenvolvimento pessoal, quer para a mudança social) do que o grupo de jovens de origem angolana. Adicionalmente, os resultados também evidenciam que o grupo de jovens de origem angolana perceciona mais barreiras para participar do que os de origem brasileira e portuguesa. Estes resultados parecem de certa forma reforçar pesquisas anteriores que chamam a atenção para o facto de os/as imigrantes de origem africana poderem ser alvo de uma menor aceitação por parte da sociedade portuguesa quando comparados, por exemplo, com os/as imigrantes de Leste (Lages e Policarpo, 2003; Lages et al., 2006) , que tem fortalecido, com o fluxo migratório proveniente das ex-colónias, uma hierarquia colonial (Machado, 2006). A perceção de mais barreiras para participar por parte do grupo de origem angolana pode ser aqui entendida como possível resultado de mais momentos de discriminação e de racismo experienciados por estes jovens. Significa isto que os dados recolhidos parecem contrariar a ideia de que Portugal reúne já as condições necessárias para a participação dos imigrantes (Ramalho e Trovão, 2010), reforçando antes as análises que sugerem que as comunidades imigrantes se encontram numa situação de desvantagem (Eggert e Giugni, 2010; Kelly, 2009; Munro, 2008; Vogel e Triandafyllidou, 2005), nomeadamente ao nível dos direitos políticos (Carvalhais, 2004, 2006; Zobel e Barbosa, 2009). Uma situação que estando, efetivamente, a ser percecionada e vivida pelos jovens de origem angolana, estará certamente também a contribuir para o reforço da desconfiança desse grupo relativamente ao Estado (Grassi, 2009).
Em segundo lugar, os resultados deste estudo não registam muitas diferenças significativas entre homens e mulheres. No entanto, importa destacar a existência de uma diferença significativa na subdimensão da cidadania convencional a favor dos homens. Este dado, apesar de ser o único observado ao nível das diferenças significativas quanto à variável sexo, sugere que as mulheres tendem a apresentar conceções de cidadania menos relacionadas com as esferas mais convencionais de participação (pertencer a um partido político; acompanhar os assuntos políticos; envolver-se em assuntos políticos). Um dado que parece, portanto, ir ao encontro dos estudos que sugerem que as diferenças de género na participação cívica e política se verificam particularmente nos contextos de ordem mais formal e pública (Espírito-Santo e Baum, 2004; Espírito-Santo, 2015; Galligan, 2015; Ribeiro et al., 2015; Santos e Amâncio, 2012b), e que as formas não institucionalizadas de participação poderão contribuir para a redução dessas diferenças (Marien, Hooghe e Quintelier, 2010). Ou seja, a existência de uma diferença significativa somente ao nível das conceções de cidadania convencional, sugere uma tendência para as mulheres relacionarem a cidadania com deveres cívicos (vota em todas as eleições; trabalha/tem um emprego; paga impostos) e a formas de participação cívica e política menos convencionais como as manifestações e as atividades relacionadas com os direitos humanos, os direitos das mulheres e a proteção do ambiente. Se, por um lado, estes resultados indicam que as mulheres tendem a apresentar uma conceção mais abrangente e multidimensional da cidadania, o que é no nosso entender positivo, por outro, também parecem sugerir que as mulheres continuam a estar sujeitas a uma ideologia de género (Santos e Amâncio, 2012a, 2012b) que tende a afastá-las dos contextos mais convencionais de participação (pertencer a um partido político) e, em consequência disso, a promover um maior investimento da parte delas nas formas de participação não convencionais uma situação que pode não se afigurar tão positiva, uma vez que parece sugerir que ainda não se verifica uma efetiva aproximação das mulheres aos contextos de poder e decisão políticos.
Em terceiro lugar, e de uma forma muito evidente, os resultados deste estudo ressaltam uma interação significativa entre capital cultural (número de livros em casa) e os grupos de origem imigrante (particularmente o grupo de origem angolana), quer nas motivações para o desenvolvimento pessoal, quer nas conceções de cidadania. Apesar do grupo de origem angolana apresentar uma desvantagem sistemática nas dimensões analisadas, essa desvantagem é suplantada quando o capital cultural aumenta, ultrapassando mesmo os valores apresentados pelos outros dois grupos (na categoria de mais de 100 livros em casa) nas conceções de cidadania convencional e cosmopolita situação interessante, sobretudo em relação à cidadania cosmopolita, na medida em que sugere uma perceção mais consciente da multiplicidade de padrões de cidadania, ou seja uma perceção menos limitada do que a cidadania na sua multidimensionalidade representa (Bolzendahl e Coffé, 2013; Dalton, 2008; Lister et al., 2003; Torney-Purta et al., 2001). Em conformidade, o contrário é verificado nas perceções de barreiras para participar: quanto mais capital cultural, menor é a perceção de barreiras para participar. O efeito do capital cultural é, neste caso, mais significativo para o grupo de origem brasileira que perceciona (na categoria de mais 100 livros em casa) menos barreiras para participar. Considerando a saliência do capital cultural nos resultados reconhecendo-se que este é fortemente impulsionado pelo capital económico (Bourdieu, 1986), sobretudo na posse dos grupos nacionais, e que é simultaneamente impulsionador do capital social, já conhecido como preditor da participação cívica e política (Putnam, 2000) , o contributo deste estudo consiste sobretudo em chamar a atenção para a importância de se atender a este fator sociodemográfico para se promover com mais sucesso a participação cívica e política de jovens imigrantes, ou seja, a sua cidadania ativa. Acresce ainda que para tal desígnio é inevitável considerar o papel crucial da família na constituição de capital cultural nos jovens (Verba, Schlozman e Brady, 1995; DeSipio, 1996; Schulz et al., 2010), significando isto que as intervenções políticas e sociais terão necessariamente de atender a esta dimensão contextual para incrementar uma inclusão mais eficaz dos/as jovens, sobretudo os/as de origem imigrante.
Em suma, os resultados deste estudo confirmaram parcialmente as nossas hipóteses de trabalho, especialmente no que se refere aos efeitos do grupo de origem e do número de livros em casa (capital cultural). Relativamente à variável grupo de origem: confirmou-se que um grupo de origem imigrante (origem angolana) foi o que evidenciou menos motivações e mais barreiras para participar (H1), bem como conceções mais condicionadas (valores mais baixos) de cidadania (H2). Embora, importa também referir, tenha havido um equilíbrio entre o grupo de origem portuguesa e o outro grupo de origem imigrante (origem brasileira) em ambas as dimensões, o que nos leva a considerar a possibilidade de os resultados sugerirem também que o estatuto de imigrante não é o único fator explicativo das diferenças entre grupos (Fernandes-Jesus et al., 2012) invalidando, assim, parcialmente as hipóteses 1 e 2 e revelando que o efeito do grupo de origem é mais complexo do que a literatura antecipa. Quanto às hipóteses 3 e 4 sobre a variável sexo: não se confirmou que as mulheres percecionam menos motivações e mais barreiras para participar, invalidando a H3. Não obstante, ao nível das conceções de cidadania, constatou-se que as mulheres apresentam valores inferiores aos dos homens em termos de conceções de cidadania convencional, confirmando-se por conseguinte a sua menor relação com os contextos mais convencionais de participação e confirmando a H4. Por último, no que se refere à variável número de livros em casa (capital cultural): confirmou-se que os/as participantes que apresentam níveis mais elevados de capital cultural, percecionam mais motivações e menos barreiras para participar (confirmando a H5), particularmente os/as que são de origem imigrante (angolana e brasileira), o que sugere que a intersecção entre a condição de imigrante e o capital cultural pode potenciar o efeito sobre o modo como percecionam as motivações e barreiras para participar. No que respeita às conceções de cidadania, confirmou-se também que o capital cultural tem um efeito positivo quanto ao modo como expressam as suas conceções de cidadania, i.e., quanto mais capital cultural, mais elevados são os valores das conceções de cidadania apresentadas, como esperado pela H6. Este efeito verifica-se especialmente no grupo de origem imigrante angolano que, ao apresentar valores que aumentam exponencialmente quando o número de livros em casa (capital cultural) é elevado (que chegam mesmo a ultrapassar os valores dos grupos de origem portuguesa e brasileira), sugere que este pode constituir-se como um fator relevante que pode suplantar eventuais desvantagens étnicas.
Concluindo, os resultados deste estudo indicam que as desigualdades sociais ainda estão bem presentes na sociedade portuguesa. Não sendo um dado, infelizmente, surpreendente, a sua constatação neste estudo deverá contribuir para o reforço da importância de se vigiar atentamente eventuais narrativas que se deixam levar, intencionalmente ou não, pela tentação de branquear as relações desiguais de poder que ainda persistem na nossa sociedade. As barreiras que se colocam mais a determinados grupos de jovens devido à sua condição étnica e à ideologia de género que ainda domina nos contextos mais convencionais de participação política são dois exemplos concretos, sugeridos por este estudo, que nos chamam a atenção para o trabalho que ainda temos de desenvolver para uma maior igualdade e justiça social e política. Apesar da evolução positiva que se tem verificado nas últimas décadas, continuam a existir situações de discriminação, preconceito e exclusão que afetam particularmente determinados grupos étnicos e as mulheres. Para se combater estas situações relativamente aos grupos étnicos, pensamos que este estudo nos sugere uma pista muito valiosa: a importância de se promover o capital cultural como forma de podermos esbater as desigualdades étnicas. Para tal, pensamos que é crucial apostar na identificação e implementação de políticas sociais e educativas que promovam, de facto, condições de maior igualdade de acesso ao capital cultural, que decorrem, a nosso ver, de uma distribuição mais equitativa dos recursos económicos e outros (potenciadores de capital económico e capital social) e de uma maior igualdade de oportunidades no acesso e sucesso educativos este última como garante do capital cultural, à falta de recursos que o possam potenciar. Quanto às situações que afetam as mulheres, pensamos que o ponto de partida será o de combater a ideologia de género que ainda está instalada na sociedade portuguesa. Essa ação poderá ser feita através de políticas sociais e educativas que promovam não só uma efetiva igualdade de oportunidades institucionais e políticas (como constituiu, por exemplo, a aprovação da Lei da paridade em 2006), mas também a sedimentação de princípios ético-políticos na sociedade portuguesa que se recusam a considerar que a participação e o mérito das atividades políticas convencionais estejam diretamente condicionados pelo género. A família e a escola são dois contextos que as políticas deverão privilegiar para se sedimentar esses princípios.
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Recebido a 19-03-2015. Aceite para publicação a 07-07-2016.
NOTAS
1Os dados aqui apresentados foram recolhidos pela equipa portuguesa no âmbito do PIDOP, um projeto multinacional de investigação financiado pelo 7.º Programa-Quadro da Comissão Europeia, FP7-SSH-2007-1, Contrato de Subvenção n.º: 225282, Processes Influencing Democratic Ownership and Participation (PIDOP), atribuído à Universidade de Surrey (Reino Unido), à Universidade de Liège (Bélgica), à Universidade de Masaryk (República Checa), à Universidade de Jena (Alemanha), à Universidade de Bolonha (Itália), à Universidade do Porto (Portugal), à Universidade de Orebro (Suécia), à Universidade de Ancara (Turquia), e à Universidade de Queens em Belfast (Irlanda do Norte).
2Além destas, o questionário (que resultou da escolha de escalas e itens criados pelas próprias equipas, bem como de adaptações de outras escalas e itens já existentes) considerou outras dimensões de análise: interesse político, atenção política, participação, eficácia da participação, barreiras à participação, qualidade das experiências de participação, motivações, suporte dos direitos imigrantes, entre outras.
3A amplitude das idades que estão aqui a ser consideradas prende-se com o facto de se ter definido, em contexto do projeto PIDOP, dois grupos etários distintos para análise (15-18 e 19-29). O argumento subjacente à definição desses grupos etários consistiu fundamentalmente na ideia de que as oportunidades e as expectativas de participação cívica e política aumentam quando os jovens adquirem o estatuto de cidadania plena com a idade de votar (Grover, 2011; Hadjar e Beck, 2010), i.e., de participarem ativamente no processo democrático representativo e institucionalizado. Essa organização etária permitia assim desenvolver uma análise que tivesse em consideração (para além obviamente dos diferentes níveis de desenvolvimento que os jovens mais novos e mais velhos certamente teriam) as implicações objetivas dos diferentes estatutos político-legais dos jovens nas suas possibilidades de participação política. Não obstante essa característica do projeto PIDOP, o estudo que aqui apresentamos não tem a intenção de desenvolver uma análise centrada nas diferenças entre as faixas etárias (i.e., centrada nos diferentes estatutos político-legais dos jovens), mas sim nos jovens, em geral, que constituíram a amostra.