Introdução
O cálcio é essencial para a sinalização intracelular e tem múltiplas e importantes funções extracelulares. Por isso a sua concentração sérica é mantida numa faixa estreita entre 8,5 e 10,5 mg/dl, enquanto que a sua fração ionizada se situa entre 1, 16 e 1,31 mmol/L (4,65 e 5,25 mg/dl).1 A paratormona (PTH) e a 1,25-dihidroxivitamina D, metabolito ativo da vitamina D, são as principais hormonas responsáveis pela homeostasia do cálcio.1-3A PTH regula o cálcio e o fósforo, atuando no osso, onde promove a libertação de cálcio e de fosfato, pela reabsorção óssea.1-3A nível do rim, a PTH promove a reabsorção de cálcio e a excreção de fosforo.1-3A PTH atua ainda, de forma indireta, no intestino, estimulando a produção renal de 1,25-dihidroxivitamina D para aumentar a absorção de cálcio e fosfato no intestino.1-3A produção de PTH é regulada, principalmente, pelo recetor sensorial de cálcio (CaSR), que se localiza nas células principais, da paratiroide. Quando os níveis séricos de cálcio são baixos, o CaSR fica inativo e a síntese e libertação de PTH aumentam.1-3
A hipocalcemia pode ser classificada como aguda ou crónica. A maioria dos casos de hipocalcemia aguda ocorre no contexto de hipoparatiroidismo após cirurgia cervical, com remoção ou destruição das glândulas paratiroides.1-10Normalmente o desenvolvimento de hipocalcemia aguda ocorre nas primeiras 24-72 horas após a cirurgia.3-6O hipoparatiroidismo caracteriza-se por hipocalcemia, hiperfosfatémia e um valor de PTH inapropriadamente baixo ou suprimido.1-2 Quando ocorre até 6 meses após a cirurgia define-se como transitório ou temporário, quando se prolonga para além dos 6 meses define-se como permanente.3-6A incidência de hipoparatiroidismo, após cirurgia cervical anterior, é cerca de 8 em cada 100 indivíduos, em que 75% dos casos são transitórios e os restantes resultam em hipoparatiroidismo permanente.3
A deficiência de vitamina D e de magnésio são fatores de risco para o desenvolvimento de hipocalcemia pós-cirúrgica.1,5A hipocalcemia após tiroidectomia é mais comum em doentes com doença de Graves comparativamente a doentes submetidos a tiroidectomia por qualquer outro diagnóstico.3,5Os fatores que contribuem para o aumento da taxa de hipocalcemia após a cirurgia, nestes doentes, incluem o aumento da inflamação e friabilidade da glândula o que torna o procedimento tecnicamente mais exigente.1 Além disso, a hipocalcemia após tiroidectomia, em doentes com doença de Graves, pode não ser decorrente do hipoparatiroidismo, mas sim por síndrome do osso faminto ou hungry bane syndrome.1,5Esta síndrome caracteriza-se por hipocalcemia grave e prolongada, associada a hipofosfatémia com valores variáveis da PTH. A hipomagnesiemia e a hipocaliemia podem, por vezes, ser encontrados nesta síndrome.1,5
Outras situações em que a hipocalcemia após cirurgia pode dever-se ao hungry bane syndrome, incluem a paratiroidectomia por hiperparatiroidismo. Estes doentes estão associados frequentemente a uma diminuição da densidade mineral óssea e no pós-operatório imediato há deposição acentuada de cálcio e fosfato no osso.
A hipocalcemia pode estar associada a um espectro de manifestações clínicas, variando desde ténues sintomas se a hipocalcemia for leve e/ou crónica, a sintomas graves e ameaçadores de vida se for grave e/ou aguda.1-5A sintomatologia está relacionada com a irritabilidade neuromuscular que caracteriza a hipocalcemia.1,3Os sintomas neuromusculares variam desde parestesias periorais e das pontas dos dedos, cãibras musculares, espasmo carpopedal, laringospasmo, irritabilidade, confusão, delírio, crises convulsivas (focais ou generalizadas), a coma.1,5,7Ao exame físico deve avaliar-se o sinal de Chvostek e o sinal de Trousseau. O primeiro corresponde à contração do músculo facial à percussão do nervo facial na região pré-auricular, salientando-se que este sinal é positivo em 25% da população normal. O sinal de Trousseau, caracteriza-se por flexão do punho, polegar e articulações metacarpofalângicas, com hiperextensão dos dedos, aquando da oclusão da artéria braquial pela insuflação de um braçal acima da pressão arterial sistólica.1-5Deve-se despistar a presença de alterações cardiovasculares, nomeadamente, a presença de prolongamento do intervalo QT, pois este prolongamento pode levar ao desenvolvimento de taquicardia ventricular tipo torsades de pointes e culminar em fibrilhação ventricular.1,5,7
A abordagem terapêutica da hipocalcemia depende da gravidade dos sintomas, do tempo de instalação e dos níveis séricos de cálcio.1-10
O objetivo do tratamento é atingir e manter os níveis de cálcio sérico no limite inferior do normal, com o intuito de resolver e prevenir os sintomas de hipocalcemia, através da suplementação com cálcio oral e vitamina D ativa.1,10
Prevenção de Desenvolvimento de Hipocalcemia Após Cirurgia (tiroidectomia /paratiroidectomia)
1.1. Pré-operatório
Antes da realização de tiroidectomia ou de paratiroidectomia, deve realizar-se uma avaliação do metabolismo fosfocálcio incluindo: cálcio total corrigido para a albumina ou cálcio ionizado, fósforo, magnésio, 25OH vitamina D, creatinina e PTH (Fig. 1).
Se deficit de vitamina D ou de magnésio:
Se vitamina D < 50 nmol/L deve iniciar-se suplementação com 50,000 unidades internacionais (UI) de colecalciferol por semana ou 6,000 UI por dia, durante 8 semanas.5 Em doentes com hiperparatiroidismo primário que apresentam deficiência de vitamina D e hipercalciúria a suplementação com colecalciferol deve ser feita com cautela.6
Se magnésio < 1,6 mg/dl deve iniciar-se suplementação com magnésio, ver Tabela 1.
De salientar, que doentes com hiperparatiroidismo primário, não devem ser submetidos a restrição dietética de cálcio.6
Suplementação | Posologia |
---|---|
Cálcio | 0,5 - 2g de cálcio elementar, dividido em 2-4 tomas por dia.* Deve ser tomado com as refeições para melhor absorção. |
Calcitriol (1,25-(OH)2-D3) | Inicial: 0,25 - 0,5ug, por dia. Manutenção: 0,25 - 2ug, por dia. |
Magnésio | 250 - 1000mg de magnésio elementar oral, dividido em 2-4 tomas por dia.** Doentes com hipomagnesiemia sintomática (tetania, arritmias ou convulsões), grave (menor ou igual a 1 mg/dl) ou sem via oral patente, deve iniciar-se suplementação com magnésio intravenoso. *** |
* Carbonato de cálcio: contém 40% de cálcio elementar. Exemplo: 1 comprimido de 1250 mg de carbonato de cálcio, contém 500 mg de cálcio elementar. ** Suplementação com aspartato de magnésio: 2 saqueias a 8 saqueias por dia, dividido em 2-4 tomas por dia.
*** Administração de um bólus de 1 a 2 g de sulfato de magnésio em 50 a 100 ml de soro com dextrose a 5%, a perfundir durante 5 a 60 minutos. Se o doente apresentar instabilidade hemodinâmica este bólus deve ser perfundido durante 2 a 15 minutos. O bólus inicial deve ser seguido de uma perfusão contínua com 4 a 8 g de sulfato de magnésio
1.2. Pós-operatório
No dia seguinte à realização de tiroidectomia ou de paratiroidectomia, deve realizar-se uma avaliação analítica incluindo: cálcio total corrigido para a albumina ou cálcio ionizado; fósforo; magnésio; 250H vitamina D; creatinina e PTH (Fig. 2). Dois dias após a cirurgia deve realizar-se nova avaliação analítica incluindo: cálcio total corrigido para a albumina ou cálcio ionizado; magnésio e creatinina (Fig. 2).
Estudos mostram que o valor de PTH deve ser avaliado entre os 10 minutos até as 24 horas após a tiroidectomia e que um valor de PTH inferior a 15 pg/ml é preditivo de hipocalcemia iminente.5,11,22
A avaliação de PTH no pós-operatório auxilia a orientação clínica do doente.5 Assim, se o valor de PTH for superior a 15 pg/ml não é necessário manter uma monitorização intensiva do cálcio sérico, nem é necessário suplementação de cálcio.5 Se o valor de PTH no pós-operatório for inferior a 15 pg/ml traduz um risco aumentado de hipoparatiroidismo agudo e por isso deve iniciar-se suplementação com cálcio oral e calcitriol (Tabela 1 ).5
Se na avaliação analítica realizada no período pós-operatório, o doente apresentar um valor de cálcio sérico corrigido <7,5 mg/dl ou cálcio ionizado <0,8 mmol/L sugere-se avaliação por Endocrinologia.
Se na avaliação analítica realizada no período pós-operatório, o doente apresentar um valor de cálcio sérico corrigido entre 7 ,5 e 8,5 mg/dl ou cálcio ionizado 0,8 e 1, 1 mmol/L, deve avaliar-se a presença de sintomas e de sinais de hipocalcemia e realizar um electrocardiograma para despiste de alterações eletrocardiográficas secundárias a hipocalcemia.1-5,7
Na presença de pelo menos um sintoma ou sinal de início agudo, deve tratar-se como descrito na secção 2 - Abordagem terapêutica de hipocalcemia aguda.
Se ausência de sintomas ou sinais de hipocalcemia aguda, deve iniciar-se suplementação com cálcio oral e calcitriol (Tabela 1 ).
A suplementação de cálcio oral deve ser feita com 0,5 a 2 g de cálcio elementar, dividido em 2-4 tomas por dia.3·5·7O carbonato de cálcio contém 40% de cálcio elementar, assim, 1 comprimido de 1500 mg de carbonato de cálcio, contém 600 mg de cálcio elementar.3·5·8O cálcio deve ser tomado com as refeições para melhor absorção e diminuir o fósforo.3,5-7
A suplementação inicial de calcitriol (1 ,25-(OH)2-D3) deve ser feita com 0,25 a 0,5 ug, por dia, e a dose de manutenção com 0,25 - 2 ug, por dia.3·5·7
O doente deve ser reavaliado, em ambulatório, em 2-4 semanas, após início de suplementação de cálcio e calcitriol, com reavaliação analítica do cálcio total corrigido para a albumina ou cálcio ionizado, fósforo, magnésio, vitamina D e cálcio urinário.1 Esta terapêutica tem como objetivo atingir e manter os níveis de cálcio sérico no limite inferior do normal, assim como o valor de fósforo sérico, de magnésio sérico, de vitamina D e de cálcio urinário dentro dos intervalos de referencia, e o produto cálcio-fósforo séricos deve ser inferior a 55 mg 2/dl2.1-10
De salientar que, após paratiroidectomia por hiperparatiroidismo primário, na presença de deficiência de vitamina D, independentemente da presença de hipocalcemia, deve ser feita suplementação de vitamina D após paratiroidectomia aparentemente bem-sucedida, uma vez que a manutenção de níveis desta vitamina dentro dos limites da normalidade, no pós-operatório, ajuda a melhorar a absorção de cálcio, facilita a normalização dos níveis de PTH, resultando potencialmente numa melhoria da densitometria óssea.6
A depleção de magnésio prejudica a libertação e atividade da PTH, portanto, se o magnésio sérico for menor que 1,6 mg/dl deve ser suplementado com 250 - 1000 mg de magnésio elementar oral, dividido em 2-4 tomas por dia (Tabela 1).3,5O aspartato de magnésio, é uma formulação comumente usada e cada saqueta contém 1229,6 mg de aspartato de magnésio que equivale a 121 ,5 mg de magnésio elementar, como tal devem ser usadas 2 a 8 saquetas por dia, dividido em 2-4 tomas por dia.
Em doentes com hipomagnesiemia sintomática (tetania, arritmias ou convulsões), grave (menor ou igual a 1 mg/ dl) ou sem via oral patente, deve iniciar-se suplementação com magnésio intravenoso.22 Deve administrar-se um bólus de 1 a 2 gramas de sulfato de magnésio em 50 a 100 ml de soro com dextrose a 5%, a perfundir durante 5 a 60 minutos. Se o doente apresentar instabilidade hemodinâmica este bólus deve ser perfundido durante 2 a 15 minutos. O bólus inicial deve ser seguido de uma perfusão contínua com 4 a 8 g de sulfato de magnésio, a perfundir durante 12 a 24 horas e manter até normalização do valor de magnésio.22 É necessário realizar doseamentos seriados de magnésio a cada 6 horas e manter o doente em monitorização electrocardiográfica contínua.22 A reposição de magnésio deve ser mantida durante 1 a 2 dias após a normalização do valor de magnésio.22 Em doentes com insuficiência renal (clearance de creatinina menor que 30 mU min/1, 73 m) deve ser reduzida a dose de magnésio intravenoso em pelo menos 50%e monitorizar-se de forma mais apertada as concentrações plasmáticas de magnésio.22
Para além da avaliação da hipocalcemia pós-cirúrgica é também importante a avaliação de outras complicações como a paralisia permanente do nervo laríngeo recorrente.6
Abordagem Terapêutica de Hipocalcemia Aguda
2.1. Diagnóstico
Perante um doente com manifestações clínicas de hipocalcemia, o doseamento do cálcio sérico corrigido para a albumina ou do cálcio ionizado confirma o diagnóstico (Fig. 3).1,3,5,7-9
São igualmente importantes para a abordagem aguda do doente com hipocalcemia:
Numa segunda fase, após estabilização clínica do doente, caso a hipocalcemia seja um achado de novo, deverá ser feito o seu estudo etiológico, que inclui o doseamento de PTH e vitamina D.1-5,7
2.2. Tratamento
a) Em doentes com hipocalcemia associado ao aparecimento agudo de pelo menos um dos seguintes sintomas/ sinais: espasmo carpopedal, tetania, convulsões, prolongamento do intervalo QT no ECG, com cálcio totalsérico corrigido para a albumina< 7,5 mg/dl ou cálcio ionizado <0,8 mmol/L, ou sem via oral patente, iniciar as seguintes medidas terapêuticas (Fig. 3):
Suplementação com cálcio intravenoso - bólus de 1 a 2 g de gluconato de cálcio 10% (gluconato de cálcio 10%: contém 93mg de cálcio elementar por 10 ml de solução), em 50 ml de soro com dextrose a 5%, a perfundir durante 10 a 20 minutos.3,7-9Seguido de perfusão contínua, com 11 g de gluconato de cálcio diluídos em 1000 ml de soro com dextrose 5% ou com NaCI 0,9, num ritmo de 50 mUh, durante 8-10 horas.3 Esta perfusão deve ser mantida em doentes sem via oral patente ou com hipocalcemia persistente.3,7-9
Concomitantemente à suplementação com cálcio intravenoso deve iniciar-se, assim que possível, suplementação com 1 a 4 g de cálcio elementar oral, dividido em 2-4 tomas por dia e calcitriol 0,25 a 0,5 ug duas vezes por dia.3,7-9
Esta terapêutica tem como objetivo atingir e manter os níveis de cálcio sérico no limite inferior do normal.1-10
O doente deverá ser internado, sob vigilância e realizado:
Deverá ser avaliado por Endocrinologia.
b) Em doentes com hipocalcemia crónica assintomática ou ligeiramente sintomática (parestesias), ou hipocalcemia aguda assintomática ou ligeiramente sintomática (parestesias) com cálcio total sérico corrigido para a albumina > 7 ,5 mg/dl ou cálcio ionizado >0,8 mmol/L, e com via oral patente, iniciar as seguintes medidas terapêuticas (Fig. 3):
Suplementação com carbonato de cálcio oral e calcitriol (Tabela 1).3,7,9
Se hipocalcemia aguda, repetir doseamento de cálcio em 24 horas;3,7,9
Se hipocalcemia crónica, repetir doseamento de cálcio em 1 semana;3,7,9
Se cálcio sérico aumentar para valores próximos do limite inferior da normalidade e ocorrer resolução das parestesias, se previamente presentes, deve continuar-se suplementação oral com cálcio e calcitriol e vigilância dos níveis séricos de cálcio.3,1-9Caso contrário, deve-se aumentar a suplementação oral de cálcio elementar em 1-2g diários divididos pelas diversas doses.3 Se não houver melhoria deve fazer-se suplementação com cálcio intravenoso.3
Conclusão
A hipocalcemia aguda é uma emergência endócrina. A atempada identificação e correção é essencial. No entanto, orientações clínicas para uma abordagem preventiva da hipocalcemia aguda, no período pré e pós-operatório, tendem a escassear.
Este trabalho tem como finalidade tentar colmatar esta necessidade, com uma proposta de protocolo de atuação em doentes com indicação para tiroidectomia e paratiroidectomia, logo desde o período pré-operatório até ao pós-operatório, assim como no tratamento de episódios de hipocalcemia aguda.