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Análise Social

versão impressa ISSN 0003-2573

Anál. Social  no.227 Lisboa jun. 2018

https://doi.org/10.31447/AS00032573.2018227.15 

RECENSÕES

FRANCO, José Eduardo e REIS, Bruno Cardoso

Fátima: Lugar Sagrado Global,

Lisboa, Círculo de Leitores, 2017, 272 pp.

ISBN 9789724251387

José Barreto*

*Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa. Av. Professor Aníbal de Bettencourt, 9 - 1600-189 Lisboa, Portugal. jose.barreto@ics.ulisboa.pt


 

No ano do centenário das aparições de Fátima, em que o número de peregrinos e visitantes do santuário, segundo os dados divulgados em 2018, teria atingido a extraordinária cifra de 9,4 milhões, suplantando em quase 3 milhões o número de 2015, era também previsível uma vaga de publicações e estudos, nomeadamente de carácter historiográfico, sobre a temática objeto das comemorações. De facto, contam-se por muitas dezenas os livros publicados em 2017, entre obras inéditas e reedições, para não referir o avultado número de artigos surgidos em publicações periódicas de todo o tipo, incluindo revistas académicas nacionais e estrangeiras.

Desta vaga, como é natural, o tempo se encarregará de selecionar o reduzido conjunto de obras que trazem realmente algo de perdurável para o conhecimento e debate dos temas fatímicos. Num rápido balanço, pode constatar-se que uma parte do que foi publicado – cingimo-nos aqui à literatura de carácter não devocional ou não apologético, quer ela possa merecer o qualificativo de científica quer não – continua a insistir em certas abordagens tradicionais, como, por exemplo, a que privilegia a questão da sobrenaturalidade ou não-sobrenaturalidade dos factos que a história oficial de Fátima sustenta. Ainda que certamente legítima, essa abordagem tradicional revela-se redutiva e tendencialmente infrutífera. Não nos referimos apenas à literatura de denúncia ou desmistificação de Fátima, seja ela obra de autores descrentes ou não, mas sim a qualquer estudo que, independentemente das suas conclusões (ou da ausência delas, não raro), focaliza a sua análise sobre a clássica questão da autenticidade ou inautenticidade das aparições e milagres de Fátima – uma questão que é, afinal, de fé e, além disso, segundo a própria doutrina oficial da Igreja, de uma fé puramente pessoal.

Dois títulos de livros, entre outros publicados em 2017, ilustram essa insistência algo atávica em tal abordagem: Fátima: Milagre, Ilusão ou Fraude?, de Len Port (Lisboa, Clube do Livro, 2017), e Fátima: Milagre ou Construção?, de Patrícia Carvalho (Porto, Porto Editora, 2017). Trata-se aqui de pesquisas de cariz jornalístico, patenteando logo nos títulos a essência da sua abordagem tradicional – que, diga-se, vai ao encontro das expectativas e preferências do público leitor mais alargado. No entanto, também há obras académicas ou de metodologia científica que se caracterizam, até certo ponto, por uma abordagem semelhante, na medida em que dirigem o esforço da sua pesquisa e análise para a demonstração de que Fátima é afinal uma "criação" ou "construção" humana ou social, negando-lhe assim origem sobrenatural. Ora, para a ciência social de hoje, "milagre ou construção" é um falso dilema, dado que ela encara sempre as crenças coletivas como construções sociais (citem-se, por exemplo, a respeito das aparições marianas no séc. XX, as obras dos antropólogos William A. Christian e Paolo Apolito). As aparições e milagres são construções sociais na medida em que só o seu relato, que é sempre obra coletiva, e o seu reconhecimento por uma maior ou menor comunidade de crentes e, eventualmente, pela hierarquia eclesiástica faz deles "autênticas" aparições e milagres. Tanto a construção do relato pelas testemunhas originais, como a sua aceitação/interpretação por uma comunidade de crentes, como, por fim, a sua eventual validação pela hierarquia eclesiástica (por vezes condicionada por fatores políticos) constituem sempre um processo longo, por vezes tenso, sempre dialogado, negociado, isto é, recheado de interações sociais. Diga-se, enfim, que a centralidade de temas desmistificadores como ilusão, fraude, embuste, fabricação, manipulação – ou de temas aparentemente mais benignos, como construção e criação – não é apanágio exclusivo da literatura produzida por autores descrentes, anticatólicos ou, sequer, meramente céticos em relação a aparições e milagres, pois desde sempre que teólogos e a própria hierarquia da Igreja católica se servem desses precisos termos, ou ainda mais veementes, e de métodos analíticos idênticos para estigmatizar os factos (aparições, milagres, etc.) que consideram de origem falsamente sobrenatural e para, desse modo, os diferenciar dos que consideram fidedignos, ou seja, literalmente dignos de fé. É muito esclarecedora, a este respeito, a longa luta de refutação e denúncia das "fraudulentas" aparições de Medjugorje, na Bósnia, conduzida desde a década de 1980 pelos bispos católicos de Mostar.

Servem estes considerandos de preâmbulo à apresentação de uma obra que não privilegia a tradicional questão da autenticidade/inautenticidade dos factos matriciais de Fátima, mas que não foge inteiramente nem a esse debate, nem a tomar nele uma posição. Sob o título Fátima: Lugar Sagrado Global, os historiadores José Eduardo Franco e Bruno Cardoso Reis publicaram, no ano do centenário, um detalhado roteiro ilustrado da história de Fátima, que inventaria os principais factos e episódios de um século de culto e simultaneamente apresenta e analisa uma série de temas, conceitos, debates e polémicas em torno do fenómeno fatímico e do seu significado religioso e sociopolítico tanto no panorama português, como internacional. Embora a obra tenha certamente sido pensada pelos seus autores para um público mais vasto do que o académico, ela vai constituir um útil e estimulante guia para todos os estudiosos de Fátima.

Bons conhecedores dos temas da tradicional, se não dominante, controvérsia existente na sociedade portuguesa em torno da sobrenaturalidade ou não sobrenaturalidade dos acontecimentos que deram início ao culto de Fátima, os autores da obra optaram, a nosso ver com toda a legitimidade, por secundarizar tal questão, orientando a sua atenção prioritária para a importância do movimento gerado por esses acontecimentos, as razões espirituais e sociopolíticas da adesão popular e da inédita dimensão nacional que esse movimento adquiriu, o efeito que ele teve no revigoramento e na reconfiguração, até geográfica, do catolicismo português, o papel que desempenhou na história de Portugal do século XX (especialmente sob a República e o Estado Novo), bem como o acolhimento internacional e o eco global que logrou obter. Os autores, que confessam não ter visões sempre convergentes a respeito de Fátima e declaram não pretender fazer obra apologética nem libelo acusatório, acabam, todavia, por ceder a fazer um juízo global sobre o referido problema da autenticidade. Trata-se, afinal, de um juízo algo escorregadio e equívoco, dada a sua formulação anfibológica, aliás repetidamente expressa: "Fátima está longe de ser uma simples fraude" (p. 9) e "Fátima não foi um simples caso de manipulação pelas elites católicas (p. 260). Podemos interrogar-nos se era exatamente isso o que os autores pretendiam dizer. No primeiro caso, corrigem, afirmando que se Fátima fosse uma "simples fraude", há muito "teria sido provada"; no segundo, não conseguem afastar inteiramente o equívoco, esclarecendo apenas que "Fátima não tem nada de simples". Logicamente, nem a fraude nem a manipulação pelas elites católicas ficam, nessa formulação, excluídas da história de Fátima.

Uma das forças desta obra reside no destaque dado, especialmente na II parte, mas também um pouco por todo o livro, ao tema da internacionalização ou globalização do culto de Fátima, aspeto a que os autores quiseram fazer referência no próprio título, o que aparentemente acontece pela primeira vez na extensa bibliografia fatímica, tanto nacional como estrangeira. Mas, para além desse tema, uma miríade de outros aspetos é focada no livro, que, por isso mesmo, se pode considerar um útil inventário de tópicos fatímicos, alguns dos quais a merecer futuramente a atenção de estudos especializados, mais desenvolvidos. A própria história da internacionalização de Fátima deveria servir futuramente de tema a um estudo mais aprofundado, sobretudo se se puder contar com um alargamento considerável da base de documentação arquivística, sendo de realçar, a este propósito, as teóricas potencialidades do Arquivo Secreto do Vaticano.

Outro aspeto estimulante e digno de aprofundamento futuro é aquilo que os autores, no capítulo intitulado "lugar sagrado nacional", designam por devoção nacionalista católica, que durante um período assaz longo foi uma característica marcante de Fátima, ainda que coexistindo, de forma aparentemente paradoxal, com o já referido processo de internacionalização. Em contrapartida, os autores sustentam que Fátima não foi "manipulada para servir a ascensão de Salazar ao poder", preferindo falar de processos paralelos de ascensão e consolidação "a partir de um fundo comum de nacionalismo católico" (p. 35). Questionam também as teses segundo as quais Fátima teria servido como um "pilar do regime de Salazar", embora o argumento menos convincente em que fundam esse seu ponto de vista seja a afirmação de que Fátima sobreviveu bem à queda do regime salazarista (o que, em si mesmo, é um facto); na verdade, haveria que distinguir o período da ascensão e consolidação do salazarismo das etapas que se lhe seguiram e, sobretudo, ter em consideração a evolução do posicionamento dos católicos portugueses e da Igreja universal a partir do final da década de 1950, que não deixou de se repercutir no papel religioso e sociopolítico de Fátima e numa adaptação desta à nova realidade nacional (surgimento de uma oposição católica) e internacional (marcada pelo anticolonialismo dos novos papas e pelo Concílio do Vaticano II). Também o facto de Salazar só muito raramente ter estado presente nas grandes peregrinações nacionais de Fátima – outro facto verdadeiro – nos parece carecer de força probatória para o fim em vista, dado que o ditador sempre se mostrou arredio do contacto com multidões, fosse qual fosse o carácter das manifestações públicas, não constituindo as assembleias religiosas exceção a essa regra. Mais atenção merece o argumento avançado pelos autores de que a devoção nacionalista católica, e concretamente a de Fátima, mergulhava as suas raízes em períodos anteriores ao consulado de Salazar. Realmente, ela manifesta-se logo em 1917, enquadrada pelo nacionalismo católico monárquico ou em sintonia com ele, mas esta circunstância escapa à atenção dos autores.

Ainda outro aspeto focado num capítulo autónomo do livro e que mereceria certamente novos desenvolvimentos futuros é aquilo a que os autores chamaram por junto "antifatimismo" (pp. 95-111), mas a que acharíamos preferível chamar, mais abrangentemente, crítica de Fátima. De facto, a crítica de Fátima assumiu no passado e assume ainda hoje formas muito distintas, não parecendo útil nem adequado reuni-las a todas sob o rótulo de antifatimismo, termo que sugere uma espécie de militância contra Fátima no seu conjunto e que poderá ter até alguns ressaibos a intolerância religiosa. Não é possível abarcar com um só conceito atitudes extremamente diferenciadas que vão desde a crítica teológica católica de Fátima, que começou a ganhar expressão em alguns países europeus no final da II Guerra, até ao vandalismo intolerante e sectário que, durante a 1.ª República, chegou a servir-se de dinamite para combater o fenómeno fatímico, passando pelo escalão intermédio da literatura de denúncia, dos libelos de "desconstrução" e "desmascaramento" de Fátima (de facto, só um reduzido número de publicações desse género conseguiu furar, e tardiamente, a barreira censória com que o Estado Novo protegeu Fátima, aspeto a que os autores não aludem).

Em vários pontos do livro se podem detetar lacunas de informação ou escassez de referência bibliográfica, provavelmente inevitáveis, dado não só o perfil pretendido da obra, visando um público alargado, como a impossibilidade de comprimir toda a história de Fátima, de par com uma apreciação teológica da sua vertente espiritual, em apenas duas centenas e meia de páginas, descontado ainda o significativo espaço concedido às ilustrações. No que toca, porém, à matéria factual que é exposta na obra, bem como à sua interpretação, vamos em seguida fazer algumas reflexões críticas e formular algumas discordâncias, relativamente a três pontos que selecionámos.

Começando por um aspeto de pormenor (mas que, afinal, talvez não o seja), atentemos na afirmação que os autores fazem de que o antigo bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes – que teve um grave conflito com o regime de Salazar e esteve exilado no estrangeiro durante dez anos – teria sido um "peregrino regular de Fátima" e que até teria feito questão, quando do seu regresso do exílio em 1969, já sob Marcelo Caetano, de se dirigir de imediato a Fátima, facto a que, no referido contexto, os autores conferem um especial significado (pp. 47-48). Ora, é de todo impossível adequar ao perfil já bem conhecido do antigo bispo do Porto essa qualidade de "peregrino de Fátima". Certamente que o bispo foi muitas vezes a Fátima, no âmbito de eventos, cursos, reuniões ou assembleias ali realizadas, no quadro das atividades da Ação Católica Portuguesa ou dos retiros anuais do episcopado que há décadas ali se realizavam, bem como das reuniões da Conferência Episcopal Portuguesa. Depois de Braga, que durante largo tempo foi unanimemente considerada a capital católica de Portugal, Fátima – como os autores do livro, aliás, bem sublinham – foi conquistando esse título para si, somando assim à sua primitiva qualidade de santuário de peregrinações a qualidade de centro ou capital do catolicismo nacional, ou seja, um espaço vocacionado para acolher, ao longo de todo o ano, um grande número de encontros, reuniões e grande variedade de eventos, para não falar dos numerosos organismos e institutos católicos que lá situaram as suas sedes (seria, de resto, interessante observar como Fátima rapidamente se transformou no santuário nacional português, a há muito ansiada "Lourdes portuguesa", ao passo que o santuário do Sameiro, em Braga, já desde a década de 60 do séc. XIX aspirava a esse mesmo título, carecendo, porém, notoriamente, de um historial de aparições e milagres que o sustentasse). Por outro lado, sabemos que o antigo bispo do Porto foi um crítico severo de certos aspetos de Fátima, tanto na vertente puramente religiosa, como na vertente político-ideológica. Falou assim, nomeadamente, a propósito das promessas feitas pelos peregrinos, de "comércio mágico". A propósito da conotação político-ideológica de Fátima, usou a expressão "Lourdes reaccionária", numa carta que enviou do exílio ao cardeal Cerejeira. Ora nenhum bispo português tinha antes dele usado (nem depois dele voltou a usar) termos de tal veemência para se referir criticamente a Fátima – não a Fátima no seu conjunto, entenda-se, mas a aspetos bem determinados. Quanto ao alegado facto de o regresso do bispo a Portugal em 1969 se ter realizado via Fátima, trata-se de algo que se deveu a duas ou três fortíssimas razões, não relacionadas com qualquer atração especial do bispo pelo santuário de Fátima enquanto local de peregrinação. Com efeito, quando o bispo teve licença do papa Paulo VI para regressar a Portugal, a sede da sua diocese não estava livre, pois o administrador apostólico, D. Florentino de Andrade e Silva, resistia a ceder o lugar ao bispo legítimo e só ao cabo de uma demorada negociação aceitou retirar-se. Por outro lado, no momento do regresso de D. António Ferreira Gomes a Portugal, os bispos portugueses estavam reunidos em Fátima no seu retiro anual; o chefe do governo, quando por carta anunciou ao bispo do Porto que ele podia regressar ao país, e perfeitamente consciente da questão que existia entre o bispo e o administrador apostólico, pediu-lhe que se juntasse em Fátima aos seus colegas do episcopado, para em conjunto conseguirem uma solução para o problema. Compreensivelmente, o bispo anuiu a essa condição posta por Marcelo Caetano.

Passando aos dois outros pontos, o primeiro respeita a um aspeto essencial da biografia de Lúcia. A principal vidente de Fátima viveu em Espanha dos 18 aos 39 anos de idade, um total de 21 anos, ali residindo inclusivamente durante a guerra civil espanhola de 1936-1939. Sabe-se por diversas fontes, inclusive pelas suas "memórias" e pela sua correspondência, mas também por resenhas biográficas que estão publicadas em edições católicas, que Lúcia viveu e sentiu estes 21 anos como uma espécie de exílio que lhe foi imposto. A vidente chegou a referir-se ao seu desterro como o resultado de uma "sentença" (expressão sua) que a impedia de regressar ao país – regresso que ela, apesar da sua grande obediência e do seu despojamento de religiosa, sempre ansiou. Uma razão frequentemente invocada para o prolongado afastamento de Portugal da vidente, de que o livro aqui em exame se faz eco (p. 202), é o facto de as Doroteias portuguesas, congregação em que Lúcia teria "decidido" fazer o seu noviciado, estariam à data a residir no exílio estrangeiro a que a República as forçou em 1910. Ora em 1925, data da ida de Lúcia para Espanha, já as Doroteias portuguesas tinham reaberto várias das suas casas e colégios em Portugal, inclusive a casa do Sardão, em Vila Nova de Gaia, onde Lúcia passará muito mais tarde a residir, quando do seu regresso ao país em 1946. Por outro lado, também a escolha da congregação das Doroteias não foi da vidente, pois ela quereria já em 1925 entrar para as Carmelitas, como várias fontes atestam. Pode dizer-se que, a partir de 1921, quando Lúcia foi retirada, com 14 anos, do seu meio e da sua família em Fátima e enviada para o Asilo de Vilar, no Porto (a única casa das Doroteias mantida aberta após a expulsão das ordens religiosas pela República em 1910), todas as decisões sobre o seu destino foram sempre tomadas pelo bispo de Leiria, D. José Alves Correia da Silva. É a própria Lúcia que o afirma repetidamente nos seus escritos e correspondência. Por cartas suas sabemos também dos seus receios motivados pelas circunstâncias da guerra civil espanhola e, especialmente, do período de alguns meses que a antecedeu, em que a segurança do convento de Tuy lhe chegou a parecer ameaçada. Lúcia desejava então obter um passaporte para se refugiar na Suíça, uma vez que, em resultado da já citada "sentença", ela tinha o caminho para Portugal barrado pelo bispo de Leiria. Tudo isto configura um misterioso aspeto da biografia da vidente de Fátima, jamais explicado convincentemente por quem estaria melhor situado para o fazer.

Abordemos, por fim, o tema das perseguições de que Fátima terá sido alvo sob a República (capítulos "Antifatimismo" e "O tempo de todos os perigos (1917-1930)" do livro em exame). Muito haveria aqui a dizer, pois a história oficial de Fátima e, em especial, a literatura fatimista mais aguerrida tem feito das alegadas "perseguições" e da "repressão da devoção popular" um aspeto crucial e fundador do culto de Fátima. Nessa literatura, por exemplo, o administrador do concelho de Ourém, acusado de ter raptado ou detido ilegalmente os pastorinhos videntes, é sistematicamente diabolizado, embora esse personagem, segundo relatos mais credíveis, tenha tido um papel bastante mais cordato do que aquele que lhe é imputado. No livro aqui em análise, o administrador do concelho não é propriamente diabolizado, mas, ao contrário de outros temas analisados com objetividade e distanciamento, não se nota nesse ponto um esforço para introduzir as necessárias nuances ou confrontar dados de fontes diversas. Considere-se outro caso de alegada perseguição, a proibição pelas autoridades republicanas de uma peregrinação a Fátima em 1924. Facto é que o governo de então, em debate ocorrido no parlamento, fez questão de negar qualquer responsabilidade no caso. Sabe-se que essa decisão de proibição, possivelmente da autoridade distrital de Leiria, acabou por não ser cumprida pela força militar enviada para Fátima, dando antes lugar a uma confraternização dos soldados com os peregrinos que nesse dia, em número muito maior que o habitual, acorreram ao santuário. Tirando, pois, o episódio bárbaro da dinamitação anónima, pela calada da noite, da pequena capela das aparições em 1922, que também não foi da responsabilidade do governo de então (mas que a literatura fatimista costuma associar, sem provas, ao "poder republicano"), não se vê, com efeito, que factos ou acontecimentos possam suportar a tese da perseguição estatal com que se pretendeu e ainda hoje se pretende construir uma espécie de martirológio de Fátima sob a 1.ª República. Os próprios autores do livro admitem (p. 128) que os resultados dos esforços das autoridades republicanas, entre 1919 a 1924, para impedir as peregrinações de Fátima foram sempre "escassos" – embora nulos talvez fosse um qualificativo mais próximo da realidade. Por contraste, considere-se a perseguição autêntica de que foram alvo duas tentativas de replicação de Lourdes gémeas da de Fátima, uma a "Lourdes alemã", nos anos 70 do século XIX, em Marpingen, no católico Sarre, outra a "Lourdes espanhola", nos anos 30 do século XX, em Ezkioga, no País Basco. Em ambos os casos, as aparições, o culto e as peregrinações populares delas nascidas foram alvo de dura repressão politicamente motivada, num caso pelo governo de Bismarck, no outro pelo governo de Franco, saldando-se a intervenção estatal em ambos os casos pela supressão pura e simples, de forma definitiva, dos respetivos santuários – o que foi feito, note-se, com o assentimento da hierarquia católica dos dois países em questão.

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