INTRODUÇÃO
O teor de húmus, a fração mais estável da matéria orgânica do solo, é resultado de um equilíbrio entre os processos de decomposição biológica e os ganhos decorrentes da restituição de resíduos das culturas, como folhas, palhas, raízes, e aplicação de corretivos orgânicos ao solo (Zech et al., 1997). Este equilíbrio sensível, dependente do balanço de entradas e saídas de matéria orgânica do solo, é fortemente influenciado pelas condições edafo-ambientais e qualidade (bio)química dos respetivos materiais orgânicos que, por sua vez, influenciam a respetiva dinâmica, fazendo variar o teor de húmus no solo.
O estudo dos processos de decomposição dos resíduos orgânicos torna-se, assim, uma ferramenta importante na avaliação dos processos decomposição/humificação. A estimativa das frações potencialmente mineralizáveis do carbono (C0) e respetivas dinâmicas (kC), bem como a sua dependência de fatores de qualidade dos resíduos orgânicos, ajudam a melhor entender os processos de humificação e sequestro de C associado à aplicação de resíduos orgânicos no solo.
Deste modo, o objetivo do presente trabalho centra-se na avaliação do efeito da qualidade (bio)química inicial de resíduos vegetais nos respetivos processos de mineralização de C, durante um período de 392 dias de incubação, em condições de campo.
MATERIAL E MÉTODOS
Na realização do trabalho foram considerados seis resíduos vegetais de origem e caraterísticas (bio)químicas variadas: (i) folhada de castanheiro (Fcast); (ii) folhada de macieira (Fmac); (iii) folhada videira (Fvid); (iv) palha de trigo (Pt); (v) restolho de milho (Rm) e (vi) tremocilha (Trem) (Figura 1). Uma massa de material, equivalente a 10 toneladas por hectare, foi individualmente colocada a incubar num saco de decomposição (12 cm*7 cm e malha 1 mm), enterrado a 10 cm de profundidade, num Regossolo eutrico (pH 6,8; matéria orgânica 15,2 g/kg; N total 0,6 g/kg, argila 10,6 g/kg e classe de textura areno-franco). Para cada resíduo foram consideradas quatro repetições e seis datas de amostragem (28, 56, 85, 112, 224 e 392 dias), num total de 144 sacos de decomposição, colocados em simultâneo a incubar in-situ, em condições de clima Mediterrâneo, durante um período de 392 dias (Sousa et al., 2016).
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Figura 1 Diagramas de extremos e quartis para os parâmetros de carbono (C), azoto (N) totais, carbono (CSOL) e azoto (NSOL) orgânico solúvel, hemicelulose (HEM), celulose (CEL) e lenhina (LEN), determinados para avaliação (bio)química inicial dos resíduos vegetais.
Em cada data de amostragem foram recolhidos quatro sacos de decomposição por material e, após limpeza para eliminação de resíduos e partículas de solo, foram colocados em estufa a 60 ºC para determinação da matéria seca (MS). Uma toma de MS (± 50 mg) de cada material foi usada para determinação dos teores de C remanescente na MS, por via seca, através de NIRD, após combustão a 1100 ºC, em autoanalisador SKALAR®. Posteriormente, os valores foram corrigidos através da determinação do teor de cinzas.
Os dados obtidos para cada material foram ajustados a um modelo de um único reservatório [CMSR=C0*(exp(-kc*t))+(1000-C0)] (Olson, 1963), para estimativa das respetivas constantes de C potencialmente mineralizável (C0) (mg/kg MS) e a respetiva cinética associada (kC) (dia-1), através do método NonLin, com base no software Systat®. Com base nos dados estimados foram determinados os respetivos tempos de semi-vida (t50%) (0,693/kC), para cada material. Por sua vez, os valores obtidos foram sujeitos a uma análise de normalidade e homogeneidade, pelos testes de Kolmogorov e Barlett, respetivamente, seguida da realização de uma ANOVA a um fator, acompanhada do teste de Tukey para um grau de probabilidade de p≤0,05. Por sua vez, os valores de C0 e kC foram correlacionados com os parâmetros (bio)químicos iniciais e determinadas as respetivas relações, através de modelos de regressão linear simples.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os resultados da qualidade de ajustamento dos dados ao modelo de um único reservatório e respetivas constantes associadas a cada resíduo vegetal estudado são apresentados no Quadro 1.
Quadro 1 Valores das constantes estimadas pela aplicação do modelo de um único reservatório, C0 e kC, tempo de semi-vida (t50%) e respetiva qualidade de ajustamento (r2 ajust)
Material | C0 | kC | r2 ajust. | t50% | (g/kg) | (dia-1) | (dia) |
Fcast | 320 ab | 0,008 a | 0,971 *** | 93 d | |||
Fmac | 270 a | 0,009 a | 0,958 *** | 67 d | |||
Fvid | 318 ab | 0,011 a | 0,972 *** | 72 d | |||
Pt | 404 c | 0,018 c | 0,976 *** | 32 b | |||
Rm | 361 bc | 0,016 b | 0,966 *** | 58 c | |||
Trem | 661 d | 0,027 d | 0,992 *** | 26 a |
Para cada coluna, relativa a cada parâmetro, linhas seguidas da mesma letra não diferem significativamente entre sí, pelo teste de Tukey, para 5% de probabilidade; *** significativo para um grau de probabilidade de 0,1%.
O modelo testado revelou uma elevada exatidão, explicando mais de 95% da variação do C mineralizável em todos os resíduos vegetais, com as respetivas constantes a registar diferenças significativas (p≤0,05) entre sí, com os valores a variarem entre os 270 a 661 g/kg, para o C0, e 0,007 a 0,027 dia-1 para a kC (Quadro 1).
A Trem foi o material que apresentou maior fração de C mineralizável (661 g/kg), associado a uma elevada dinâmica de decomposição (0,027 dia-1), que se traduziu por um t50% de 26 dias. Os maiores teores de Csol e Nsol, associados a reduzidos teores de elementos estruturantes, como a Len, conferem a este resíduo uma elevada e acelerada decomposição no solo, comportamento consistente com os resultados observados por Abiven et al. (2005).
Seguiram-se os resíduos Pt e Rm que apresentaram um comportamento similar, com valores de C0 equiparados (Quadro 1). A menor disponibilidade de N total ou em formas solúveis (Nsol) nestes materiais, parece limitar os fenómenos de decomposição (Reinertsen et al., 1984), os quais apresentaram valores de C0 entre os 361 e 404 g/kg MS. Em termos cinéticos, as diferenças observadas poderão estar relacionadas com os maiores teores de Len do Rm, em que a maior resistência desta fração aos processos biológicos (Talbot et al., 2012), quase duplica o t50% deste material comparativamente à Pt (Quadro 1).
Com um comportamento diferenciado dos restantes materiais, as folhadas de castanheiro (Fcast), macieira (Fmac) e videira (Fvid) apresentaram valores de C0 e kC similares, entre 270 a 320 g/kg MS e 0,008 a 0,011 dia-1, respetivamente. Estes valores são resultado dos maiores teores de Len e, nestes materiais em particular, dos maiores teores de polifenóis, que limitam fortemente a mineralização de C (Fox et al., 1990) aumentando de forma significativa o t50%, comparativamente aos restantes materiais (Quadro 1).
Sendo a qualidade química inicial dos materiais um dos vetores mais importantes do processo de decomposição da matéria orgânica no solo, foram estabelecidas correlações entre os parâmetros (bio)químicos iniciais dos materiais e os valores das constantes estimadas (C0 e kC), sendo os resultados apresentados no Quadro 2.
Quadro 2 Correlação entre o C mineralizável (C0) e respetiva constante cinética (kC) e os parâmetros (bio)químicos iniciais dos resíduos vegetais estudados
Parâmetro (g/kg) | Coeficiente de correlação | |
de Pearson | ||
C0 | kC | |
Ctotal | - 0,695 ns | -0,719 ns |
Ntotal | 0,818 * | 0,663 ns |
Csol | 0,989 *** | 0,918 * |
Nsol | 0,939 ** | 0,812 * |
HEM | 0,151 ns | 0,344 ns |
CEL | - 0,756 ns | - 0,551 ns |
LEN | - 0,943 ** | - 0,984 *** |
ns - não significativo; *, **, *** significativo para um nível de probabilidade de 5%, 1% e 0,1%, respetivamente.
Os resultados indiciam correlações positivas significativas entre os indicadores das frações solúveis (Csol e Nsol) ou o teor total de N, elemento normalmente limitante nos processos de decomposição deste tipo de resíduos, que promovem um maior C0 e kC, sempre que os respetivos teores de N nos resíduos aumentam. Por sua vez, pelo contrário, os indicadores de frações mais resistentes ou recalcitrantes, como o caso da Len, apresentaram correlações negativas, contribuindo para uma maior resistência dos processos de decomposição e, consequentemente, uma diminuição dos valores de C0 e kC dos resíduos, potenciando o aumento do sequestro de C no solo, em resultado da aplicação deste tipo de resíduos. Esta tendência é corroborada por Jensen et al. (2005), em estudos que incluem um conjunto mais alargado de resíduos de origem vegetal.
Considerando os resultados obtidos na Figura 2, o Csol é o parametro que explica uma maior variabilidade dos valores estimados para o C0 nos resíduos vegetais estudados (r2 = 0,9773).
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Figura 2 Regressão linear simples entre os valores de C0 (g/kg) e Csol (g/kg) nos resíduos vegetais estudados.
Estes resultados estão de acordo com os pressupostos referidos por Smreczak & Ukalska-Jaruga (2021), os quais sugerem o Csol como um dos indicadores mais sensível das alterações associadas à transformação da matéria orgânica aplicada ao solo.
Por sua vez, no caso da constante cinética, apesar dos resultados significativos observados com o Csol (Quadro 2), a Len apresenta valores mais consistentes explicando, neste caso, cerca de aproximadamente 97% da variação dos valores estimados para o kC nos resíduos vegetais estudados (Figura 3).
CONCLUSÕES
De acordo com os resultados obtidos, podemos concluir que a qualidade química inicial dos resíduos vegetais estudados é um importante fator modelador dos processos de decomposição associados, podendo ser usado para estimar quer a intensidade como dinâmica dos processos associados à fração de C potencialmente mineralizável. As frações solúveis, como o Csol, e recalcitrantes, como o teor de Len, foram, entre os parâmetros estudados, os que se revelam mais capazes e sensíveis nas respetivas estimativas.
Financiamento: Este trabalho foi financiado no âmbito do projeto SoilRec4+Health - Soil recover for a healthy food and quality of life (NORTE-01-0145-FEDER000083).