1. Introdução
Os termos hospitalidade e hospitabilidade têm sido utilizados para descrever as relações de troca entre anfitrião e hóspede nos mais diversos domínios culturais, privados e comerciais (Lashley, 2015). A compreensão desses termos não se limita apenas às trocas entre aquele que recebe e aquele que é recebido, mas abarca todos os encontros habituais do ser humano. Nesse sentido, a hospitalidade seria uma característica universal na vida do ser humano, enquanto a hospitabilidade indicaria a disposição do ser humano de ser hospitaleiro sem esperar algo em troca de suas ações (Lashley, 2015; Lashley, Lynch & Morrison, 2007). Particularmente, no âmbito do ensino superior, é por meio das relações estabelecidas pelas vias da hospitabilidade que os estudantes poderão vivenciar e, possivelmente, transformarem-se em profissionais mais humanos (Sogayar, 2020) e capazes de aceitar o desafio de serem indutores de humanidade (Carvalho, 2012).
O estudo da hospitalidade, aplicada ao contexto académico, tem sido um tema pouco discutido no âmbito da gestão universitária, cujos estudos se encontram em estado embrionário e o seu próprio conceito apresenta características distintas de acordo com estudiosos como Spolon (2015) e Spolon et al. (2015). Entretanto, verifica-se que a hospitalidade aplicada à educação tem apresentado discussões mais sólidas por meio das lentes da ética e da filosofia (Baptista, 2005, 2008; Choo, 2016; Ruitenberg, 2011, 2014) e encontra algum destaque dentro do contexto da educação cristã (Anderson, 2011; Lane, Kinnison & Ellard, 2019). Porém, o que se destaca sobremaneira na literatura sobre o tema é a ausência de estudos sobre aspetos pedagógicos na relação professor-estudante e dos efeitos da hospitalidade.
No confronto com os principais desafios do ensino superior e com as proposições da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) para a educação no novo milênio, verifica-se a relevância da discussão de uma abordagem pedagógica voltada para a ação social, onde os indivíduos sejam protagonistas de mudanças na busca do reconhecimento da dignidade humana, da empatia e do ativismo. Do aclamado relatório de Delors (1996) da Organização das Nações Unidas (ONU), destaca-se a importância das relações pessoais para a solidificação de uma educação que traga maior criticidade ao educando, sendo este capaz de cultivar qualidades humanas que correspondem à capacidade de estabelecer relações estáveis e eficazes entre as pessoas. O contexto do “aprender a viver” com os outros é destacado como um dos maiores desafios aos educadores, pois está atrelado ao campo dos valores e atitudes dos sujeitos.
A inclusão da hospitalidade no ensino superior não é um ideal fácil de ser atingido, por não se restringir à prática num corpo de professores (Spolon et al., 2015; Phipps & Barnett, 2007), mas sim, permear toda a cultura organizacional que reflita tal abordagem. Nesse processo, importa considerar de que forma a hospitalidade aplicada no contexto académico servirá à prosperidade da humanidade face a todas as ameaças e problemas do mundo contemporâneo. As práticas de hospitalidade se apresentam como um desafio no sentido de abrir caminhos de conhecimento e de ação, especialmente relevantes para a cultura universitária. Segundo Spolon et al. (2015), o papel regulador das dinâmicas sociais, iluminadas pelo sentido da dádiva que advém das experiências de alteridade (perceber o outro como indivíduo único e subjetivo), é desempenhado pela hospitalidade. Nesse sentido, o caminho aponta para uma pedagogia da hospitalidade (Melo, 2014) que, efetivamente, possa desenvolver uma nova cultura académica no âmbito da gestão, do aprimoramento pedagógico e da criação de redes de pesquisa, de entre outras variáveis da hospitalidade no contexto académico (Spolon, 2015).
Diante destas preocupações, desenvolveu-se esta pesquisa descri tiva com o objetivo investigar a hospitalidade altruísta do professor a partir da perceção de estudantes de instituições de ensino superior no Brasil. Como estratégia metodológica, utilizou-se a escala quantitativa de hospitabilidade de Blain e Lashley (2014), adaptada e testada por Sogayar, Rosolino e Santos (2018) para as perceções de hospitalidade nas relações professor-estudante, a Modelagem de Equações Estruturais (SEM) e depoimentos dos estudantes sobre as habilidades dos professores indicativas da sua hospitalidade altruísta.
Buscou-se com a estratégia metodológica adotada na pesquisa, va lidar o modelo teórico composto pelos construtos da hospitalidade altruísta - Estudante Primeiro, Estudante Especial e Estudante Feliz - e as inter-relações entre as suas variáveis. Procurou-se evidências de características que retratam a hospitabilidade do professor na perceção dos estudantes da amostra, verificando se há pertinência em fomentar mais estudos acerca da hospitalidade altruísta no contexto académico em direção à adoção de uma pedagogia da hospitalidade no ensino superior.
Este artigo inicia-se com considerações sobre hospitalidade no contexto académico, pedagogia da hospitalidade e hospitalidade altruísta como os três pilares do enquadramento teórico. Em seguida, discorre sobre a metodologia em suas etapas e procedimentos, com destaque para a escala utilizada, as hipóteses levantadas e o modelo teórico proposto. Em continuidade, descreve e analisa os resultados alcançados, desde a caracterização da amostra até a validação do modelo e o teste das hipóteses. Por fim, destaca os principais resultados da pesquisa, ao lado de suas contribuições teóricas, limitações e recomendações para estudos futuros.
2. Enquadramento teórico
2.1. Hospitalidade no contexto académico
De acordo com Phipps e Barnett (2007), a hospitalidade aplicada ao contexto académico pode ser classificada em três modalidades a saber. A primeira é a celebratória de uma reflexão inicial, onde se questiona o receber académico e outros aspetos referentes a diversos papéis do convívio académico, tais como: quem deve ser honrado em cerimónias, onde e por quais motivos; quais as formas festivas de hospitalidade que devem estar inseridas nas viagens académicas (congressos, conferências); quem e o que deve ser recebido de braços abertos; qual o idioma a ser utilizado. Na segunda, questiona-se a comunicação, em que assuntos como tradução, papel dos tradutores, conceções de hospitalidade académica, formas de conversação emergem para a reflexão. Na terceira, questiona-se a crítica dentro do contexto da hospitalidade referente à quebra de tabus ao “estranho no ninho”, à crítica de novas possibilidades, à identificação de limites e quem os impõe, entre outros aspetos reveladores das preocupações de académicos relacionadas aos espaços e às práticas hospitaleiras.
Outras formas da hospitalidade no contexto académico podem ocorrer pelas vias da epistemologia, no acolhimento das ideias do outro, ou pelas fronteiras que impedirão a circulação dessas ideias frente a barreiras geográficas, linguísticas, políticas, pessoais e disciplinares a serem superadas (Kuokkanen, 2008; Sogayar, 2020). No âmbito epistemológico, uma crítica severa feita por Kuokkanen (2008) é sobre a ignorância epistémica praticada pela própria academia, com práticas e discursos que propiciam a exclusão contínua de grupos não pertencentes às tradições e epistemas ocidentais. Num apelo de funcionalidade para o termo, Phipps e Barnett (2007) citam a hospitalidade epistémica e a hospitalidade linguística em razão da perda de muitas relações por dificuldades idiomáticas ou mesmo em face a tradução de termos e ideias que não adequadas ou não inseridas numa comunidade científica.
Sobre a interação entre pares na pesquisa e o exercício da hospita lidade no contexto académico, Spolon et al. (2015) apresentam três experiências sobre a importância da troca e da convivialidade para fomentar pesquisas e conectar pesquisadores centrais ao tema da hospitalidade. Os relatos apresentam trocas pontuais entre pesquisadores que estreitaram seus laços de amizade e potencializaram a prática da pesquisa interinstituci onal, e propiciaram diversas reflexões sobre a hospitalidade académica. Para esses autores, há várias possibilidades a serem exploradas para o desenvolvimento da hospitalidade neste contexto, a partir de maior colaboração, compromisso e respeito entre professores, pesquisadores e estudantes.
Considera-se que o estudo da hospitalidade no contexto académi co é amplo, com desdobramentos em diversas linhas de ação. No entanto, a maioria dos autores, ao discorrer sobre o assunto, não aborda ou faz referência aos processos de ensino e aprendizagem ou indicam como deverá ser a formação de um profissional preparado para ser e viver dentro de uma ética da hospitalidade. Impõe-se, então, compreender os desdobramentos da hospitalidade no campo pedagógico, ou seja, da pedagogia da hospitalidade.
2.2. Pedagogia da hospitalidade
A pedagogia da hospitalidade é permeada pelo encontro do eu com o outro e nunca de forma solitária, mas sim, solidária (Melo, 2014). Neste contexto, os sujeitos devem estar abertos, desinteressados, sem uma relação de caráter utilitarista, a fim de que a assimetria esteja presente na relação. Assim, não é necessário falar da relação de iguais e, sim, de pessoas distintas, que pensam de formas diferentes e não simétricas. A pedagogia da hospitalidade é construída com o embasamento filosófico de Levinas (1997), para quem a experiência da hospitalidade acontece no momento em que um sujeito se cala para perceber o outro que caminha junto, que está ao seu lado, não como invasor, mas como participante de um processo assimétrico, que nada espera em troca.
Freire (2015), patrono da educação brasileira, em análise sobre as relações entre estudantes e professores, destaca que a discussão sobre o processo de conhecimento, ensino e aprendizagem é significante, porém, nestas relações, há outras questões a serem consideradas pelos professores como autoridade, liberdade, as suas qualidades, o reconhecimento das suas imperfeições e o respeito à cultura dos estudantes. Esse autor acrescenta a importância do cumprimento de uma proposta de encontros que permitam a abertura para expressão da liberdade, curiosidade, questionamentos, discordâncias e críticas numa relação ética, além da observação, reflexão e registo da perceção dos estudantes sobre as aulas e do relacionamento com os professores de modo a garantir maior engajamento e aprendizagem em si a partir deste exercício.
Depreende-se que a pedagogia da hospitalidade está fortemente pautada nas relações de abertura promovidas pela alteridade e, sendo assim, importa compreender como a alteridade se manifesta e como pode ser manifestada, provocada, “ensinada” e percebida no contexto das práticas pedagógicas e académicas. Por isso, a reflexão sobre o papel do articulador da aprendizagem, neste caso, o professor com base na hospitalidade, pois é a partir do seu ‘convite’ e do seu exemplo, que os estudantes poderão inspirar-se para esta articulação (Santos et al., 2015). Mas quem é este professor que realiza este convite? Quais as habilidades que ele tem e o que permeia a sua atitude e comportamento para que o estudante perceba este convite? Uma resposta a estas questões pode emergir da hospitalidade altruísta do professor, termo indicativo da propriedade do professor em vivenciar na sua prática cotidiana a alteridade.
2.3. Hospitalidade altruísta
O conceito de hospitalidade altruísta caracteriza-se como “a oferta da hospitabilidade como um ato de generosidade e de benevolência, bem como uma disposição de dar prazer aos outros” (Lashley, 2015, p. 84). Este conceito está mais conectado com a vocação ou inclinação das pessoas de serem verdadeiramente hospitaleiras sem a expectativa de ganhos pessoais ou de retribuição (Lashley, 2015; Lashley & Morrison, 2000; Lashley, Lynch, & Morrison, 2007), apesar de haver uma sensação de contentamento para aquele que pratica esta hospitabilidade (Derrida, 2002; Telfer, 2000). Nesse sentido, indica a propensão inata de algumas pessoas para serem mais acolhedoras que outras (Telfer, 2000) e pode variar de pessoa a pessoa, em diferentes contextos culturais, momentos e cenas de hospitalidade. Percebe-se a sua manifestação em cenas cotidianas, onde as demarcações anfitrião-hóspede não ficam totalmente delimitadas, como é o caso da relação educacional, diretamente ligada ao comportamento de alteridade e altruísmo de cada indivíduo.
O termo hospitalidade altruísta do professor foi empregado no estudo de Sogayar et al. (2018) ao realizarem uma adaptação da escala de Blain e Lashley (2014), que mensura a hospitabilidade de um sujeito, aplicado ao setor de serviços1. A adaptação desta escala foi feita ao contexto educacional com destaque para a alteridade à luz da perceção do estudante em relação à hospitalidade praticada pelo professor.
O professor é o anfitrião e deve pensar em estratégias de ultrapassagem de barreiras ou de abolição de espaços e penetração no universo do estudante. Entretanto, esse contato professor-estudante, por vezes, assume diferentes formatos, onde, em alguns momentos, o estudante é o anfitrião de um universo no qual o professor não é parte e deve comportar-se como tal. Percebe-se que a acolhida entre eles pode, por vezes, ser ambígua, ora num movimento de igualização entre anfitrião e hóspede, ora num movimento de proteção. No ensino superior, essa situação é facilmente observada em salas de aula, tanto pelo professor quanto pelo estudante. O professor protege a sua vida pessoal e o estudante, muitas vezes, por conta do seu processo de amadurecimento, protege-se escondendo a sua verdadeira personalidade.
O professor, como anfitrião principal, é quem promove a solidariedade e acolhida do estudante num espaço físico geográfico, mas também psíquico da dinâmica de interação professor-estudante e estudante-estudante (Grassi, 2011). Assim, a hospitalidade altruísta do professor é uma característica fundamental para que este realize um convite de humanidade aos seus estudantes. Entretanto, esta característica torna-se ainda mais relevante nos cursos de turismo, onde se nota a noção de corpo coletivo acolhedor proposto por Santos e Perazzolo (2012), por meio do qual o acolhimento atua como um fenómeno humano e relacional, conectado às trocas e serviços, ao conhecimento e à cultura e aos organismos e gestão da atividade.
Pela relação com o outro, pode-se significar o território, apropriando-se dele ou não, sendo acolhido por ele ou não. Não pelo território em si, mas sim pelas relações que se estabelecem nesse processo de acordo com Santos et al. (2015). Para essas autoras, o acolhimento é um fenómeno que se instala no espaço que foi concebido entre os sujeitos que desejam acolher e serem acolhidos, operados por meio da perceção mútua. Assim, no contexto de uma atividade turística, a prática de acolhimento deve permear todos os setores envolvidos, inclusive na Educação, como a característica fundamental para os formadores e futuros profissionais da área.
3. Metodologia
Este estudo caracterizou-se como uma investigação promovida por procedimentos quantitativo-descritivos, a fim de garantir aos resultados maior credibilidade e legitimidade por meio dessa combinação (Flick, 2004). Objetivou-se investigar a hospitalidade altruísta do professor pela perceção de estudantes de instituições públicas e privadas de ensino superior no Brasil. Partiu-se da escala de Blain e Lashley (2014), construída com base no entendimento que a motivação em ser hospitaleiro é mais importante que o comportamento em si, baseando-se no continuum de hospitabilidade de Telfer (2000) e na ideia de que o comportamento hospitaleiro pode até ser ensinado, mas a motivação é intrínseca. Consultou-se o estudo de Sogayar et al. (2018) que adaptaram essa escala num estudo piloto, assim considerado em razão da amostra pouco expressiva, mas que possibilitou a identificação de três construtos da hospitalidade altruísta do professor a saber: a) o construto 1 (Estudante Primeiro), considerou as variáveis de hospitabilidade em que o professor coloca o estudante em primeiro lugar nos processos de ensino e aprendizagem; b) o construto 2 (Estudante Especial), indicou as ações dos professores que fazem o estudante se sentir especial; c) o construto 3 (Estudante Feliz), considerou as ações dos professores que promovem o bem-estar e a felicidade do estudante em sala de aula. Considerando a escala utilizada no estudo de Sogayar et al. (2018), foram feitos ajustes à abordagem de algumas variáveis após cinco estudantes universitários validarem a compreensão das suas sentenças, o que resultou na escala de hospitalidade altruísta do professor adotada nesta pesquisa (Figura 1).
Com base na revisão da literatura, foram retomadas as relações estabelecidas entre os construtos e as hipóteses elaboradas no estudo de Sogayar et al. (2018), a saber:
H1: A dimensão Estudante Primeiro tem relação positiva direta com a dimensão Estudante Feliz; ou seja, o professor apresenta características altruístas e de abertura ao outro, valorizando o es tudante como indivíduo (o outro), respeitando sua alteridade para que este se sinta feliz;
H2: A dimensão Estudante Especial tem relação positiva direta com a dimensão Estudante Feliz; ou seja, o professor prioriza o es tudante nas práticas pedagógicas, percebendo necessidades específicas e heterogéneas das turmas e promovendo o bem-estar do estudante.
H3: A dimensão Estudante Primeiro tem relação positiva direta com a dimensão Estudante Especial; ou seja, o professor parte da sua característica altruísta para proporcionar o envolvimento do estudante nas práticas pedagógicas.
Na Figura 2, vê-se o modelo teórico adotado neste estudo, sugeri do por Sogayar et al. (2018) com base nos construtos da hospitalidade altruísta de Blain e Lashley (2014), dos quais Estudante Primeiro e Estudante Especial correspondem a variáveis dependentes da variável independente Estudante Feliz. Para validar esse modelo, aplicou-se a análise fatorial confirmatória, que corresponde a um modo de identificar os aspetos comuns entre variáveis que se encontram interrelacionadas (Hair et al., 2010).
A partir de um formulário eletrónico de pesquisa elaborado no Google Forms, distribuiu-se o link de acesso ao questionário por e-mail à rede de contatos dos autores (ex-alunos e professores distribuidores desse instrumento) residentes em diversas cidades do Brasil. O instrumento continha as 13 proposições apresentadas na escala de hospitalidade altruísta do professor (Figura 1) com as opções de seleção a partir da escala Likert de 5 pontos (onde 1 = discordo totalmente, portanto, 5 = concordo totalmente) com tempo médio para resposta de cinco minutos, além de uma questão aberta para que os estudantes registassem as suas perceções acerca das habilidades hospitaleiras e das práticas de hospitalidade de seus professores na sala de aula. Definiu-se uma amostra por conveniência e não probabilística (Krzanowski, 2007; Malhotra, 2011), devido à não utilização dos protocolos comuns em estatística no caso da seleção prévia de respondentes (Fávero et al., 2009). Os dados foram recolhidos entre os meses de maio e junho de 2020.
Cohen (1977) explica que a averiguação do poder estatístico da amostra analisada examina se a hipótese nula pode ser rechaçada ou compreendida como falsa. Assim, observaram-se as variáveis a seguir: tamanho da amostra (N), o critério de significância (α), tamanho do efeito da população (ES) e o poder estatístico baseados nos critérios aplicados por Erdfelder, Faul e Buchner (1996), Faul et al. (2009), Faul et al. (2007) e Stefanini, Alves e Marques (2018). O software G*Power3 foi usado para guiar a análise a priori, depreendendo que o tamanho do efeito seria de 0,15 (Cohen, 1977), o valor de α igual a 0,05, o poder estatístico a 0,80 e os preditores a 13. Dessa forma, representou-se o bloco único de variáveis existentes na pesquisa, indicando que a amostra de 199 estudantes respondeu aos requisitos mínimos, uma vez que o tamanho ideal da amostra foi superado (N≥131). Na sequência, realizou-se a análise post hoc para verificar o poder estatístico da amostra de acordo com os seguintes índices: ES = 0,15, valor de α = 0,05, N = 199 e preditores = 13. Atingiu-se o valor de 0,9623, sendo superior ao mínimo recomendado de 0,80 (Cohen, 1977; Erdfelder et al., 1996; Faul et al., 2009; Hair et al., 2010).
Visando testar o modelo teórico proposto numa amostra com po der estatístico adequado, os dados foram analisados por meio da Modelagem de Equações Estruturais (SEM) que possibilita tanto retratar diversas relações de maneira simultânea e com a determinação da direção causal (Zwicker, Souza & Bido, 2008), quanto analisar as correlações existentes entre construtos (Hair et al., 2010). Esta escolha foi corroborada por testes preliminares realizados para o emprego da técnica regressiva (Kline, 2005) como verificação da ausência de multi-colinearidade com o cálculo do Fator de Inflação da Variância (VIF), com índices menores do que 10, apontando para a inexistência de relações lineares entre as variáveis de cunho independente (Hair et al., 2010; Levin & Fox, 2006).
A condução da SEM ocorreu a partir do software SmartPLS 3 (v. 3.3.2) (Ringle, Wende & Becker, 2015) em duas etapas, segundo as orientações de Anderson e Gerbing (1988). A primeira etapa avaliou o modelo de mensuração, ou seja, a contribuição de cada item presente na escala (análise fatorial confirmatória) e, a segunda etapa, investigou o modelo estrutural, que estuda o caráter preditivo do modelo e as relações entre os construtos de modo a suportar a teoria preconizada. Conforme diversos pesquisadores sugerem, a avaliação do ajuste do modelo é conduzida por meio de vários indicadores (Bentler, 1990; Bentler & Bonett, 1980; Fornell & Larcker, 1981), contudo, não há unanimidade acerca destes índices ou, até mesmo, uma única diretriz a seguir. Dessa maneira, o ajuste do modelo teórico pode ser realizado com a aplicação de diversas medidas (Bagozzi & Yi, 1988; Hair et al., 2010), conforme a apresentação e discussão dos resultados.
4. Resultados e discussão
A amostra é formada por estudantes de instituições localizadas em três das cinco regiões do Brasil, mais expressivamente da região Sudeste (79,40%), seguida pela região Nordeste (17,09%) e menos acentuadamente da região Norte (3,52%). Percebe-se uma forte concentração de respondentes do estado de São Paulo (74,37%); com igual incidência (7,04%) dos estados do Piauí e do Rio Grande do Norte; e, em menor ocorrência, de estudantes dos estados do Rio de Janeiro (5,03%), Bahia (3,02%), Amazonas (2,51%) e Acre (1,01%), segundo a Figura 3.
Do total de 199 estudantes universitários da amostra, a maioria é de mulheres cisgénero (72,86%), na faixa etária entre 17 e 20 anos (47,24%), maioritariamente de instituições privadas (70,35%), sendo metade matriculada em turismo (50,75%) nos quatro primeiros semestres dos seus cursos (64,82%), conforme os dados da Tabela 1.
De modo a validar o modelo sugerido a partir da SEM, utilizou-se o Alfa de Cronbach (α), a Confiabilidade Composta (CC) e a Variância Média Extraída (AVE) ilustrados na Tabela 2, com o emprego do SmartPLS 3 (v. 3.3.2) (Ringle et al., 2015).
Hair et al. (2010) recomendam que a Variância Média Extraída (AVE) deve ser maior ou igual a 0,50, sugerindo que os construtos examinados estão adequados. Já os índices que exprimem a Confiabilidade Composta (CC) do modelo estão acima de 0,70, designando a confiabilidade generalizada. Para confirmar quão consistente a escala é internamente, aceita-se como limite mínimo resultados de Alpha de Cronbach (α) valores de 0,60 a 0,70 (Hair et al., 2010), sendo assim, os valores desse estudo podem ser considerados aceitáveis, uma vez que se encontram acima de 0,70 (Tabela 2).
Na Tabela 3, as raízes quadradas das variáveis comparadas as ou tras variáveis latentes demonstram que, ao serem superiores quando correlacionadas, comprovam a validade discriminante do modelo, conforme critério de Fornell e Larcker (1981), ratificado pela verificação das cargas cruzadas, que se mostraram maiores comparadas às cargas dos outros construtos (Hair et al., 2014). Essa análise permitiu afirmar que o modelo proposto é válido e confiável.
Na Figura 4, apresenta-se o modelo final proposto de relação en tre os construtos de hospitalidade altruísta levando-se em conta a perceção de estudantes de instituições de ensino superior a partir dos coeficientes de correlação ligados às variáveis dependentes (Estudante Feliz e Estudante Especial) em relação à variável latente (Estudante Primeiro). Os coeficientes de correlação padronizados permitem avaliar quanto um construto impacta uma variável latente ao ser acrescida de uma unidade. A variável Estudante Feliz possui um coeficiente de correlação de 0,343 com a variável Estudante Primeiro e um coeficiente de correlação de 0,496 com o Estudante Especial, significando a maior contribuição de Estudante Feliz vir de Estudante Especial. O maior coeficiente de correlação encontrado dá-se entre Estudante Especial, com índice de 0,781 e Estudante Primeiro.
O coeficiente de determinação (R2) das variáveis observadas mede a percentagem de variação de certa variável observada explicada por certo fator latente (Figura 4). Observa-se que os construtos Estudante Primeiro e Estudante Especial explicam 62,9% do construto Estudante Feliz, ou seja, este é o percentual que se refere aos elementos advindos destes construtos que respondem à felicidade dos estudantes. Por sua vez, o construto Estudante Primeiro explica 61% do construto Estudante Especial, que esclarece o sentimento dos estudantes em sentirem-se especiais quando são bem-recebidos e priorizados pelos professores. No que diz respeito às pesquisas na área das Ciências Sociais, esses indicadores são considerados relevantes (Oliveira et al., 2014).
O software SmartPLS 3 (v. 3.3.2) (Ringle et al., 2015) permite tes tar o método Bootstrapping - amostragem aleatória, do qual efetua simulações a partir da parametrização estabelecida pelos autores, neste caso 1000, para analisar o teste da distribuição t de Student que varia de acordo com a quantidade de respostas dadas. Neste estudo, com a amostra de 199 estudantes, a medida de distribuição t de Student é 1,645, levando-se em conta um intervalo de confiança de 95% e significância de 0,05.
Com o teste do procedimento Blindfolding foi possível obter ou tros indicadores para a verificação da qualidade de ajuste do modelo, sendo eles a Relevância Preditiva do Modelo (Q2) e o Tamanho do Efeito (f2). Analisa-se o primeiro indicador (Q2) pela observação da redundância geral do modelo ao observar os valores de cada variável, permitindo avaliar a acurácia ou quão próximo da realidade o modelo se mostra - valores acima de zero são aceitáveis, já o modelo perfeito seria representado por Q2 = 1. Verifica-se o segundo (f2) pela análise das comunalidades, possibilitando sinalizar quão útil cada construto é para o ajuste do modelo - valores entre 0,02 e 0,15 indicam pequeno efeito, entre 0,15 e 0,35 médio efeito, e por fim, valores acima de 0,35 demonstram grande efeito (Hair et al., 2014; Ringle et al., 2014). Segundo a Tabela 4, os índices de relevância preditiva encontram-se acima de zero, enquanto os valores do tamanho do efeito estão acima de 0,35, sinalizando a acurácia e a relevância dos construtos para o ajuste global do modelo, respetivamente.
Arsham (1988) propõe a classificação para analisar os efeitos hi potético e observado da seguinte forma: evidência muito forte (p<0,01), evidência moderada (0,01≤p<0,05) e pouca/ nenhuma evidência real (0,10≤p). A partir desta classificação, as hipóteses apresentam efeito hipotético positivo e efeito observado forte, corroborando o estudo piloto anterior de Sogayar et al. (2018), conforme apresentado na Tabela 5.
Ainda que se conte com as evidências numéricas, considera-se es sencial conectá-las à fundamentação teórica para dar tangibilidade às hipóteses deste estudo a serem analisadas na sequência. A variável Estudante Primeiro possui relação positiva e significativa com a variável Estudante Feliz, tornando válida a H1 (o professor apresenta características altruístas e de abertura ao outro, valorizando o estudante como indivíduo, respeitando sua alteridade para que este se sinta feliz). Nota-se a relação entre a perceção dos estudantes em terem a sua aprendizagem, bem-estar, acolhimento e valorização de sua individualidade priorizados, explicando a felicidade e satisfação com a habilidade hospitaleira de seus professores, como na pesquisa sobre o encontro ético, acolhedor e de assimilação ao outro (Melo, 2014; Miranda, 2016).
A mesma relação positiva e significativa observa-se entre as vari áveis Estudante Especial e Estudante Feliz, demonstrando haver indícios que suportam a H2 (o professor prioriza o estudante nas práticas pedagógicas, percebendo necessidades específicas e heterogéneas dos grupos e promovendo o bem-estar do estudante). Os estudantes sentem-se especiais com reflexo na sua felicidade, quando percebem a sua inclusão nas práticas pedagógicas, o interesse genuíno dos professores pelas suas necessidades específicas e pelo seu desenvolvimento por meio da hospitalidade empregada em contexto académico (Kuokkanen, 2008; Phipps & Barnett, 2007), o papel de bons anfitriões exercido pelos professores (Grassi, 2011) e o trato com deferência à sua identidade cultural (Freire, 2015).
Igualmente, verifica-se uma relação positiva e significativa da va riável Estudante Primeiro com a variável Estudante Especial, confirmando a hipótese H3 (o professor parte da sua característica altruísta para proporcionar o envolvimento do estudante nas práticas pedagógicas). Explicita-se o efeito favorável do emprego do acolhimento com a preocupação do professor em bem-receber os estudantes, tanto físico-geograficamente como psiquicamente (Grassi, 2011), e em priorizar a satisfação deles em aprender por meio do engajamento e reflexão (Freire, 2015). Contudo, vai além da aplicação das habilidades técnicas do professor (Freire, 2015; Melo, 2014; Baptista, 2005), com vista a apoiar na formação dos estudantes para que exerçam uma profissão, mas, acima de tudo, para que atuem profissionalmente de modo mais humanizado (Sogayar, 2020) e estejam preparados para promover a humanidade (Carvalho, 2012).
No exame das hipóteses apresentado anteriormente, identifica-se a existência de evidências que as suportam (Tabela 5). Entretanto, sabe-se que alguns aspetos não são percetíveis unicamente pelos resultados quantitativos (Stefanini et al., 2018). Desse modo, com base nos itens com maior valor de contribuição para explicar os construtos Estudante Primeiro (PRIOR-02=0,856), Estudante Especial (ESPEC-04=0,824) e Estudante Feliz (FELIZ-05=0,795) da escala utilizada (Figura 1), apresentam-se algumas respostas dadas pelos estudantes à questão aberta sobre como eles percebem as características altruístas e os atos de hospitabilidade de seus professores na sala de aula (Figura 5).
Conforme demonstrado nesta secção, o modelo proposto é consi derado válido e confiável; os construtos Estudante Primeiro e Estudante Especial são responsáveis pela explicação 62,9% do construto Estudante Feliz e o construto Estudante Primeiro explica o percentual de 61% do construto Estudante Especial; as hipóteses apresentam efeito hipotético positivo e efeito observado forte.
Apesar da evidência numérica e da exemplificação, a partir dos comentários dos estudantes, do oferecimento da hospitalidade de modo generoso e benevolente, com o intuito de satisfazer as necessidades de outrem (Lashley, 2015), mais especificamente neste estudo do papel de anfitrião e da habilidade altruísta do professor, constata-se haver outras características ou atitudes dos professores a serem investigados que possam ser contribuintes para que estudantes se sintam felizes e especiais nesta relação estudante-professor e no contexto académico como um todo.
5. Conclusões
Esta pesquisa enfocou a hospitalidade altruísta no ensino superior com base na hospitabilidade do professor percebida por estudantes de instituições de ensino superior no Brasil. Apesar de se tratar de um tema novo ainda pouco presente na literatura especializada, os fundamentos sobre hospitalidade no contexto académico e pedagogia da hospitalidade deram o suporte teórico necessário para introduzir a hospitalidade altruísta relacionada ao conceito de hospitabilidade.
Com a utilização da Modelagem de Equações Estruturais (SEM) verificou-se a relação entre os construtos e procedeu-se ao teste das hipóteses, validando o modelo adotado. Apesar da maior quantidade de estudantes do curso de turismo na amostra, esta suportou as análises e mostrou um modelo válido e confiável. Apesar dos resultados não poderem ser generalizados, pois referem-se a uma amostra particular, ratificaram os resultados de pesquisas sobre o tema com destaque para a perceção do estudante em relação à hospitalidade altruísta oriunda das ações hospitaleiras praticadas pelo professor.
Segundo o exame das hipóteses, verificou-se relação positiva e significativa entre os construtos propostos. Notou-se o efeito das características altruístas do professor e de abertura ao outro na explicação da felicidade dos estudantes, ao terem a sua aprendizagem e bem-estar priorizados, ao mesmo tempo em que são acolhidos e têm a sua individualidade valorizada pelo professor. Há indícios de que a priorização dos estudantes nas práticas pedagógicas adotadas pelo professor, ao perceber necessidades específicas e heterogeneidade da turma, reflete-se na felicidade dos estudantes. Por fim, observou-se, a partir da perceção dos estudantes, a influência da hospitalidade altruísta do professor ao recebê-los bem e ao priorizá-los no processo de ensino-aprendizagem por meio das suas escolhas pedagógicas.
Este estudo revela que a perceção da hospitalidade está ligada a características relevantes para o profissional em formação e deve ser colocada em evidência por meio das práticas pedagógicas do professor. Além de empregar as suas habilidades técnicas, o professor deve agir imbuído da hospitalidade no seu estado mais genuíno, para que os seus estudantes não somente atuem profissionalmente com mais humanidade, mas também sejam seus promotores. A hospitabilidade do professor junto aos seus estudantes, em especial na área de turismo, reforça as teorias sobre a atividade turística como um corpo coletivo acolhedor, onde o acolhimento atua como um fenómeno humano e relacional, conectado às trocas e serviços, ao conhecimento e à cultura, aos organismos e à gestão.
Denota-se a contribuição teórica desta pesquisa para a literatura sobre hospitalidade e hospitabilidade, além da emergência da hospitalidade altruísta na relação professor-estudante. Por outro lado, constata-se a necessidade de estudos subsequentes que avaliem outras características ou atitudes do professor que possam contribuir para que estudantes se sintam felizes e especiais no contexto académico como um todo.
No entanto, levantam-se algumas limitações da pesquisa. A pri meira refere-se à utilização de uma amostra por conveniência, sendo pertinente a replicação do estudo de modo a corroborar as hipóteses, refinar os construtos mensurados e validar os resultados a serem obtidos. Outra limitação refere-se ao aspeto cultural em que se insere, uma vez que a hospitalidade tem interferência direta dos valores, costumes e tradições de uma determinada região, país, ou até mesmo substrato socioeconómico.
Recomenda-se no futuro a aplicação da pesquisa em outros países lusófonos, mediante procedimentos qualitativos e quantitativos, emprego de entrevistas em profundidade, grupos focais e Análise Multigrupo (MGA) em Modelagem de Equações Estruturais (SEM), que permitam verificar as diferenças a partir de agrupamentos. Ademais, sugere-se a análise das conexões entre hospitalidade, alteridade, hostilidade e demais constituintes das relações professor-estudante e estudante-estudante.
Outrossim, espera-se que este estudo, sob a ótica académica, te nha contribuído com insumos para investigações futuras do tema, permitindo ampliar a discussão sobre como as habilidades hospitaleiras de professores podem impactar o sucesso estudantil, assim como o ambiente académico acolhedor pode promover o bem-estar, favorecer a aprendizagem e formar professores e estudantes mais humanizados.