A coronavirus disease 2019 (COVID-19), infeção causada pelo vírus severe acute respiratory syndrome coronavirus-2 (SARS-CoV-2), apresenta um amplo espectro de manifestações clínicas e de gravidade. Em Portugal, o primeiro caso foi diagnosticado a 2 de março de 2020 e, a 19 de março, decretado o primeiro estado de emergência im-posto pela pandemia COVID-19. De acordo com dados da Direção Geral da Saúde, foram infetados à data de redação desta carta, mais de 1 milhão de pessoas pelo SARS-CoV-2, com mais de 18 000 óbitos.1 No entanto, são ainda poucos os estudos nacionais que permitam aferir as repercussões desta pandemia nos doentes sem infeção por SARS-CoV-2.
Foi realizado um estudo retrospetivo, comparando os doentes internados em enfermaria num Serviço de Medicina Interna, no período de 43 dias do primeiro Estado de Emergência (19/03/2020 a 02/05/2020) com o período de 43 dias subsequente (3/05/2020 a 14/06/2020). A colheita dos dados foi efetuada através do processo clínico informático do doente. A análise estatística foi realizada através do programa SPSS®. Foram avaliados dados demográficos, diagnósticos principais e principais sistemas orgânicos afetados, duração do internamento, número de reinternamentos e recorrências ao Serviço Urgência (SU) nos 30 dias após alta e a mortalidade intra-hospitalar e a 30 dias. Na análise comparativa das variáveis qualitativas aplicou-se o teste Qui-quadrado e na de variáveis contínuas, pela distribuição não normal da amostra, foram aplicados testes não paramétricos (teste U de Mann-Whitney e Kruskal-Wallis). Considerou-se um valor p <0,05 como estatisticamente significativo.
Nos 86 dias analisados estiveram internados 934 doen-tes, com uma mediana de idades 79 anos (AIQ: 66-87), maioritariamente do sexo feminino (n = 486, 52%). A mediana do tempo de internamento foi de 6 dias (AIQ: 3-8). O score de Charlson mediano foi 2. No estudo comparativo entre os dois períodos, objetivou-se que a mortalidade a 30 dias no primeiro estado de emergência foi significativamente superior à do período subsequente (7,5% vs 4,2%; p = 0,036). Da mesma forma, verificou-se um número significativamente superior de doentes com patologias do sistema respiratório no 1º período do estudo (217 vs 108; p < 0,05); por sua vez, houve maior número de patologia dos sistemas cardiocirculatório, digestivo, genitourinário e neurológico no 2º período de forma significativa. Não se observou diferenças estatisticamente significativas entre os dois períodos relativamente ao género (p = 0,616), idade (79 anos vs 80 anos; p = 0,241), tempo de internamento (5 dias vs 6 dias; p = 0,679), readmissão SU a 30 dias (24,1% vs 24,1%; p = 0,938) ou reinternamento a 30 dias (14,8% vs 14,1%; p = 0,274).
Hipoteticamente, em linha com as conclusões de estudos internacionais de grande dimensão sobre mortalidade nos doentes sem infeção por SARS-CoV-2, postulamos que este aumento possa ser explicado pela recorrência mais tardia dos doentes às instituições de saúde, apresentando-se assim com doenças em fases mais avançadas e graves.2-4Acresce, a favor desta conclusão, a superior proporção de óbitos extra-hospitalar entre março e agosto de 2020, em Portugal, face à média de óbitos no período homólogo de 2015-2019.5
Apesar destes resultados, pode não ser possível inferir mesmo para outras instituições de saúde, devendo ser interpretados cautelosamente. Assim, pretende-se com esta carta ao Diretor, realçar a importância destes dados e questionar a sua reprodutibilidade. Lança-se, também, o repto à Sociedade Portuguesa de Medicina Interna para a realização de estudos neste contexto, de carater multicêntrico, por forma a podermos retratar de forma mais fiel o impacto da pandemia COVID-19 a nível nacional. Desta forma, poderão ser retiradas conclusões que permitam uma melhoria da resposta dos hospitais em situações similares no futuro.
Declaração de Contribuição / Contributorship Statement:
Mário Gil Fontoura - Idealização, Redação, Revisão do artigo.
L. V. Pinto, F. Machado, R. Maciel - Redação, Revisão do artigo.