1. INTRODUÇÃO
A gaguez é uma perturbação que pode afetar muitos aspetos da vida de uma pessoa (Erickson & Block, 2013). Esta perturbação é caracterizada pela produção de determinados tipos de disfluências atípicas no discurso, tais como: repetições, prolongamentos e bloqueios, também denominados como comportamentos primários de gaguez. No entanto, a gaguez abrange mais aspetos do que os que são observados, pelo que deverá ser interpretada como uma perturbação multidimensional.
No século XX, a gaguez começou a ser considerada como uma perturbação psicogénica, logo, as abordagens psicanalíticas e a terapia comportamental foram aplicadas a fim de resolver possíveis conflitos neuróticos (Büchel & Sommer, 2004). No século XXI, compreendeu-se a importância dos aspetos psicossociais e do temperamento nas crianças que gaguejam. No estudo elaborado por Anderson et al. (2003), os resultados indicam diferenças no perfil de temperamento entre crianças que gaguejam e crianças que não gaguejam. Os autores sugerem que essas diferenças podem contribuir para a exacerbação, assim como para a manutenção, da gaguez.
Existem várias evidências que suportam o facto de que existem diferenças neuroanatómicas entre pessoas que gaguejam e pessoas que não gaguejam (Beal et al., 2013). No que concerne ao surgimento da gaguez do desenvolvimento, esta ocorre tipicamente entre os 2 e os 4 anos de idade, coincidindo com um período de rápido desenvolvimento nos domínios linguístico (fonologia, morfossintaxe, semântica e pragmática), motor e cognitivo (Choo et al., 2016). Apesar de a etiologia da gaguez permanecer desconhecida, tem sido proposto que existem diferenças neuroanatómicas ou neurofisiológicas pré-determinadas (Beal et al., 2013). De acordo com os mesmos autores, estas diferenças aumentam a suscetibilidade de uma pessoa à perturbação, dada a sua componente genética e o facto de esta perturbação ter maioritariamente início no período de desenvolvimento da fala.
Etchell et al. (2018) aferem que a maior parte da investigação em neuroimagem tem sido realizada em adultos que gaguejam, sendo que, até à data, poucos estudos de neuroimagem consideraram na sua amostra crianças que gaguejam. Chang (2014) acrescenta a necessidade da realização de mais pesquisas e ensaios clínicos cuidadosos e prolongados. Na sua revisão da literatura, Etchell et al. (2018) referem que a existência de poucos estudos de neuroimagem direcionados para crianças se deve, provavelmente, às dificuldades práticas e considerações especiais que se devem ter em conta ao testar crianças. Tais dificuldades consistem no facto de as crianças precisarem de permanecer quietas por longos períodos de tempo, manter a atenção durante toda a tarefa e gerir a sua possível ansiedade em relação ao ambiente que está ao seu redor (Etchell et al., 2018). Apesar destas dificuldades, os autores salientam que é importante estudar as crianças que gaguejam, uma vez que os seus cérebros tiveram menos tempo para sofrer mudanças como consequência da sua gaguez comparativamente a adultos que gaguejam. A observação de diferenças na atividade cerebral em crianças que gaguejam é, por isso, mais provável de refletir mecanismos causais desta perturbação. Não obstante a escassez de estudos realizados com crianças, confirma-se a existência de alterações gerais na arquitetura estrutural e na organização funcional dos cérebros das crianças e adultos que gaguejam (Etchell et al., 2018).
Atualmente, conclui-se que a gaguez é o resultado de uma multiplicidade de fatores, nomeadamente fatores biológicos, considerando-se ainda a influência de fatores comportamentais, psicológicos, ambientais, motores e linguísticos (Ambrose, 2004; Guitar, 2019). Desta forma, Yaruss (2010) sugere que a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) fornece uma estrutura ideal para classificar as experiências de pessoas que gaguejam. Segundo o mesmo autor, a CIF descreve todos os componentes relevantes para a caracterização da pessoa que gagueja nas suas múltiplas dimensões. Refere-se, especificamente: o comprometimento de funções do corpo que se relaciona com a dificuldade de produção da fala, incluindo as disfluências observáveis e os momentos de gaguez que podem ser percebidos pelo falante e/ou pelos ouvintes; o comprometimento na estrutura do corpo, sendo que este se refere às diferenças neuroanatómicas subjacentes documentadas em pessoas que gaguejam; os fatores pessoais contextuais que se referem às reações afetivas, comportamentais e cognitivas dos falantes, tais como constrangimento, vergonha, tensão e baixa autoconfiança; os fatores contextuais ambientais que se referem às reações dos interlocutores, as quais incluem estereótipos, mitos acerca da natureza e tratamento da gaguez, e discriminação em relação à pessoa que gagueja. Por fim, a limitação de atividade e restrição de participação refere-se à dificuldade que as pessoas que gaguejam podem ter em realizar atividades diárias de comunicação, incluindo interação com os outros, falar no trabalho ou em outras situações. A componente de atividade e participação da CIF inclui, ainda, dificuldades em fazer o que desejam nas suas vidas, tal como atingir objetivos de vida, participar e envolver-se em atividades de carácter cívico, social e/ou religioso. Compreende-se, assim, através da interligação dos diferentes componentes da CIF, que a gaguez poderá trazer impactos para a vida da pessoa que gagueja, envolvendo não só alterações estruturais, mas também impacto na atividade e participação, bem como reações da pessoa e do meio que a envolve (Stein-Rubin & Fabus, 2012).
Segundo Guitar (2019), os sentimentos e as atitudes das pessoas que gaguejam resultam das diferentes características e experiências inerentes à sua gaguez. Para a maioria das pessoas que gaguejam, a experiência dos seus momentos de gaguez e as reações dos outros em relação a esses momentos têm um efeito evidente no seu comportamento (Klompas & Ross, 2004).
A análise de relatos pessoais e biográficos e pesquisas empíricas confirmam que as pessoas que gaguejam podem experienciar sentimentos de ansiedade e constrangimento, sentindo uma dificuldade na comunicação (Murphy et al., 2007). Mesmo em idade pré-escolar, muitas crianças que gaguejam poderão experienciar reações emocionais negativas acerca da sua gaguez, com potencial impacto na sua autoperceção como resultado das suas dificuldades comunicativas (Murphy et al., 2007). Os sentimentos e atitudes de adolescentes e adultos que gaguejam são, segundo Guitar (2019), alvo de transformação devido aos anos de condicionamento que a gaguez provoca, sendo que muitas vezes as pessoas sentem que os seus momentos de gaguez são imprevisíveis. Como Klompas e Ross (2004) referem, as pessoas que gaguejam poderão experienciar um impacto negativo devido à gaguez no desempenho escolar, na sua relação com alunos e professores, bem como ao nível das oportunidades laborais e do desempenho nas suas atividades profissionais. Assim, é possível aferir que a gaguez poderá ter um impacto muito significativo na qualidade de vida das pessoas que gaguejam.
As respostas das pessoas à sua própria gaguez são variadas, e muitas delas consideram a gaguez como uma parte importante da sua identidade. Porém, Guitar (2019) refere também ser possível que, ao atingir a idade adulta, uma pessoa que gagueja se sinta frustrada e definida pela sua gaguez, condicionando a perceção dos outros acerca de si. Deste modo, pode-se concluir que a perceção e as reações que os falantes apresentam em relação à sua gaguez influenciam esta perturbação.
Uma avaliação adequada da pessoa que gagueja permitirá ao terapeuta da fala a recolha de informações necessárias para um diagnóstico e, posteriormente, uma intervenção adaptada às características de cada pessoa (Guitar, 2019). A avaliação da pessoa que gagueja é fundamental, dado que permite aferir quais as áreas que se devem considerar de maior foco para delinear os objetivos terapêuticos (Blomgren et al., 2005). Segundo Yaruss (2010), a avaliação e a intervenção em gaguez têm-se focado, em menor grau, nas consequências que as pessoas que gaguejam experienciam, comparativamente ao estudo das características observáveis da gaguez. Contudo, os sentimentos e as atitudes das pessoas que gaguejam são de extrema relevância, sendo que as crianças que gaguejam em idade pré-escolar já poderão experienciar reações emocionais negativas acerca da sua gaguez, o que poderá influenciar a autoperceção enquanto comunicador (Murphy et al., 2007). Atualmente, em português europeu, para crianças em idade pré-escolar, existe um instrumento de avaliação para sentimentos e atitudes, o Scale of Children’s Atittudes (A-19), de Guitar e Grims (1977).
Para a maioria das pessoas que gaguejam, a experiência dos seus momentos de gaguez e as reações dos outros em relação a esses momentos têm influência no seu comportamento (Klompas & Ross, 2004). Deste modo, pessoas que gaguejam confirmaram que podem experienciar sentimentos de ansiedade e constrangimento, o que poderá dificultar o processo comunicativo (Murphy et al., 2007). Assim, devido ao impacto provocado na vida da pessoa que gagueja, é fundamental caracterizar os aspetos relacionados com as reações pessoais que não são diretamente observáveis (Iverach & Rapee, 2014).
Estudos indicam que crianças com apenas 3 anos podem ter consciência dos seus momentos de gaguez e dos momentos de gaguez dos outros (Ambrose & Yairi, 1994; Ezrati-Vinacour et al., 2001). Desta forma, a consciência que a criança apresenta acerca da sua comunicação poderá contribuir para o desenvolvimento de atitudes negativas. Refere-se, ainda, que os cuidadores poderão ter dificuldade em relatar com precisão as atitudes e sentimentos dos seus filhos em relação à gaguez (Groner et al., 2016).
O presente artigo reporta e discute os resultados do processo de tradução, adaptação e validação do conteúdo do instrumento de avaliação Preschooler Awareness of Stuttering Survey (PASS), de Abbiati et al. (2013), do inglês para o português europeu (PE). O Preschooler Awareness of Stuttering Survey permite a avaliação dos sentimentos e atitudes que a criança em idade pré-escolar apresenta em relação à sua gaguez.
2. METODOLOGIA
2.1. CONSIDERAÇÕES ÉTICAS
Os investigadores do presente trabalho solicitaram, por escrito, autorização ao autor do instrumento, Professor Barry Guitar, para a tradução e adaptação para português europeu do PASS. O Professor Barry Guitar respondeu positivamente, tendo enviado aos autores do trabalho os materiais que sustentam a aplicação do instrumento.
2.2. TIPO DE ESTUDO
Esta investigação enquadra-se numa metodologia qualitativa, descritiva e transversal (Fortin, 2009), seguindo-se os procedimentos de tradução, adaptação e validação de conteúdo de instrumentos (Beaton et al., 1998; Guillemin et al., 1993).
2.3. CARACTERIZAÇÃO DO INSTRUMENTO DE AVALIAÇÃO PASS
A presente investigação teve por base o instrumento de avaliação PASS (Abbiati et al., 2013). Este instrumento de avaliação é constituído por um vídeo, uma folha de registo composta pela “Classificação do Discurso de Fantoches por Crianças em Idade Pré-Escolar” e pela “Auto-Classificação do Discurso por Crianças em Idade Pré-Escolar”, e ainda uma prancha que contém a escala de avaliação por expressões faciais para a criança utilizar nas suas respostas. Através da aplicação deste instrumento, pretende-se aferir sentimentos e atitudes que a criança apresenta em relação à sua fala. Antes do registo das respostas da criança, é necessário proceder à visualização de um vídeo. Neste, é possível observar o diálogo entre dois fantoches: uma vaca e um porco. Este vídeo tem a duração de um minuto e 34 segundos e a vaca representa a personagem que gagueja. A folha de registo é constituída por duas páginas, e cada uma destas representa dois temas de conversa distintos. A primeira página, denominada “Classificação do Discurso de Fantoches por Crianças em Idade Pré-Escolar”, inicia-se com instruções de aplicação, seguindo-se seis perguntas relativas à fala da vaca. A segunda página, designada “Auto-Classificação do Discurso por Crianças em Idade Pré-Escolar”, é referente à própria fala da criança, sendo que também se inicia por uma breve instrução de aplicação, contendo seis perguntas acerca do discurso da criança. A resposta da criança é obtida através do uso de uma prancha que contém a escala de avaliação por expressões faciais, presente na terceira página do documento. Esta prancha contém três figuras: uma figura a sorrir, uma figura com uma expressão neutra e uma figura triste. Estas expressões faciais também estão presentes na folha de registo, sendo a classificação realizada da seguinte forma: 1 - caso a resposta à pergunta seja a figura a sorrir; 2 - caso seja escolhida a figura com a expressão indiferente; e 3 - caso a resposta seja a figura com a expressão triste. Assim, é possível compreender que, quanto mais alta for a pontuação final, mais negativos serão os sentimentos da criança face à sua gaguez e/ou face às disfluências dos outros.
2.4. PROCEDIMENTOS
Para este processo de tradução, adaptação e validação do instrumento de avaliação PASS consideraram-se as seguintes etapas: tradução, síntese das traduções, retrotradução e painel de peritos (ver Figura 1). Para a primeira etapa, que contempla a tradução do instrumento da língua de origem (língua inglesa) para a língua pretendida (português europeu), recorreu-se a dois tradutores com as seguintes características: profissionais de saúde familiarizados com a área de conhecimento alvo do instrumento de avaliação, com experiência profissional na área e com domínio das duas línguas (Sperber, 2004). Neste sentido, foram convidadas duas terapeutas da fala, com mais de cinco anos de experiência profissional e com alto domínio de ambas as línguas. Uma das tradutoras apresenta uma vasta experiência profissional na área da gaguez e a outra na área da linguagem e fala. Neste processo, cada uma das tradutoras realizou a tradução, de forma independente, do instrumento, de língua inglesa para português europeu (Karthikeyan et al., 2015). Realizou-se, na segunda etapa, uma reunião entre as duas tradutoras para a síntese das traduções, alcançando-se uma versão traduzida de consenso.
A retrotradução é a terceira etapa e consiste na tradução da versão de consenso da língua pretendida para a língua de origem (Sperber, 2004). Atendendo às características apresentadas na literatura acerca do perfil pretendido para os retrotradutores, recorreu-se a dois retrotradutores bilingues: um residente no Reino Unido, com formação académica na área da engenharia informática; e o outro com nacionalidade americana, a residir em Portugal há mais de 25 anos e com experiência profissional na área da gestão comercial. As duas retrotraduções foram analisadas, elaborando-se uma versão de consenso. Comparou-se a versão original do instrumento de avaliação PASS com a versão de consenso das retrotraduções para analisar se a versão traduzida era equivalente à versão original (Sperber, 2004). Com este processo pretendeu-se atingir a versão final de tradução do instrumento para o português europeu.
O painel de peritos, a quarta etapa, realiza-se de forma a determinar a equivalência concetual, idiomática e de conteúdo entre os itens do instrumento traduzido na língua pretendida e o instrumento original. Pretende também aferir a pertinência dos itens, a sua adequação, aceitabilidade e compreensão (Sousa & Rojjanasrirat, 2011). No painel de peritos analisou-se a versão traduzida de consenso (Borsa et al., 2012). Segundo a literatura, o painel de peritos deve ser constituído por seis a 10 elementos que tenham conhecimento e experiência profissional com a população-alvo e nas áreas de conteúdo do instrumento. Nesta investigação, cinco peritos aceitaram o convite, mas no dia da reunião compareceram três. Desta forma, o painel de peritos foi constituído por três terapeutas da fala com uma vasta experiência na avaliação, intervenção e estudo científico na área da gaguez e cujo desempenho profissional se centra exclusivamente nesta área.
3. RESULTADOS E DISCUSSÃO
Relativamente à etapa da tradução, traduziram-se as folhas de registo do instrumento de avaliação PASS. No decorrer da reunião entre as tradutoras, foi necessário realizar alguns ajustes aos itens de forma a adequar a sua equivalência semântica e a estrutura morfossintática. Na tradução foi possível verificar que, em alguns itens, os conceitos traduzidos não refletiam o conteúdo semântico veiculado no inglês (Borsa et al., 2012) e a estrutura morfossintática foi reajustada de forma a promover a compreensão dos itens para melhorar a aplicabilidade do instrumento.
Nesta mesma reunião, ocorreu a discussão sobre o uso da expressão do termo “escala das faces” ou “escala de avaliação por expressões faciais”, sendo que a expressão de consenso definida foi “escala de classificação por expressões faciais”. Segundo Maneesriwongul e Dixon (2004), todas as palavras semelhantes encontradas entre as duas versões traduzidas devem ser debatidas, sendo que a escolha para a versão traduzida de consenso deverá sempre preservar a equivalência semântica e conceptual dos itens.
Outra questão colocada foi relativa ao uso dos termos “fala” ou “discurso” para tradução da palavra “speech” numa das instruções dadas ao adulto. A palavra “discurso” refere-se ao uso de linguagem oral e/ou escrita num contexto social, pelo que se considerou que, em termos semânticos, se aproxima mais do conceito no instrumento original (Pritchard et al., 2017). Paralelamente, esta opção baseou-se também no facto de este conceito fazer parte de uma instrução dirigida ao avaliador, sendo de fácil compreensão para um adulto.
No item “How much do you like ice cream?”, ambas as tradutoras concordaram que em português europeu não é muito comum perguntar a uma criança “Quão gostas de gelado?”; a solução mais próxima encontrada foi: “Gostas de gelado?”. A escolha desta pergunta é possível tendo em conta que, para a resposta, é utilizada a já referida escala de avaliação por expressões faciais, que induz a criança a quantificar o seu nível de preferência. Os níveis de preferência variam entre “muito” e “pouco”, e o nível intermédio (“somewhere in the middle”) levantou discussão entre as tradutoras. Procedeu-se à adaptação deste item com vista à equivalência idiomática. O item foi traduzido para “assim-assim” de forma a promover a transmissão da ideia original. Em Portugal, em determinados contextos linguísticos, a expressão “mais ou menos” é equivalente à expressão “assim-assim”, pelo que se considerou necessário incluir esta informação de forma a que o avaliador selecione a expressão que melhor se adeque à criança. Dado que em Portugal se recorre frequentemente ao uso do gesto e expressão facial para reforçar a informação linguística, a escala foi adaptada culturalmente e, portanto, sempre que se utiliza a escala de avaliação por expressões faciais, inclui-se a opção de o avaliador poder complementar a informação verbal com os gestos icónicos referentes aos níveis de quantificação e respetivas expressões faciais.
No geral, verificou-se que a tradutora 2 realizou uma tradução mais literal do conteúdo do instrumento e a tradutora 1 realizou a tradução tendo em consideração uma situação conversacional informal, traduzindo os itens e adaptando-os a uma possível situação real de avaliação. Estas diferentes abordagens relativamente à tradução podem estar relacionadas com os diferentes backgrounds das duas tradutoras, sendo que a tradutora 1 apoiou o seu processo de tradução na experiência clínica com crianças que gaguejam. Estes factos reforçam a importância da existência de tradutores com diferentes características e backgrounds que permitam diferentes perspetivas que enriquecem o processo de tradução e que contribuem para uma tradução mais precisa (Beaton et al., 1998, 2000; Guillemin et al., 1993).
Em muitos itens da versão de consenso, foi realizada uma conjugação das duas propostas de tradução de forma a criar uma tradução final mais adequada à realidade cultural portuguesa. Como Nora et al. (2017) referem, para além da tradução literal dos itens do idioma original para outro, é necessária a adaptação em relação às particularidades do país onde o instrumento é utilizado, dos profissionais que o utilizarão e da população-alvo à qual se destina.
Na etapa de retrotradução, as diferenças verificadas centraram-se na utilização de sinónimos para a tradução de um/a mesmo/a conceito/expressão, mantendo o significado de cada item, bem como o mesmo tipo de estrutura morfossintática. Após análise, verificou-se que a versão retrotraduzida era muito semelhante à versão original. Especificamente, foi observada a utilização de sinónimos, como é o caso dos termos “speak” e “talk”, “fear” e “afraid”, “hi” e “hello”, “great” e “good”, “spots” e “marks”. A expressão “assim-assim”, que é parte integrante da escala de avaliação por expressões faciais, para além de ser traduzida como “so-so”, também foi traduzida como “more or less”. Os retrotradutores não estavam familiarizados com a versão original do instrumento, o que se considerou importante para que as retrotraduções não fossem influenciadas (Sperber, 2004). Segundo Sperber (2004), o uso desta estratégia metodológica permite revelar inconsistências entre retrotraduções, incluindo o uso de diferentes terminologias culturais. De acordo com o autor, na retrotradução pode verificar-se a utilização de palavras sinónimas pelos tradutores; no entanto, terão de ser conceitos linguisticamente semelhantes e com o mesmo significado dos da versão original. O autor refere que, caso tal não seja possível, é mais desejável que os itens apresentem significados equivalentes do que sejam linguisticamente semelhantes. Relativamente à retrotradução do PASS, foi verificada a utilização de conceitos/expressões distintos/as mas que apresentam o mesmo significado (Abbiati et al., 2013).
No que concerne à estrutura sintática das várias frases, observou-se que ambos os retrotradutores mantiveram o mesmo tipo de estrutura aquando da construção frásica. Segundo Scher (2018), na gramática inglesa aspetos de natureza morfológica, sintática e semântica não estão limitados a uma única forma. Apesar disto, neste processo metodológico não se verificaram alterações da estrutura morfossintática relevantes.
Através da análise do processo metodológico de retrotradução, verificou-se que, apesar da utilização de termos linguisticamente diferentes, se manteve o significado, não comprometendo o conteúdo da tradução. Logo, não foram identificadas discrepâncias que necessitassem de avaliação e reformulação por parte dos retrotradutores (Epstein et al., 2015), e, assim, foi possível concluir que a etapa de retrotradução foi bem-sucedida.
O painel de peritos focou-se na equivalência semântica, concetual e idiomática e na pertinência dos itens de avaliação, averiguando-se a necessidade de retirar e/ou adicionar itens. A importância e a usabilidade do instrumento foram igualmente discutidas nesta reunião.
Relativamente ao título, foi decidido que se deveria manter o nome original e a sua sigla. Esta decisão prendeu-se com o facto de se considerar que esta informação é pertinente para a rápida associação ao instrumento original que esteve na base desta tradução, adaptação e validação de conteúdo. Ao título original acrescenta-se o título traduzido: Questionário de Avaliação da Consciência da Gaguez em Idade Pré-Escolar.
Na versão final traduzida de consenso, questões como, por exemplo, “How hard is for cow to talk?” foram traduzidas para “É difícil para a vaca falar?”. Após análise e discussão, os peritos referiram que era necessário incluir advérbios que indicassem o grau ou intensidade, tal como consta na versão original. Na versão original os itens apresentados à criança iniciam-se sempre com o advérbio “how”; no português europeu existem duas formas de traduzir este advérbio: “quanto” e “quão”, que são utilizados de forma diferencial consoante o contexto linguístico, e ainda “como”, que não quantifica intensidades. Neste sentido, de forma a manter as equivalências conceptual e semântica, o painel de peritos considerou que as palavras a adicionar seriam os advérbios interrogativos “quão” e “quanto”, mediante o contexto linguístico de cada item. Assim sendo, foi decidido unanimemente pelo painel de peritos que as questões colocadas à criança deveriam ser todas reformuladas na versão traduzida de consenso. É possível verificar que o painel de peritos foi essencial no estabelecimento de congruência entre todos os itens do instrumento, sendo, assim, o seu papel crucial para uniformizar os termos, tornando os itens mais claros e de fácil compreensão (Alexandre & Coluci, 2011).
Os peritos modificaram também as respostas da escala de avaliação por expressões faciais. Na versão traduzida de consenso, as propostas eram: “É difícil, é fácil ou assim-assim?”. Para respeitar a versão original e garantir os processos de equivalência, os peritos sugeriram a adição de quantificadores, como por exemplo: “É muito difícil, é pouco difícil, ou assim-assim?” ou “Sente-se muito confortável, nada confortável, ou assim-assim?”.
Na frase traduzida “Lembre-se, estas questões são sobre o discurso da criança”, os peritos consideraram pertinente a substituição por “Lembre-se, estas questões são agora orientadas para a criança avaliar o seu próprio discurso”, tendo em conta que na versão traduzida de consenso não era claro que o objetivo seria a criança avaliar o seu discurso. Aquando do processo de tradução do conteúdo do instrumento, Son (2018) refere que a tradução final de um item poderá gerar uma interpretação diferente da do instrumento original, sendo necessário que o painel de peritos o adapte adequadamente de forma a que o significado do item se mantenha igual nas duas línguas do instrumento. Deste modo, apesar de a versão traduzida mencionar “Diga: Obrigado/a pela tua ajuda, fizeste um ótimo trabalho a responder às minhas questões. Eu gostei muito de te ouvir falar. És ótimo/a a falar”, os peritos consideraram ser mais adequado dizer: “Obrigado/a pela tua ajuda. Fizeste um ótimo trabalho a responder às minhas perguntas. Eu gostei muito de te ouvir falar. Tu és mesmo bom/boa a conversar”. Na base desta decisão está o tomar em consideração que a criança que gagueja pode ter efetivas dificuldades na fala, sendo, no entanto, uma ótima comunicadora, facto que se quer realçar com a expressão: “Tu és mesmo bom/boa a conversar”. A adaptação realizada pelos peritos neste item vai ao encontro da bibliografia referente às atitudes e sentimentos da criança que gagueja, a qual refere a importância de reforçar positivamente as suas capacidades comunicativas (Guitar, 2019; Manning, 2010).
De uma forma geral, verificou-se que o painel de peritos realizou adaptações ao conteúdo da versão traduzida de consenso, tendo em consideração o contexto cultural e as diferenças linguísticas (Guillemin et al., 1993). O painel de peritos poderá substituir palavras ou eliminar itens que se revelam irrelevantes, inadequados ou ambíguos na premissa de que se mantém a sua validade de conteúdo, garantindo que o instrumento traduzido continua a avaliar aquilo a que se propõe (Guillemin et al., 1993) . Na análise final deste instrumento de avaliação, e tendo em consideração todas as alterações sugeridas, o painel de peritos considerou que os conceitos se mantêm preservados, que os itens são compreensíveis e que a tradução do instrumento se adequa à população-alvo pretendida (Sousa & Rojjanasrirat, 2011). Os peritos consideraram ainda que o instrumento é pertinente, necessário para a prática clínica e de investigação e de fácil utilização.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A particularidade do PASS (Abbiati et al., 2013) relaciona-se com o facto de avaliar, de modo detalhado, os sentimentos e atitudes que as crianças em idade pré-escolar que gaguejam apresentam em relação ao seu próprio discurso e/ou ao discurso das outras pessoas, através da exploração de um vídeo lúdico e de interesse para a criança. Não obstante, é notória a necessidade de projetos de investigação que afiram os sentimentos e atitudes que as crianças em idade pré-escolar apresentam em relação à sua gaguez. Como anteriormente mencionado, apenas um instrumento (A-19), de Guitar e Grims (1977), apresenta o conteúdo traduzido e adaptado para a realidade portuguesa.
Com a realização dos processos metodológicos de tradução, retrotradução e painel de peritos, foi possível obter a versão final do questionário do PASS (Abbiati et al., 2013), o qual se considera que apresenta validade de conteúdo. Para este processo foi crucial o diálogo aberto e a partilha de ideias constante entre as duas tradutoras, de forma a criar uma versão de consenso que mantivesse as equivalências semânticas, conceptuais e idiomáticas. No painel de peritos, foi possível aferir a importância de que o mesmo fosse constituído por profissionais com uma vasta experiência na área da gaguez. Isto possibilitou não só novas perceções acerca do conteúdo do instrumento, como também acerca do impacto da gaguez em crianças em idade pré-escolar.
Como limitações desta investigação aponta-se o número reduzido de peritos e a impossibilidade da presença do autor do instrumento original na reunião.
A utilização do PASS necessitará do desenvolvimento de trabalho futuro. Assim, objetiva-se realizar a tradução, adaptação e validação de conteúdo do vídeo que sustenta a aplicação do PASS. Quando a totalidade do instrumento estiver traduzida e adaptada (i.e., questionário e vídeo), pretende-se iniciar o processo de validação de constructo. Esta fase de investigação considera-se de extrema relevância, pois representa a primeira utilização deste instrumento na prática clínica em Portugal. Espera-se que a finalização desta investigação proporcione uma avaliação fidedigna de crianças que gaguejam em idade pré-escolar, potenciando a intervenção terapêutica de acordo com as características e necessidades de cada criança.