Caro Editor,
A temperatura corporal é mantida dentro de valores homeostáticos, pelo equilíbrio entre a produção e dissipação de calor. O principal mecanismo de dissipação de calor num ambiente quente, é a evaporação, que se torna ineficaz quando a taxa de humidade atinge 75%.1
O diagnóstico de golpe de calor clássico (GCC) é clínico, baseado numa temperatura corporal elevada (geralmente 40ºC) e disfunção neurológica, num cenário de onda de calor.2,3
O tratamento assenta no rápido reconhecimento, arrefecimento precoce e suporte.4
Apesar da incidência crescente nas últimas décadas e da elevada taxa de mortalidade associada, o diagnóstico é por vezes tardio, com consequente atraso no início das medidas de arrefecimento e inevitável evolução para disfunção multiorgânica.4
Entre 1 e 6 de agosto/2018, registou-se uma onda de calor que abrangeu quase todo o território continental.5 A previsão destas circunstâncias, deverá acautelar procedimentos necessários no que diz respeito a planos de contingência, designadamente, organização de circuitos específicos, recursos, coordenação com equipa de enfermagem e outros serviços de retaguarda (Medicina Intensiva). Estas medidas, quando devidamente antecipadas, asseguram melhor desempenho e outcomes mais favoráveis.
Nas 24 horas decorridas entre as 8h00 de 5 e 6 de agosto, foram admitidos no SU do HSFX 19 doentes com diagnóstico de GCC. Todos apresentavam hipertermia e disfunção neurológica à admissão, tendo sido admitidos pela via verde hipertermia implementada no SU. A mesma, consistia na identificação precoce (triagem) dos casos suspeitos. Após avaliação médica, caso se confirmasse esse diagnóstico ou a suspeita se mantivesse, os doentes eram transferidos para área específica da urgência, com enfermeiro e assistente operacional, designados.
Medidas de arrefecimento foram iniciadas precocemente, juntamente com tratamento de suporte, de acordo com as necessidades.
Atingida temperatura timpânica inferior a 38ºC, e correspondente melhoria clínica, o doente era mobilizado para outro sector.
A análise da amostra verificou, como esperado, predomínio de idade avançada (média 79 anos) e colecção de múltiplas comorbilidades, destacando-se pela frequência: HTA, DRC e demência, sublinhando a considerável percentagem de doentes acamados (37%).
Todos os doentes estavam polimedicados, com predomínio de antihipertensores, neurolépticos e diuréticos entre os fármacos mais representativos da amostra.
Estes achados espelham o papel, já reconhecido, dos factores limitantes da capacidade de termorregulação no agravamento prognóstico do GCC.4 Hipertensão, doença renal crónica, demências e alguns dos fármacos envolvidos na respectiva terapêutica, constituem factores de risco amplamente reconhecidos.4
Verificou-se uma taxa de mortalidade de 16% (3 óbitos). Para a baixa taxa de mortalidade pode ter contribuído a organização da 'Via Verde Hipertermia', com base na previsão da onda de calor, determinante no reconhecimento precoce do GCC e na aplicação atempada das medidas de suporte e arrefecimento.
Não é pretensão deste trabalho reflectir sobre a abordagem ou tratamento do GCC, mas tão só sensibilizar para este cenário potencialmente grave em que o reconhecimento e tratamento precoces são decisivos no outcome.