Introdução
A pandemia pelo SARS-CoV-2 obrigou a uma rápida atuação pelas entidades de saúde sendo que em um ano, várias vacinas contra o vírus foram desenvolvidas.1
Relataram-se raros casos de efeitos adversos graves, sendo que em fevereiro de 2021 foram descritos pela primeira vez casos de trombocitopenia e trombose em locais pouco co-muns nomeadamente a nível da circulação venosa esplâncnica e nos seios venosos cerebrais.2 Estes eventos verificaram-se cerca de duas semanas após a toma da vacina, inicialmente descritos após a vacina da AstraZeneca (ChAdOx1 nCoV-19), e mais tarde, em abril de 2021, também em relação com a vacina Johnson & Johnson (Ad26COV2).2 Dadas as semelhanças com a trombocitopenia induzida pela heparina, denominou-se esta entidade como trombocitopenia trombótica induzida pela vacina (TTIV).3 A Agência Europeia do Medicamento estima uma incidência de TIVV após a vacina da AstraZeneca entre 1 em 125 000 e 1 em 1 000 000.3 O mecanismo exato desta entidade não é ainda totalmente compreendido.3 Parece ser mais frequente em mulheres em idade jovem (20 a 55 anos).3 O tratamento, dependendo da gravidade, passa por imunoglobulinas intravenosas e anticoagulantes - que não a heparina.3 O reconhecimento precoce é importante na medida em que poderá minimizar a morbimortalidade a longo prazo.3
Por tudo isto, a notificação destes casos é importante pois contribui para o reconhecimento e compreensão desta síndrome.4
Caso Clínico
Mulher de 68 anos, com contexto clínico de hipotiroidismo suplementado com levotiroxina e ainda medicada cronicamente com omeprazol e alprazolam, foi admitida na sala de emergência após ter sido encontrada em casa estuporo-sa. À observação na sala de emergência pontuava 6 pontos na escala de coma de Glasgow (O2V1M3), apresentava anisocoria (E>D), desvio conjugado do olhar para a esquerda, reflexo cutâneo-plantar indiferente bilateralmente, estava hipertensa, normoglicemica e com sinais de má perfusão periférica. Dois dias antes havia referido queixas de mal-estar generalizado e vómitos. Sem internamentos prévios ou toma de anticoagulantes.
Não existia história pessoal ou familiar de trombofilia ou eventos trombóticos prévios; não teve nenhum internamen-to recente, não havia toma de anticoagulantes, nomeada-mente heparina. Não havia alterações terapêuticas prévias recentes. Analiticamente apresentava 19 000 plaquetas (com contagem de plaquetas normais em estudo analítico do início do mês), com informação adicional de ausência de agregados plaquetários. Sem alteração da função renal nem do ionograma, sem alteração do painel hepático (Tabela 1). Doseamento de álcool sem níveis tóxicos e pesquisa de drogas de abuso na urina apenas com positividade para benzodiazepinas. Electrocardiograma em ritmo sinusal. Realizado TC cerebral com estudo angiográfico arterial, pela suspeita de evento vascular cerebral, que confirmou enfarte cerebral bilateral por oclusão bilateral das artérias carótidas (Figs. 1 a 4). Pela história, cedida pelo filho, de vacinação (ChAdOx1) dez dias antes, foi pedido estudo da coagulação que mostrou d-dímeros aumentados, fibrinogénio, TP e aPTT normais (Tabela 1) e anticorpos anti-PF4/heparina que foram positivos. A pesquisa de SARS-CoV-2 foi negativa. Dado o enfarte já estabelecido, com ausência de circulação anterior bilateralmente, não havia indicação para qualquer intervenção na fase aguda, estando associado a mau prognostico vital a curto prazo. O caso foi notificado ao INFARMED.
Discussão
A trombocitopenia trombótica imune induzida pela vacina (TTIV) é uma síndrome imune que, pelos dados disponíveis até ao momento, parece ser uma variante da trombocito-penia induzida por heparina (TIH) - dada a presença de trom-bocitopenia, trombose e tendo em conta que a presença de anticorpos anti-PF4/Heparina.1,5,6Por outro lado, e apesar da infeção pelo SARS-CoV-2 estar associada a um estado de hipercoaguabilidade, a TIIV não parece ser uma manifestação da doença já que a grande maioria dos casos relatados ocorreram em doentes com teste de RNA do SARS-CoV-2 negativo. O despoletante e os fatores de risco para a TTIV são ainda desconhecidos.7
Esta síndrome é mais frequente em mulheres com menos de 50 anos e mais raro em doentes com mais de 70 anos.2 É uma entidade com mau prognóstico e que se associa a eventos trombóticos mais frequentemente venosos, em locais incomuns nomeadamente no leito venoso cerebral e/ou esplâncnico, trombocitopenia moderada a severa, coagulopatia e anticorpos anti-PF4 positivos.2 É, até ao momento, uma reação adversa rara, e por isso os benefícios da vacina ultrapassam este risco; todavia, dado o reconhecimento tardio na maioria dos casos relatados, associou-se a uma mortalidade de 20%, sendo de cerca de 70% em doentes que se apresentaram com trombocitopenia severa e hemorragia cerebral ou trombose dos seios venosos.1,2,8Os sintomas ainda que por vezes inespecíficos, dependem sobretudo do território afetado pelo trombo, podendo haver cefaleia, alterações de visão, dor abdominal, náuseas e vómitos, dispneia, dor ou edema do membro inferior, petéquias ou hemorragia espontânea.7,9,10Habitualmente a sintomatologia surge entre o 6º e 14º dia após a toma da vacina.7,9,10Para o diagnóstico são necessários quatro critérios: vacina da COVID-19 nos 42 dias prévios (frequentemente apenas com 1 toma da vacina), a documentação imagiológica de evento trombótico arterial ou venoso, trombocitopenia e anticorpos anti-PF4 positivos (método ELISA).3 A ausência de trombocitopenia não excluiu o diagnóstico, já que o doente pode encontrar-se numa fase inicial deste quadro clínico.9,10A maioria dos doente tem d-dímeros elevados e em alguns doentes há diminuição do fibrinogénio.8,10
Na doente que apresentamos não havia fatores de risco cardiovascular. Também não se encontrou história pessoal ou familiar de trombofilia e também não existia história de eventos trombóticos prévios. Não teve nenhum internamento recente. Não havia toma de anticoagulantes, nomeadamente heparina. Conforme se pode ver na Tabela 1, não havia anemia nem parâmetros bioquímicos sugestivos de hemólise intra-vascular. A leucocitose com neutrofilia bem como o aumento da proteína C reativa foram interpretados no contexto do evento agudo.
A temporalidade entre a toma da vacina e a apresentação com trombocitopenia severa, anticorpos anti-PF4 positivos, d-dímeros muito aumentados e a comprovação imagiológica de enfarte cerebral bilateral e extenso da circulação anterior, culminou na assunção deste diagnóstico.
Sugere-se que o tratamento desta entidade seja semelhante ao da TIH nomeadamente com imunoglobulinas e anticoagulantes, que não heparinas.5,6,10Neste caso a doente apresentava-se num estado clínico grave e irreversível, sem benefícios em manter medidas de suporte avançado de órgão, tendo vindo a falecer.
Conclusão
O conhecimento desta entidade pelos clínicos permitirá um melhor e atempado reconhecimento da mesma, o que poderá permitir melhorar o prognóstico de alguns destes doentes através de uma atuação precoce. Para isto, é fundamental um alto nível de suspeição e a realização de protocolos de atuação.