A doença renal crônica (DRC) está associada a diversas vias heterogêneas que afetam na redução da função renal dos rins, impactando de forma significativa na qualidade de vida de seus portadores e familiares (Webster et al., 2017). Atualmente, as elevadas taxas de incidência, prevalência e morbimortalidade na população como um todo, a torna um problema de saúde pública mundial, em contrapartida, a assistência a estes pacientes vem sendo aprimorada no país (Thomé et al., 2019). Neste cenário, a Insuficiência Renal Crônica (IRC) se caracteriza pela perda parcial da função renal que se apresenta de forma progressiva e irreversível. O diagnóstico deve ser realizado através de exames que realizam a dosagem de creatinina no sangue e o exame de urina habitual (Thomé et al., 2019).
A IRC é o estágio da doença com maior gravidade e, portanto, há necessidade de inserção em programa de terapia renal substitutiva para se buscar a homeostase do organismo que são disponibilizadas através de diálise peritoneal, hemodiálise (HD) ou transplante renal. A modalidade terapêutica mais utilizada no Brasil é a HD, a qual tem por objetivo remover toxinas e resíduos nitrogenados do sangue com duração média de quatro horas por sessão que geralmente ocorrem três dias por semana (Frazão et al., 2016).
No país, segundo censo realizado pela SBN (Thomé et al., 2019), estima-se cerca de 54.488 pacientes em 314 unidades renais ativas que responderam à pesquisa, sendo que na região sul são cerca de 8.027 pacientes. Em 2019 estimou-se que 139.691 pacientes estariam em tratamento dialítico e destes, 93,2% em HD. Portanto, a HD é o método mais utilizado para manutenção da vida do paciente com IRC.
Embora a HD tenha passado por muitos avanços, ainda impacta de forma negativa a saúde dos pacientes. Devido ao tratamento ocorrem mudanças de hábitos e na rotina, uso contínuo de medicamentos, restrição de alimentos com maior consumo de água, afastamento do trabalho, limitações físicas, nutricionais, de convívio social e familiar, frequentes atendimentos clínicos ambulatoriais, além da interferência no âmbito sexual, angústia e ansiedade que comprometem a qualidade de vida (Jesus et al., 2019).
O impacto da doença e do tratamento gera alterações na percepção de saúde, perdendo-se autonomia, com predomínio de fadiga e fragilidade física. Ressalta-se ainda que a redução da aptidão física é um dos aspectos com maior impacto na vida do paciente com IRC para realização das atividades do dia a dia e diminuição da qualidade de vida (Manfredi et al., 2016).
Nesta perspectiva, este estudo teve como objetivo analisar as variáveis de saúde e de aptidão física de pacientes com IRC em HD após o período de um ano.
Método
Tratou-se de um estudo de natureza descritiva e analítica, com delineamento de coorte.
Participantes
Participaram deste estudo pacientes com IRC submetidos a HD na Clínica Renal do Hospital São Vicente de Paulo, localizado no município de Cruz Alta/RS. Foram incluídos nesta amostra pacientes com tempo de HD superior a três meses e excluídos os pacientes que não participaram dos dois momentos do estudo, junho do ano de 2018 (deadline) e junho de 2019 (seguimento). Neste sentido, foram pesquisados de forma longitudinal 54 pacientes em HD.
Material
As variáveis e os instrumentos que constituíram este estudo foram os seguintes:
Prontuário físico funcional: A força e resistência de membros superiores foi avaliada utilizando o teste de Flexão de antebraço. O paciente realiza o máximo de repetições de flexão de antebraço com halter (homens - 4 kg, mulher - 2kg) com a mão preferida, durante 30 segundos e classificados conforme critérios sugeridos pelos autores (Rikli & Jones, 2008);
Força e resistência muscular localizada de membros inferiores por meio do Teste de sentar e levantar. Os mesmos levantam e sentam durante 30 segundos, sendo registrado o número máximo de repetições (Rikli & Jones, 2008);
Para avaliação da força de preensão manual foi utilizado o Dinamômetro sendo registrada a melhor marca das três tentativas como medida (Bohannon, 2008).
A função cognitiva foi avaliada pelo Mini Exame de Estado Mental (Bertolucci et al., 1994), instrumento que contém 30 perguntas sobre orientação temporal e espacial, memória de fixação, evocação, atenção, cálculo, e linguagem utilizando os seguintes pontos de corte: Sem escolaridade (19/20 pontos) e com escolaridade (23/24 pontos).
Índice Lawton-Brody foi utilizado para avaliação da independência funcional no que se refere à realização das atividades instrumentais de vida diária. Foram seguidos os pontos de corte sugeridos por Azeredo e Matos (2003): 0-5 significa dependência grave ou total; de 6-11 moderada dependência; de 12-16 ligeira dependência ou independente.
Índice de Barthel avaliou a Independência funcional do sujeito para a realização de dez atividades básicas de vida diária, totalizando 100 pontos e utilizando os seguintes pontos de corte: Totalmente dependente (100 pontos), dependência leve (99 - 76 pontos), dependência moderada (75 a 51 pontos), dependência severa (50 a 26 pontos) e dependência total (25 a menos pontos), na qual foram agrupados e considerados parcialmente dependentes os grupos com escores de dependência leve, moderada e severa (Mahoney & Barthel, 1965).
Questionário de Edmonton Frail Scale, para avaliação da Fragilidade (Perna, Francis & Bologna, 2017). Os escores para análise da fragilidade são: 0-4 não apresenta fragilidade, 5-6 aparentemente vulnerável, 7-8 fragilidade leve, 9-10 fragilidade moderada, 11 ou mais fragilidade grave (Fabricio-Wehbe et al., 2013).
Para coleta dos sintomas depressivos o Inventário de Depressão de Beck categorizando da seguinte forma: depressão mínima (0-13), depressão leve (14-19), depressão moderada (20-28) e depressão severa (29-63) (Beck et al., 1996).
Questionário Internacional de Atividade Física (IPAQ). É um instrumento que permite estimar o dispêndio energético semanal de atividades físicas relacionadas com trabalho, lazer, transportes, tarefas domésticas, e na posição sentada (tempo sedentário), com intensidade moderada ou vigorosa, durante 10 minutos contínuos, numa semana normal (Mazo & Benedetti, 2010).
Procedimento
Os instrumentos e suas respectivas variáveis foram aplicados em dois momentos (junho de 2018 - deadline e junho de 2019 - seguimento) por alunos dos cursos de graduação de bacharelado em educação física e fisioterapia, devidamente treinados e capacitados.
Os dados foram analisados por estatística descritiva e após testes de normalidade foi aplicado teste t de Student para amostras pareadas. Considerou-se p≤0,05.
O estudo seguiu as recomendações da Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde sendo aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade de Cruz Alta sob nº de parecer 2547940 (CAEE: 82699917.1.0000.5322.).
Resultados
Foram pesquisados de forma longitudinal no presente estudo, 54 pacientes com IRC em HD em uma clínica renal do noroeste do estado do Rio Grande do Sul. A maioria destes pacientes era do sexo masculino (n=31; 57,4%) com média de idade de 57,38±60,21 em 2018 e 58,36±57,09 em 2019.
No Quadro 1 estão comparados os dados de 2018 (deadline) com os de 2019 (seguimento), e evidenciou-se que os pacientes apresentaram alterações significativas no IMC, nos sintomas depressivos, na função cognitiva e na fragilidade. Em relação ao IMC os pacientes pioraram seus escores passando de peso normal (IMC de 19,9 a 24,9) para sobrepeso (IMC de 25,0 a 29,9). Após o período de um ano os pacientes em HD aumentaram também seus sintomas depressivos. Em contrapartida os pacientes pesquisados melhoraram sua função cognitiva e diminuíram sua fragilidade neste período de análise, porém, se mantiveram nas classificações de provável déficit cognitivo (menos que 24 pontos para pessoas com escolaridade e menor que 22 pontos para analfabetos) e em aparentemente vulneráveis. As outras variáveis pesquisadas não apresentaram diferença significativa.
Discussão
O presente estudo objetivou analisar as variáveis de saúde e de aptidão física de pacientes com IRC submetidos a HD de forma longitudinal no período de um ano. Neste contexto, ao comparar os dados referentes a ano de 2018 com os de 2019, foi possível verificar aumento no peso corporal por meio do IMC, nos sintomas depressivos, bem como na função cognitiva, enquanto que houve uma diminuição na fragilidade. Esses dois últimos itens analisados podem ser considerados positivos, tendo em vista uma melhora na cognição e fragilidade. Diversos estudos apontam que pacientes em HD apresentam uma piora nas suas condições de saúde como perda de massa muscular e aumento da fragilidade (Kamijo et al., 2018), dos sintomas depressivos (Khan et al., 2019) e piora da função cognitiva (Erken et al., 2019), contrariando assim alguns achados do presente estudo.
Quanto ao perfil dos pacientes em diálise neste estudo houve um predomínio do sexo masculino (58%) e da faixa etária entre 45-64 anos (41,5%). Estes resultados corroboram ao Inquérito Brasileiro de Diálise Crônica, na qual evidencia-se a prevalência do sexo masculino (58%) bem como a faixa etária de adultos em tratamento (42,6%) (Thome et al., 2019).
O perfil antropométrico dos pacientes foi avaliado pelo IMC, sendo está a medida mais utilizada nesta população (Johansen & Lee, 2015), na qual verificou-se que os pacientes evoluíram seus escores passando de peso normal (IMC de 19,9 a 24,9) para sobrepeso (IMC de 25,0 a 29,9). A relação entre tempo de hemodiálise e aumento do peso corporal não é estabelecida na literatura, visto que comumente pacientes HD apresentam baixo peso. Contudo, assim como na população em geral, a obesidade está aumentando entre os pacientes com IRC, demonstrando um potencial de investigação para elucidar essa relação.
Estudos de coorte apontam que o ganho de peso interdialítico está associado a mau funcionamento físico, fragilidade e desfechos cardiovasculares adversos (Johansen & Lee, 2015). Este é uma achado preocupante pois a obesidade pode ocasionar resistência à insulina, o que altera a atividade da lípase lipoproteica, envolvida na fisiopatologia da dislipidemia, bem como a intolerância à glicose, hiperlipidemia, aterosclerose e hipertensão (Aguiar et al., 2020), todas estas doenças são comumente associadas a IRC (Li & Ma, 2017). Dessa forma, maior ganho de peso interdialítico está relacionado ao aumento da mortalidade (Ipema et al., 2016).
Outro resultado preocupante do presente estudo foi que após o período de um ano os pacientes em HD aumentaram também seus sintomas depressivos. Em questão dos sintomas depressivos, Costa e Coutinho (2016), assinalam que os pacientes, sob o tratamento de HD, estão mais suscetíveis, tendo em vista que registraram sintomas de depressão em 20% e 50%. Neste contexto, o paciente em HD passa por mudanças consideráveis na sua vida social, no trabalho, nos hábitos alimentares, que geram alterações na sua integridade física e emocional. Desta forma este paciente geralmente tem sua qualidade de vida afetada de forma negativa pela depressão (Bastos et al., 2016).
Em contrapartida os pacientes pesquisados no presente estudo melhoraram sua função cognitiva após o período de um ano o que vai de encontro com o conhecimento científico que mostra que o comprometimento cognitivo é muito comum na IRC (Van Sandwijk et al., 2016), principalmente quando associado a HD devido ao estresse circulatório e a hipoperfusão cerebral ocasionada pelo tratamento (Wolfgram, 2018).
Outro achado contraditório a literatura científica é o fato de os pacientes em HD do presente estudo terem diminuído sua fragilidade neste período de análise, tendo em vista que existem associação entre tempo de HD e aumento da fragilidade (Kamijo et al., 2018).
Esta melhora nas variáveis função cognitiva e fragilidade são muito positivas porém, difíceis de serem explicadas, tendo em vista que não existem artigos que esclarecem estes fatos. Todavia há a possibilidade de associarmos estas duas variáveis, tendo em vista que a função cognitiva aumentou e a fragilidade diminui. Kallemberg et al. (2016) e Tsuruya e Yoshida (2018) relatam que o envelhecimento cerebral e a fragilidade são decorrências conjuntas da HD. Ainda, a fragilidade está potencialmente associada ao surgimento de distúrbios mentais (Wu et al., 2019). Sendo assim, o fato de uma variável ter melhorado pode ter influenciado a outra a melhorar.
A melhora das duas variáveis pode ser decorrente dos projetos de pesquisa e extensão que ocorrem nesta clínica renal, projetos estes que oferecem práticas de atividades físicas e fisioterapia, ações estas que auxiliam em diversas variáveis de saúde e que aumentam a socialização entre os pacientes, fator este que pode auxiliar na melhora da cognição e consequentemente na diminuição da fragilidade (Krug et al., 2020; Muller-Ortiz et al., 2019).
Conclui-se que ao longo do estudo ocorreram alterações em algumas variáveis, como a melhora na função cognitiva e fragilidade e piora de outros, como o IMC e depressão, é consequência de todo processo do fator doença que o paciente em HD sofre, como por exemplo a inatividade física, e também a própria condição de estar doente e depender de outras pessoas.
A partir de estudos são possíveis elaborar estratégias a fim de melhorar a qualidade de vida dos pacientes em HD, acompanhando suas condições e ajudando-os através de alternativas possíveis para que estes sujeitos tenham uma qualidade de vida.
Este estudo teve como limitação o pouco tempo de análise longitudinal o que pode influenciar nas mudanças das variáveis pesquisadas, porém, mesmo assim é uma pesquisa relevante devido a dificuldade de se realizar estudos longitudinais nesta população.
Contribuição dos autores
Juliedy Kupske: conceitualização, investigação, metodologia, administração do projeto, redação do rascunho original
Thais Dutra: conceitualização, investigação, metodologia, administração do projeto, redação do rascunho original
Aimê Arruda: conceitualização, metodologia, administração do projeto, redação do rascunho original
Jordana Buratti: conceitualização, metodologia, administração do projeto, redação do rascunho original
Tainara Mello: conceitualização, metodologia, administração do projeto, redação do rascunho original
Kalina Keller: conceitualização, investigação, metodologia, redação - revisão e edição, supervisão
Paulo Moreira: conceitualização, investigação, metodologia, redação - revisão e edição, supervisão
Rodrigo Krug: conceitualização, investigação, metodologia, redação - revisão e edição, curadoria dos dados, análise formal, recursos, supervisão