Eu sou excessivamente crítico ao nosso regime, à maneira como tratou a educação, sobretudo para as pessoas da minha idade para cá. Por exemplo, a primeira crítica que eu tenho é que, e eu tenho que ser crítico porque eu tinha passado dificuldades … eu quando estudava na [escola secundária], epa, porra! os filhos dos dirigentes tinham uma escola! … Havia uma escola dos filhos dos dirigentes [separada das outras] … O nosso regime funcionou muito numa tentativa de tentar criar uma elite pré-fabricada ao seu jeito, estás a ver? Quer dizer, que as pessoas que não pertencem aqui [a este grupo], por muito que eles se esforcem, nunca vão entrar … Na época de Samora, já existia estas escolas especiais. (Excerto da história de vida de um participante da 1ª geração/socialismo)
Atualmente, e partindo da perspetiva crítica de Henry Giroux, ancorado em Paulo Freire, a sociologia da educação pretende questionar o significado do ensino e aprendizagem olhando para o seu papel na construção da emancipação dos atores sociais (Giroux, 1981, 1997). Cruzando uma abordagem crítica à educação, com base em metodologias próprias da antropologia (O’Neill, 2009; Geertz, 1973), que privilegiam o contexto e o indivíduo interpretado por si próprio e em diálogo com o pesquisador, pretendemos contribuir com uma visão do terreno, trazendo as narrativas de 18 moçambicanos sobre o significado da educação na atualidade. As 18 narrativas descrevem o percurso de três gerações na África subsariana, resultado da herança colonial portuguesa, do legado socialista com a independência de Moçambique em 1975, seguido da instituição do regime democrático em 1990, estando atualmente integrado na lógica neoliberal, que se enquadra na ideia de modernidade líquida (Bauman, 2000) que caracteriza o mundo atual.
Nesse sentido, as narrativas biográficas escolares das três gerações de moçambicanos após a independência, passando pelo período do socialismo até ao neoliberalismo atual, levam-nos a questionar o que se ensina e como se ensina no espaço da instituição-escola. As vozes das três gerações recriam a história da escola ao longo de quatro décadas em Moçambique, dialogando com o período político, a aprendizagem e as críticas desenvolvidas face ao curriculum escolar, revelando o curriculum “escondido”, onde se aborda o que não é declarado publicamente, levando-nos ao entendimento da escola como um lugar de poder, transmissão de cultura e construção da realidade (Wilcox, 1982). Este lugar é descrito pelos participantes como sendo (re)produtor de desigualdades sociais (Bourdieu & Passeron, 1990; Bernstein, 1967, 1973; Coleman et al., 1966), sublinhando Maputo como o lugar por excelência de consolidação de uma elite socioeconómica fechada e com acesso privilegiado a todos os níveis de ensino (Mario et al., 2003, pp. 30-31).
Descrição do contexto etnográfico
Este estudo apresenta a experiência etnográfica desenvolvida em Maputo entre 2011 e 2013, com recolha de histórias de vida ao longo de três gerações, enquadradas em três períodos ideológicos e políticos do Moçambique contemporâneo, simbolizados por cada presidente do país desde 1975 até à atualidade (Carvalho, 2016): socialismo simbolizado por Samora Machel (1975-1986), democracia simbolizada por Joaquim Chissano (1986-2005) e neoliberalismo simbolizado por Armando Guebuza (2005-presente), tendo em conta que o último período continua a caracterizar o país, com o atual presidente, Filipe Nyusi. À medida que as histórias de vida foram recolhidas, e aquando da análise e enquadramento teórico para interpretação do material recolhido no terreno, a questão da ligação entre uma figura pública ou um self público com o qual os participantes interagem nas suas narrativas para a construção das suas identidades, ao nível da educação formal e informal, tornou-se uma das marcas que permitiu organizar as três gerações, cruzando o campo da biografia e da história.
Assim sendo, levou-se em conta que a figura de um self público, negociado e reapropriado por cada participante geracional, alvo de crítica constante, representa simbolicamente cada geração (Goffman, 1956). Nesse sentido, os períodos ideológicos e políticos do Moçambique contemporâneo são simbolicamente representados por cada líder do país (i.e. Presidente), presente na vida quotidiana das três gerações de moçambicanos através da performance dramatizada que caracteriza as interações entre indivíduo e sociedade. Segundo Goffman (1956), as interações sociais são o resultado de uma identidade situada por referência a um self determinado e reconhecido publicamente por todos, sublinhando que este processo nem sempre é consciente e é alvo de manipulação de forma a situar a identidade onde mais convém a cada ator social e seu grupo, sendo o self público manipulado conforme as necessidades identitárias. Langa (2013, p. 61) argumenta que Moçambique é uma “república presidencial”, em que o presidente do país é em simultâneo o chefe de Estado e o dirigente máximo do governo. A identificação de cada geração com o self público permite uma “segurança psicológica” (Bloom, 1990, p. 25) ao narrador, que internaliza a mesma identidade, legitimando a sua narrativa em oposição ou em sintonia com cada presidente que dominou o período escolar em que se formaram. Saliente-se que o self público evocado pelos participantes diz respeito a uma minoria da população moçambicana que completou todo o ciclo do ensino escolar, representando uma elite geograficamente localizada no sul do país, e alvo desta investigação.
A visão geracional ancorada no self público representado simbolicamente por cada presidente de Moçambique surgiu nas narrativas dos participantes, indo ao encontro do que argumenta Abrams (1982) de que os indivíduos e os tempos sociais se relacionam num dado período histórico, agregados em torno de um sentimento de comunidade, em que partilham experiências políticas relevantes para a construção da sua experiência e identidade. Esta construção é um processo dinâmico e plástico, circunstancial e em permanente reconstrução aquando da narração das suas biografias (Hall, 1998, 2000; Bruner, 1996, 2004). Em suma, optou-se por organizar as narrativas dos 18 participantes em três períodos ideológicos, em que o regime político se diferencia claramente nos dois primeiros (i.e., socialismo e democracia), introduzindo-se também como período ideológico e de cariz político o neoliberalismo, representado por Armando Guebuza, reflexo de uma política económica que “produz consumidores” e não “cidadãos” (Chomsky, 1999). Importa referir que o sistema democrático é formalmente implementado em 1990 com a revisão da Constituição. Contudo, dada a morte inesperada de Samora Machel, em outubro de 1986, Chissano sucede na presidência, abrindo caminho a acordos com o FMI e o Banco Mundial em 1987. Em 1989, após o V Congresso da Frelimo, Moçambique substitui o socialismo pela democracia como sistema político e subsequente sistema económico liberal (Morier-Genoud, 2008). Com a substituição de Chissano por Guebuza, e tendo em conta o percurso biográfico e profissional de Armando Guebuza, conhecido pela alcunha de “Gue-Business” (Lloyd, 2008, p. 444), o sistema económico liberal passa a ser caracterizado abertamente por uma linha neoliberal que se pauta pela utilidade e ligação ao capitalismo financeiro. Embora já haja práticas neoliberais no período de Chissano, os participantes associam Guebuza ao neoliberalismo como sinónimo de desregulamentação do mercado, onde os interesses pessoais se sobrepõem ao interesse público - o Estado passa a ser um “negócio” para quem está no poder político, segundo as três gerações.
Levando isso em conta, o neoliberalismo democrático, como o definiu Chomsky (1999), é o adversário da “democracia participativa”, criando um mercado global que gere e se sobrepõe aos interesses políticos nacionais, conforme narrado pelos participantes: “os médicos [em Moçambique] querem aumento do salário, mas o Estado não pode aumentar sem o consentimento dos doadores, sobretudo aqueles que dão dinheiro” (excerto da história de vida de um participante da 1ª geração/socialismo). Além disso, para compreender os três momentos olhou-se também para a herança colonial e os efeitos da Guerra Civil (1976-1992) após a independência de Moçambique, que se caracterizam por padrões migratórios para o sul do país devido à guerra, em que cerca de 58% das escolas foram destruídas em todo o país à exceção da cidade de Maputo (Berg, Maia & Burger, 2017, p. 1), uma rede escolar que já no tempo colonial privilegiava também o sul do país, conforme se detalha abaixo (Geffray, 1990; Macamo, 2006; Morier-Genoud, 2008; Florêncio, 2002).
Histórias de vida e caracterização dos participantes
O trabalho de campo etnográfico, pesquisa bibliográfica e documental, bem como a recolha das histórias de vidas efetuada, revelam o percurso de uma elite em Moçambique, traçando a história de moçambicanos que estudaram desde o ensino primário até à conclusão da universidade em Moçambique e em países como Cuba, ex-RDA, ex-URSS, Hungria, Suécia, Portugal e Brasil. Nesse sentido, falamos de cerca de cem mil moçambicanos, aproximadamente 0,42% da população do país (BTI, 2014; Langa, 2013), localizados geograficamente em Maputo, mas com origem familiar noutras províncias do país.
Nesse âmbito, Maputo revelou-se o espaço privilegiado para a recolha de histórias de vida das três gerações, dado que se define como um espaço geográfico privilegiado no que concerne ao acesso à educação, refletindo a herança colonial e a tendência dos padrões de migração do meio rural para o meio urbano, acrescido do forte impacto que teve a Guerra Civil (1976-1992) no êxodo para a capital do país, onde a guerra não se fez sentir (Geffray, 1990; Mario et al., 2003; Nordstrom, 1997). Importa salientar que, contrariamente ao período da Luta Armada de Libertação Nacional (1964-1974), em que os guerrilheiros da Frelimo dominavam a sociedade, com particular enfoque para os que tiveram acesso à educação colonial e/ou à educação dada pela Missão suíça (Cruz e Silva, 1998), “hoje em Moçambique a nova classe social artífice das decisões do país forma-se sobretudo na universidade” (Gasperini, 1989, p. 76). Refira-se que Gasperini (1989) reporta uma intenção do Estado socialista de acesso de todos à universidade, sendo que atualmente a maioria dos membros da elite dominante não possui ainda formação universitária, como é o caso, por exemplo, dos generais Makonde. Reflexo disso é também o facto de o atual presidente do país, Filipe Nyusi, ser o primeiro presidente licenciado de Moçambique.
Após análise documental e bibliográfica, assim como fruto de conversas informais junto de interlocutores privilegiados entre 2011 e 2013, complementado com trabalho de campo etnográfico, optou-se por recolher 18 histórias de vida de moçambicanos, em 2013, repartidas entre as três gerações e por género: 6 narrativas por cada geração, 3 homens e 3 mulheres em cada geração. Sublinhe-se que o acesso à educação formal é diferenciado também em função do género: 70% das raparigas em Moçambique abandona a escola aos 13 anos devido a casamentos precoces, pobreza e desvalorização da escola pelos pais e professores quando se trata da educação formal das filhas, fruto dos sistemas de reprodução social tradicionais (Loforte, 2007). Esta desigualdade é também fruto da herança das políticas coloniais de educação formal que reduziram as mulheres ao espaço doméstico, sublinhando o seu papel reprodutivo (Sheldon, 1998, 1999, 2002).
A recolha de histórias de vida segue-se a um período de trabalho de campo etnográfico, com observação participante, ao longo de dois anos em Maputo. Neste contexto, as histórias de vida apresentam-se como o método de recolha qualitativo que interliga a biografia e a história em cada geração, partindo da posição epistemológica construtivista defendida por Bruner (1996), com enfoque na teoria da narrativa entendida como um “modo de pensamento” e, em simultâneo, uma “expressão da visão do mundo”. As narrativas geracionais incluem a descrição do percurso de vida individual inserido num contexto histórico específico, que introduz elementos sociais, económicos e políticos relevantes para cada indivíduo (Goodson, 1992, 2006; Stephens, 2000). A “singularidade” de cada história individual é dependente do seu significado histórico e do seu alcance como parte de circunstâncias coletivas e movimentos históricos, que lhe conferem significado (Andrews, Squire, & Tamboukou, 2008; Geertz, 1973; Goodson, 2006; Horsdal, 2012). O quotidiano narrado pelos 18 participantes situa-se no contexto formal construído no espaço do sistema escolar, tendo em conta que os atores sociais estão conscientes quer do período histórico em que se inserem, quer das políticas educativas desenvolvidas em cada período político e ideológico (O’Neill, 2003).
Em termos de descrição socioantropológica, os 18 participantes caracterizam-se pelo seguinte (Quadro I):
Gerações | Ano de Nascimento | Origem Familiar (Províncias) | Pertença Étnica (autodefinição) |
1ª Geração (Socialismo, 1975-1986) | Nasceram entre 1957 e 1966 | 50% Oriundos de Maputo, sendo os restantes de Inhambane (Sul), Zambézia (Centro) e Tete (Centro) | Definiram-se como Assimilado, Zulu, Changana e Bitonga (Sul), Sena e Nyungwe (Centro) |
2ª Geração (Democracia, 1986-2005) | Nasceram entre 1974 e 1980 | 50% Oriundos de Maputo, sendo os restantes de Inhambane (Sul) e Sofala (Centro) | Definiram-se como Macua (Norte), Tsua (Centro), Ndau (Centro), Chuabo e Sena (Centro) e Bitonga (Sul) |
3ª Geração (Neoliberalismo, 2005-presente) | Nasceram entre 1982 e 1987 | Maioria oriunda de Maputo, um da Zambézia (Centro) | Definiram-se como moçambicanos, exceto um (Changana - Sul) |
Fonte: Elaborado pela autora
Nas histórias de vida, os participantes ligam o período de nascimento com o impacto da independência do país e suas consequências, bem como com a sua origem familiar e do grupo étnico, para descreverem quem são e como são.
Nasci… [na Província de Sofala] … Aquele bairro, que quando chove, enche de água! Nós culpávamos o meu pai às vezes: porque é que na altura das nacionalizações não foi também ocupar um dos prédios, né? [Referência ao período socialista/Samora Machel] … Eu sou Ndau, o meu pai e a minha mãe, todos são Ndau… Onde nós crescemos tinha vizinhos Senas e Ndau, mas nesse processo, apesar de tudo, sempre tivemos um bom relacionamento com os nossos vizinhos, mas em casa sempre nos ensinavam quais eram as diferenças entre os Senas e os Ndau. E havia sempre aquela coisa, aquela ideia que dava a entender que os Sena não eram muito higiénicos… Mas tirando isso, os Sena eram melhores, não é? Quer dizer, comparados com os Chuabos… Esses mesmo [Chuabos] é que tinham aqueles qualificativos: Chuabos comem cobra… E os Senas, havia uma coisa que também se dizia: que eles comiam ratos. Nós, os Ndau, comíamos rato, mas não era aquele rato pequeno, era aquele grande!... Do nosso ponto de vista, nós éramos os melhores! (Excerto da história de vida de um participante da 2ª geração/democracia)
Nas narrativas biográficas escolares, as três gerações refletem a ligação entre a língua, a religião e o processo de escolarização, que caracteriza uma minoria de moçambicanos com acesso ao ensino superior e em meio urbano, população-alvo desta investigação.
Gerações | Língua Materna | Religião (autodefinição) | Habilitações académicas | Profissões |
1ª Geração (Socialismo, 1975-1986) | Português (50% dos participantes, mulheres); Changana, Ronga, Bitonga e Nyungwe para os restantes 50% (homens) | Católicos não praticantes e, em simultâneo, praticantes da religião tradicional africana (RTA) | 2 com doutoramento; 2 com mestrado; 2 com licenciatura | Docentes nos diversos níveis de ensino |
2ª Geração (Democracia, 1986-2005) | Português (50% dos participantes, mulheres); Tsua, Bitonga e Ndau para os restantes 50% (homens) | Católicos não praticantes/ praticantes da RTA; havendo também 1 participante islâmico e 1 evangélico | 4 com mestrado; 2 com licenciatura | À exceção de um participante, que trabalha no sector privado, são todos docentes universitários |
3ª Geração (Neoliberalismo, 2005-presente) | Português com incorporação de expressões das línguas nacionais e do inglês | Católicos (mulheres possuem forte ancoragem em valores morais); havendo também 1 evangélico e 1 islâmico | 4 com licenciatura; 2 em processo de conclusão da licenciatura | 3 trabalham no sector privado; 2 são estudantes universitários e 1 docente universitário |
Fonte: Elaborado pela autora
A ligação que se estabelece entre as profissões, a religião e o processo de escolarização está diretamente ligado à origem familiar, étnica e social.
A figura marcante é o meu pai… apesar de ser uma pessoa muito rude, uma pessoa muito ríspida, sem preparação em termos sociais, era uma pessoa que queria que os filhos estudassem. Para ele, o valor estava na educação… Mas a minha mãe fazia a outra parte da educação… a parte da educação informal… era tradicional… A minha mãe antes tinha sido professora primária… Sim, eu sou do sul, e ele em casa sempre falou português, mas um português muito mal falado, com muitos erros, porque ele foi o filho mais velho, teve acesso àquela educação até à 4ª classe [no tempo colonial], mas o convívio era com pessoas do campo, porque o meu pai cresceu [na Província de] Gaza… Eu, a única coisa que aprendi como indivíduo, foi a tal diferença entre ser da cidade ou do campo, o comportamento entre pessoas da cidade e do campo… deu-me para ver que havia dois mundos e que havia a forma de educar que era completamente diferente na cidade e no campo. O respeito e a submissão exagerada, porque no campo, eles estão demasiado submissos… Sim, porque quando vou a Nampula… é que eu, de facto, convivo com outro grupo étnico… Eu estou num espaço diferente… A começar pelas histórias…. Muitas histórias ligadas ao curandeirismo, superstição… Noto que lá o feiticeiro, o curandeiro, a superstição é muito presente!... Eu já tinha notado isso em Cabo Delgado e Niassa… Eu sou brusca, sou rude, não sou doce… A forma de eu rir, a forma de eu dizer algumas intervenções, os meus alunos é que me chamavam a atenção “a professora é tipicamente MaChangana…” [risos]. (Excerto da história de vida de uma participante da 1ª geração/socialismo)
Nas histórias de vida das três gerações, as experiências do período político partilhadas pelos participantes estão interligadas com a forma de ensino e aprendizagem que caracteriza cada geração: a escola no período socialista (1975-1986), democrático (1986-2005) e neoliberal (2005-presente) e seu impacto na criação de autonomia ou emancipação dos atores sociais.
Biografias escolares das três gerações: a escola socialista, democrata e neoliberal
O sistema escolar é reflexo do momento político e ideológico que o enforma, estando a noção de cultura e escolarização interligadas com a ideologia e o poder em cada momento particular (Giroux, 1981). Conforme argumenta Giroux (1981, p. 27), a cultura serve como elemento de mediação entre a sociedade e as suas instituições, como a instituição-escola, levando em conta que a cultura é situada e construída pela forma como o poder é exercido em cada sociedade num dado momento, concluindo que a cultura é plurifacetada, fazendo sentido falar em culturas que são o reflexo de um dado momento ideológico e de exercício do poder. Assim sendo, a escola reproduz nas suas práticas, o momento político e as vivências partilhadas por cada geração.
Nesse sentido, a 1ª geração/socialismo tem como referência países como Cuba, ex-RDA, ex-URSS, Hungria (países socialistas) e Brasil e Portugal, havendo uma ligação entre cada país e a área de especialização ou estudo necessária para o desenvolvimento de Moçambique.
É a consequência direta do comunismo: uns iam para a RDA, uns iam para a Hungria, muito poucos, e é engraçado que o grupo da Hungria era pequeno mas é o grupo dos técnicos… Enquanto tem muita gente da RDA que ficou desempregada, os que iam para lá [Hungria] eram pessoas altamente capacitadas, técnicos capacitados e iam para um nível muito alto e vieram com altas qualificações… É um pouco como os cubanos. Os cubanos também são técnicos altamente qualificados para a medicina, para a estatística, para a música… Os russos também… da Rússia, da Ucrânia. (Excerto da história de vida de uma participante da 2ª geração/democracia)
Contudo, a 1ª geração sublinha a ligação entre pertença política hegemónica (i.e. partido político dominante, Frelimo) e posição na estrutura social de Moçambique. Esta pertença é também uma herança dos tempos coloniais, descrita nas narrativas da 1ª geração e por autores como Cruz e Silva (1998, p. 398), sublinhando que Moçambique, enquanto território ultramarino, foi marcado “por uma estrutura social discriminatória e uma política indígena desenhada para reforçar ... a reprodução da autoridade colonial”. Sumich (2007) argumenta também que o Moçambique pós-colonial continua a guiar-se por padrões de desigualdade como nos tempos coloniais, salientando que quem tem acesso ao poder no país teve acesso à educação formal no tempo colonial.
Não, não, eu não estudei nas missões, eu estudei na escola oficial [no tempo colonial] … Então o que é que eu notava? Na escola oficial, naquela altura, nós usávamos bata branca, era uma turma pequena, filhos de elite, enfermeiros, gente da cantina … filho de administrador … Tu tinhas negros, mulatos e tinhas brancos, mas um sistema separado … Então estávamos numa sala onde tinha 1ª, 2ª, 3ª até 4ª, tudo junto … a professora estava ali … éramos poucos, acho que menos de 50 … o resto das pessoas estudavam em salas maiores, sentavam, não me lembro se sentavam no chão, mas sentavam naqueles bancos de troncos … O sistema preparava a gente para pertencer à elite. (Excerto da história de vida de um participante da 1ª geração/socialismo)
Em simultâneo, nesta geração surgem como forte marca identitária os processos de resistência ao discurso ideológico dominante. O que o regime dizia, ao afirmar a construção do “homem novo”, sem ter em conta questões de género, religião ou etnia (Cruz e Silva, 1998; Sumich, 2007), não era necessariamente a experiência pela qual os participantes da 1ª geração passavam e com isso construíam a sua identidade política e social múltipla e dinâmica.
Em 1977 eu acabo selecionado para ir a Cuba… Nós fomos selecionados, por cada província eram 200 miúdos, que chegou a ser um grupo de 1200 pessoas… [Quando chegam a Cuba] Os gajos distribuíram as roupas e aí houve um dos grandes contrastes da nossa vida. Primeiro, foi um gajo nunca tinha recebido tanta roupa para usar! Uns dois pares de calças, dois pares de camisas, uma gravata, um casaco, depois roupa de ginástica, sapatos… Um gajo nunca tinha tido isso! … E depois… a alimentação. Tu acordavas de manhã, tinhas o matabicho, ias para a escola; depois tinhas lanche, segunda refeição; depois ias outra vez à escola; depois tinhas almoço; depois à tarde também tinhas um lanche e depois tinhas o jantar. Então, cinco refeições! Nunca tinha passado na cabeça de ninguém, de nós, uma coisa dessas! … E outra coisa… [Em Cuba] era já trabalho de segunda a sexta. Se tu tens aulas à tarde, então tu das 8 às 11h30 estás no campo… Trabalhar a sério aquilo ali! … E isso começou a não funcionar bem na cabeça do pessoal… A ideia de reivindicar começou… Mas também me pareceu que os cubanos, ou não sei se é o governo moçambicano, não estavam muito claros sobre o que iam mandar os alunos lá estudar… A experiência de Cuba assim, [foi] pensada no joelho… Aquilo foi para lançar como cobaias os filhos dos pobres, porque nenhum filho de dirigente foi posto naquela prova. (Excerto da história de vida de um participante da 1ª geração/socialismo)
A 1ª geração olha de forma crítica e encontra a distinção (Bourdieu, 1979), a reprodução social da estrutura de classes, embora neste contexto parta não apenas daquilo que é a herança familiar e seu legado de capital cultural, mas também da pertença política. Os filhos dos pobres iam estudar para Cuba, os filhos da elite para a Hungria, por exemplo.
Quanto à 2ª geração/democracia já não há estudantes em países socialistas, mas sim a possibilidade de continuar os estudos em países europeus, incluindo Portugal, Noruega e Suécia. Os participantes da 2ª geração identificam-se com a mudança do período ideológico e político do socialismo para a democracia, quando Joaquim Chissano assume a presidência do país, embora a dimensão do registo escondido/não público (Scott, 1985) seja muito marcante e continue a existir uma forte crítica face à identificação política e consequente posicionamento na estrutura social. Esta geração fez percursos escolares para países europeus em que existiam regimes políticos democráticos ou que se estavam a consolidar à data, trazendo por isso como recurso identitário uma forte crítica ao que foi o período de Chissano/democracia aquando do regresso ao país.
Nesse sentido, a 2ª geração apresenta narrativas marcadas por uma forte crítica ao Estado e à sua tentativa de condicionar o futuro dos participantes. Esta geração refere que o período do socialismo permitiu um maior acesso à educação para todos, sendo que com a instituição do regime democrático, acrescido do fim da Guerra Civil, passou a existir a possibilidade de escolha de estudar em escolas privadas, contudo uma escolha marcada pelo facto de que só estuda quem tem capacidade financeira. Em termos de discurso escondido há uma constante referência à desigualdade social e às diferenças regionais entre o norte sem acesso e o sul com acesso privilegiado à educação e a (in)capacidade de construir um futuro determinado pela pertença política.
Eu nasci depois da independência … Eu sou um fracasso … [como] frelimista … Eu tinha 16 anos … quando há os Acordos de Paz [em 1992] … e continuo a estudar na escola secundária e depois vim à universidade onde também venho a encontrar professores que muitos deles tinham ido estudar ao Brasil e não tinham voltado tão socialistas assim … isso foi … uma coisa que me marcou: a questionar, a não alinhar sempre com as coisas do regime, eles também insistiam nisso, nas aulas … [aqui] não [podes] tomar partido em relação a coisas que tu sabes, né? É preciso estar calado infelizmente …. Aqui tu tens todos os dias convite para ter cartão [da Frelimo] … Eu não quero fazer parte… Mas todos os dias é uma pressão enorme. (Excerto da história de vida de um participante da 2ª geração/democracia)
A ideia de que a pertença política determina o curso da vida, em que ter o “cartão vermelho” (da Frelimo) determina o acesso à universidade pública e posterior integração e progressão na função pública, é marcante na descrição da instituição-escola liberalizada, do período democrático, conforme salientado também por outro participante quando descreve a sua ida para a universidade em Maputo:
Entro para a universidade… A universidade é uma coisa boa, mas no meu curso só tínhamos entrado duas pessoas da Beira, tudo o resto não eram da Beira. Estamos em 93, a ideia da Renamo, de quem vem da Beira é da Renamo está presente. Qualquer contestação que fizéssemos … e na sala havia muita gente da Frelimo... No lar [de estudantes] estava melhor, havia muita mistura, havia muita gente que vinha do centro e norte… Sentia no princípio que as pessoas nos viam com reserva… Há de facto esse momento de choque, em que a gente se tem de afirmar pela qualidade … aquelas desconfianças iniciais depois passam, viu-se que não tinham razão de ser e a vida continua. (Excerto da história de vida de um participante da 2ª geração/democracia)
No que diz respeito à 3ª geração, as descrições de estudos formais fora de Moçambique são praticamente inexistentes, estando correlacionadas com o viver em tempos de incerteza, numa modernidade líquida, em que o individualismo domina as relações sociais, estando em constante mutação, numa sociedade que é sublinhada pela ideia de consumo e num tempo presente estendido, como que suspenso, num estado de espera caracterizado por altos índices de desemprego (Bauman, 2000; Groes-Green, 2010; Honwana, 2013, 2014; Nowotny, 1994).
A 3ª geração sublinha nos seus discursos públicos o facto de que quem tem capacidade económica pode estudar até à universidade, mas em simultâneo tendo uma consciência clara de que não será a escola que lhes dará oportunidades profissionais ou lhes permitirá criar um futuro sem incertezas.
Os grandes problemas políticos que nós temos resolvem-se com a escola. Se as pessoas começarem a ir à universidade, à escola, tiverem acesso à escola, hão de ser mais esclarecidas, hão de poder criticar mais, hão de poder exigir mais e hão de começar a participar mais nas soluções. O que está a acontecer neste momento é que tu tens um punhado de pessoas que participam nas soluções. Os outros todos não fazem nada, ok? … Ainda muita gente não tem acesso à educação … Existe uma classe que tem acesso à educação, ok? … Eu vou dar o exemplo do que está a acontecer agora, que é o mercado de emprego, que é como está. Nós estamos a ir para uma altura, uma fase em que só ser licenciado como tal já não é suficiente, ok? Então, existe uma cultura de nepotismo que está a ser criada. Que é o quê? Eu para ter emprego ali, eu tenho de conhecer alguém… Já te dás ao luxo de chegar lá e ter alguém lá dentro que te facilita a entrada. Que te diz: “Olha, paga-me tanto. Eu te dou a vaga”. Então isto acontece… É utopia dizer que isso não existe. Existe e está a acontecer. (Excerto da história de vida de um participante da 3ª geração/neoliberalismo)
A nível do discurso escondido, esta geração refere a corrupção e a recusa em aceitar as novas tendências na educação - a aposta no ensino técnico-profissional - por considerar ser este um ensino que reflete o período colonial. Nesse sentido, esta geração menciona que esta nova tendência na educação formal pretende transformar a escola numa espécie de fábrica de produção de trabalhadores manuais, diminuindo a sua importância como instituição de conhecimento. Hoje em dia, a escola conduz os atores sociais, através da utilização de uma linguagem comercial, de privatização e desregulamentação, a uma autonomia definida por uma lógica de mercado orientada para o individualismo, para a competição e para o consumo, levando à procura de um “conhecimento rentável” (Giroux, 2002). É nesse sentido que a geração do neoliberalismo, a 3ª geração, em que se assiste de forma mais marcada a esta lógica de escola-mercado, descreve com nostalgia o período socialista, expressando o desejo de regressar a esses tempos, caracterizados por um estilo autoritário de ensino, referindo inclusivamente a necessidade de reintrodução do treino militar na instituição-escola.
A geração neoliberal, ao mesmo tempo que descreve uma escola orientada para o fornecimento de mão de obra para o mercado de trabalho, possui um discurso crítico face ao momento ideológico em que se insere, que lhe advém dos recursos informais de aprendizagem. Giroux (2002) refere que o recurso à memória é uma ferramenta de resistência a uma mercantilização do ensino, invocando outras formas de construção do conhecimento, como narrado pelas três gerações de moçambicanos ao referirem que é na esfera informal (i.e. família, comunidade e religião) que aprendem a ser críticos e autónomos, transpondo para as suas práticas em meio escolar o conhecimento adquirido na esfera informal.
Biografias escolares partilhadas: a autonomia, as gerações e a escola
Uma ideia transversal às narrativas biográficas das três gerações é o sentido crítico do que é a realidade escolar em Moçambique, em que há um sistema autoritário de ensino com o qual não se identificam e que caracteriza a escola desde os tempos coloniais até à atualidade. Como narra um dos participantes, aquando da reflexão sobre o que transmitiria aos seus filhos:
Eu acho que coisas materiais eu não deixaria… Algo que eu fui aprendendo é não me apegar a coisas materiais… porque quando nos apegamos demais, facilmente caímos em frustração… Uma das coisas que poderia partilhar com ele [o filho] é a questão [de] como lidar com as coisas no dia a dia. Foi o que o meu pai me ensinou… Até certo ponto a universidade tentou formatar-nos…Tens de fazer assim como eu estou a dizer [os professores] … senão ficas de fora! Essa coisa de impor… não resulta! (Excerto da história de vida de um participante da 3ª geração/neoliberalismo)
Embora a 3ª geração sinta nostalgia face ao período escolar do período socialista, associa-o ao facto de o Estado, à data, indicar caminhos com saída profissional, diminuindo desta forma a incerteza do futuro, atualmente pautado por altos índices de desemprego. Contudo, embora a escola seja descrita nos três momentos como seguindo um modelo autoritário, há a consciência de que o sistema de ensino é deficitário, porque Moçambique é um país com um desenvolvimento económico e social desigual.
Não tenho dúvidas que se democratizou muito [a escola] … a maior parte das pessoas tiveram mais acesso… No tempo colonial não havia… ensinavam o que queriam para reproduzir a presença deles aqui, a ideologia deles… Mas hoje não, há muito mais esforço para fazer chegar a escola onde estão as pessoas… O Estado faz muito esforço… Não posso deixar de assinalar esse esforço, o país é vastíssimo! … É verdade que há corrupção… Ora, em termos de qualidade, que é outro debate, nesta altura é difícil garantir qualidade em todo o país e acredito que um dia vamos chegar lá. Mas os professores que temos vivem em condições que não é possível dar um ensino de qualidade aos miúdos, porque eles não vivem bem: estão frustrados com o salário que recebem e vivem em condições tristes, muito pobres e não é possível eles acordarem bem-dispostos para darem aulas. (Excerto da história de vida de um participante da 2ª geração/democracia)
A tónica dominante nas biografias escolares das três gerações coloca também a ênfase no papel da educação informal, conforme mencionado anteriormente, onde atores sociais como a família, a religião e a comunidade são uma referência central na constituição de um sentido crítico e criação de autonomia pessoal. A escola é um instrumento social de integração na modernidade, mas o que lhes permite a construção de uma autonomia reflexiva e crítica é o espaço social informal, o contacto com os seus pares no meio familiar, na comunidade e com recurso à religião. A educação informal é entendida como o processo de aprendizagem que ocorre “dentro do contexto” cultural e/ou étnico de cada participante, em que interage com os seus pares desde a infância até à idade adulta (Strauss, 1984), incorporando desta forma os valores, as normas e as práticas rituais e tarefas do quotidiano partilhadas pelo grupo. Assim sendo, a educação informal está relacionada com a noção de capital cultural de Bourdieu e Passeron (1990), em que cada participante possui a herança cultural específica da sua região ou grupo étnico, transmitido pela família e comunidade em que se inserem, conhecimento que incorpora a definição de identidade pessoal e familiar, encontrando-se presente no registo não público ou escondido (Scott, 1985) aquando da entrada na escola ou sistema de educação formal.
[Experiência educativa mais importante para ti] Eu sou produto de uma combinação aqui: dessa forte educação religiosa, do lado da minha mãe. Porque de facto há uma série de valores e ela buzinava tanto … minha mãe não bebia, não fumava … mesmo até nós crescermos, não queria que nós bebêssemos. Há esse lado forte da igreja … A educação que eu tenho, digamos, é esse lado da igreja… Nós [raparigas] tínhamos que ir à machamba, tínhamos que aprender a cozinhar e a minha mãe estava ali, aprender a cozinhar, havia escala: cozinhar, rachar lenha, ir à machamba… Essa rigidez, essa forte educação religiosa. E havia um outro lado: a minha mãe não gostava muito de curandeirismo, ela era muito agarrada à igreja, a igreja Protestante… Preferia que nós fôssemos aos profetas… como aqueles que costumam estar na praia… aqueles ma-Ziones, preferia que nós fôssemos ali, mas curandeiro como tal, não. Esse é o lado da minha mãe. O outro lado é a disciplina, que nós tínhamos do lado do meu pai. O meu pai trabalhava numa empresa privada, onde havia uma disciplina, aquela disciplina própria de uma empresa privada e próspera como a X, com os portugueses. (Excerto da história de vida de um participante da 2ª geração/democracia)
Face à descrição do percurso escolar, inserido na história de vida de cada participante, uma das questões que se salienta é: qual o significado da escola ou quando é que a escola se torna significativa para os participantes? Para responder a isso, olhamos para a noção de autonomia ou emancipação de Freire (1996). O autor defende que a autonomia está relacionada com a capacidade de decisão e liberdade que cada indivíduo possui num dado momento social e num determinado contexto político. Nesse sentido, Freire (1996) alega que a instituição-escola deve dotar os seus estudantes de autonomia, dando-lhes a faculdade de escolha, recorrendo a pedagogias que permitam a capacidade de criar as suas próprias representações do mundo, estratégias que os empoderem na criação de soluções para a resolução dos seus problemas, e a consciência de que cada um é um elemento que contribui para o contexto social e histórico em que vive, podendo intervir de forma ativa na mudança ou continuidade do regime em que se insere. Giroux (1997) acrescenta que a escola é hoje olhada como uma instituição que deve ser significativa, criando atores sociais com capacidade crítica e emancipadora, na linha de Freire, apelando a uma pedagogia crítica que empodere os estudantes a tornarem-se atores sociais autónomos.
As três gerações reforçam a importância de construir o conhecimento em contexto escolar de forma crítica, em que cada estudante deve ser responsável pelas decisões que toma, sendo os professores mediadores desse processo de construção. Nesse sentido, as três gerações apontam críticas à instituição-escola, mencionando que a escola distingue, separa e marca diferenças muito mais do que a sociedade. É também salientado que Moçambique é um país caracterizado por uma forte mobilidade migratória que se reflete na forma como o contexto informal impacta na escola como instituição, acrescentando saberes e estratégias de aprendizagem fruto das experiências vivenciadas pelos participantes. A mobilidade migratória, que faz parte da construção da história de Moçambique, foi reforçada com o advento da Guerra Civil e criou uma capacidade de autonomia fora do contexto escolar que se reflete nas estratégias identitárias de aprendizagem e aplicação do conhecimento para a criação de atores sociais empoderados.
Tu tens moçambicanos de todas as origens possíveis e imaginárias … Isso faz parte de ser-se moçambicano … Tu apanhas gente da aldeia não sei o quê que tem experiência, que viveu no Zimbábue, depois foi para o Malawi e depois não sei para onde … tipos que estiveram na Tunísia, tipos que estiveram na Argélia, nos Estados Unidos, na Alemanha, os Madjermanes, que vieram das aldeias, e falam perfeitamente alemão … e depois tens um gajo que fala italiano … Há muito pouco moçambicano que nunca saiu do sítio, tu não tens quase ninguém, tu quando vais ver as histórias pessoais dos moçambicanos, todos eles, e lá está, aqueles que são mais considerados nas aldeias são esses. E por causa da guerra nós fomos obrigados a movermo-nos muito, e assim que a guerra parou, ainda nem se tinha reabilitado as estradas, a primeira coisa que os moçambicanos começaram a fazer é viajar; durante a guerra os moçambicanos enfrentavam tudo para viajarem e ir ter com familiares; o ir visitar o familiar é muito importante, portanto esta mobilidade é característica do moçambicano. Nós somos muito mais abertos do que as pessoas imaginam. (Excerto da história de vida de uma participante da 2ª geração/democracia)
Do socialismo ao neoliberalismo, a escola em Moçambique é descrita pelos participantes, complementada pela pesquisa bibliográfica e documental, da seguinte forma:
Olhando para as últimas quatro décadas do ensino formal em Moçambique, a escola como instituição é descrita como um espaço reservado à manutenção e reprodução do conhecimento das elites. No entanto, o fenómeno da “geração do 8 de março” de 1977, durante o período socialista, teve um forte impacto na inversão das taxas de iliteracia no país, sendo um fenómeno único nas políticas públicas de educação globais e referenciado pelas três gerações.
Então eu estive aqui no colégio Pio XII, que era o Centro 8 de Março [em 1977], e ficámos lá durante um ano internados… Foi uma experiência única, para mim, eu nunca tinha saído de casa. De repente estou num internato, estou numa camarata com oito pessoas, tendo que conviver com pessoas diferentes, foi um pouco difícil… Havia dois blocos: o bloco masculino e o bloco feminino… E depois lá no 8 de Março, nós tínhamos de ter a disciplina militar. Tínhamos que vestir a farda militar e tínhamos… treinos militares… Ali no 8 de Março tínhamos vários grupos: tínhamos o grupo do professorado, no qual eu estava integrada; tínhamos o grupo dos propedêuticos, que depois saíam para engenharias, para matemática, para outros ramos; tínhamos o grupo dos pilotos, da força aérea; e o dos políticos também… A organização tinha muito a ver com a militar. Nós tínhamos pelotões, o nosso era o grupo B, o outro era o C … Eu acho que o 8 de Março, a importância foi aprender a trabalhar em equipa, conhecer pessoas diferentes e sobretudo a solidariedade… ajudar-nos uns aos outros… o aprender a disciplinar a nossa vida, eu acho que isso foi fundamental … aí é que aprendi a disciplinar o meu tempo… o curso foi intensivo, começou no dia 7 de março, depois disso fomos logo às aulas. Começou em março, acabou em dezembro. Em fevereiro de 1978 comecei a dar aulas… tinha 17 [anos]. (Excerto da história de vida de uma participante da 1ª geração/socialismo).
A suspensão dos dois últimos anos do ensino secundário entre 1977 e 1980, permitindo desta forma aos alunos tornarem-se professores para colmatar a ausência de docentes no país, contribuiu também para a redução da taxa de iliteracia de 90% em 1970 para 48% em 2008 (AfriMap & OSISA, 2012). Contudo, o facto de a escola veicular a transmissão do conhecimento usando a língua da elite do período colonial, a língua oficial de Moçambique após a independência - o português - vem reforçar a ideia de que a escola é reprodutora de desigualdades sociais. Conforme argumenta Arendt (1961), a língua em que se aprende é determinante para a consolidação do Estado como instituição hegemónica que se projeta no desenho curricular do ensino formal. Além disso, o “capital linguístico” que cada estudante possui reflete também o habitus de classe (Bourdieu, 1979; Bourdieu & Passeron, 1990), reforçando a ideia de que a educação formal não tem vindo a contribuir na atualidade para os processos de mobilidade social (Harber, 2014). Bourdieu (1964) sublinha que a origem social dos pais tende a tornar a escola uma instituição que reproduz as elites, indo ao encontro do que diz Harber (2014) sobre a pouca mobilidade social que a instituição tem vindo a proporcionar aos estudantes oriundos das diversas classes sociais.
Embora os processos de democratização, direitos humanos e desenvolvimento no acesso à educação formal se tenham vindo a generalizar com o fim da II Guerra Mundial (Schofer & Mayer, 2005), a globalização enquanto fenómeno homogeneizador tende cada vez mais a diminuir o acesso a uma educação para além das necessidades impostas pelo mercado de trabalho, em que a língua é um meio de distinção social. De acordo com as narrativas das três gerações, quanto mais nos afastamos da província de Maputo, onde há um acesso privilegiado ao ensino formal, mais se encontram falantes cuja língua materna é uma das 23 línguas nacionais de Moçambique (Firmino, 2005).
A questão do português é de facto uma questão muito séria, no sentido de que só falávamos português na escola. Em casa continuávamos a falar em ndau [região centro de Moçambique]. E na escola havia outra questão na altura: era proibido ser apanhado a falar [outra língua] … Então na escola estávamos todos a falar português, fazer esforço para falar português e depois quando íamos para casa, aí continuava o ndau. (Excerto da história de vida de um participante da 2ª geração/democracia)
Porém, na 3ª geração, há uma interiorização de que escola é sinónimo de desenvolvimento, acesso ao trabalho, combate à incerteza dos tempos modernos. Então falar português torna-se sinónimo de estatuto social, de pertença social, para além da pertença política.
Eu cresci a falar português… Os meus pais, a minha mãe principalmente era educadora! Dizia: “Essa coisa de changana aqui, não funciona agora. Entra nesta linha do português, vocês devem aprender português, português!”. Só que o meu pai era de uma outra vertente … E o meu pai, o que fazia? Atirava-nos, por exemplo, para alguns vizinhos, eu tenho alguns vizinhos que, epa!, para brincar com eles é preciso falar changana… Se você não falar changana, “é branco aquele gajo ali!”. (Excerto da história de vida de um participante da 3ª geração/neoliberalismo)
Conclusões
As narrativas escolares das três gerações de moçambicanos possuem dois traços partilhados: a crítica ao sistema de ensino mercantilizado e a existência de um estilo de ensino autoritário, em que o professor é a figura dominante em contexto escolar. Os participantes descrevem o espaço informal como sendo o espaço privilegiado de aprendizagem, embora refiram que a escola é fundamental para igualizar, globalizar e modernizar o país.
Com a 1ª geração/socialismo, a escola como instituição é descrita como um instrumento do Estado que responde às necessidades do país recém-independente. É o Estado que determina o que cada um deve estudar de forma a colmatar as falhas existentes no Moçambique pós-colonial. Em simultâneo, com o desenvolvimento da política pública de educação que resultou na “geração do 8 de março” de 1977, a escola socialista empoderou estudantes ao torná-los professores, criando-lhes uma capacidade de autonomia e emancipação que se reflete na 2ª geração, a da democracia, e que é ensinada pela geração anterior, a socialista.
A 2ª geração/democracia já enfrenta as consequências das políticas de ajustamento estrutural do FMI, com a intervenção da comunidade internacional e consequente criação de níveis de corrupção dentro do aparelho do Estado (Bowen, 1991; Hanlon, 2004). Nesta geração, a escola continua a ser um espaço para as elites urbanas e do sul do país, embora se assista à criação de instituições de ensino superior privado.
A 3ª geração/neoliberalismo descreve a escola como um instrumento necessário para a integração no mercado de trabalho, perdendo as suas características de espaço de aprendizagem, recorrendo a memórias dos tempos do socialismo em que a escola promovia a autonomia e, em simultâneo, providenciava um futuro sem incertezas.
Em simultâneo, e conforme argumenta Giroux (2004, p. 797), a escola pública está “sob ataque” porque possui o potencial de tornar-se uma “esfera pública democrática”, seguindo uma pedagogia crítica, fornecendo aos estudantes, enquanto atores sociais, “capacidades, conhecimento e valores necessários” para que se tornem “cidadãos críticos”. O autor sublinha que é na escola pública que os atores sociais encontram um espaço para criar uma consciência crítica, através do diálogo, de que o poder ou o regime político em que se inserem pode ser responsabilizado pelas políticas públicas que desenvolve. A escola pública deve “desconstruir e substituir” o discurso dominante de comercialização que domina o panorama escolar atual, criando “modelos” que reproduzam a globalização e as implicações de uma democracia global e neoliberal (Giroux, 2004, p. 806). Contudo, e conforme salienta Harber (2014), é necessário levar em conta que o sistema de educação formal em contextos pós-coloniais é ainda caracterizado pela herança colonial, privilegiando a (re)produção e formação de elites, estando por vezes desadequado face às realidades regionais e seus sistemas de conhecimento locais.
Nesse sentido, as três gerações reforçam nas suas narrativas biográficas o papel da educação informal, através da família, comunidade e religião, como essencial na construção de uma emancipação e capacidade de autonomia face à instituição-escola que continua igual ao que era desde os tempos coloniais - um espaço que não promove a mobilidade social, privilegiando as elites ligadas em particular ao partido político que continua a liderar o país desde a independência (i.e. Frelimo).