Introdução
A gripe é uma infeção respiratória sazonal provocada pelos vírus Influenza, que se associa a elevada morbilidade e mortalidade em grupos de risco1. A pandemia mundial de gripe A em 2009 evidenciou bem que as grávidas e as mulheres nos primeiros 15 dias de puerpério constituem grupos de risco para doença grave, apresentando maior incidência de complicações maternas e obstétricas2. Verificou-se um risco mais elevado, relativamente ao da mulher não grávida, de internamento hospitalar (4-18 vezes), de admissão em Unidade de Cuidados Intensivos e de morte3), (4. A gripe na grávida internada associou-se também a um risco três vezes superior de parto pré-termo5.
A principal complicação da gripe na gravidez é a pneumonia (viral ou bacteriana secundária), sendo mais frequente no segundo e terceiro trimestres de gestação. As alterações cardiopulmonares fisiológicas da gravidez e a alteração do sistema imunitário parecem contribuir para a gravidade da doença na grávida1.
A vacinação contra a gripe durante a gravidez tem o potencial de reduzir a incidência de desfechos adversos para a grávida e para o feto (internamento, admissão na Unidade de Cuidados Intensivos, morte materna, parto pré-termo) e, por transferência de anticorpos por via transplacentar, de proteger o filho nos primeiros meses de vida6. Adicionalmente, vários estudos demonstraram o impacto da vacinação na redução da incidência e gravidade da gripe nas grávidas, puérperas e recém-nascidos7), (8), (9.
Assim, atualmente, a vacinação sazonal contra a gripe durante a gravidez é fortemente recomendada.
De facto, desde 2012, as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) incluem as grávidas no grupo prioritário da vacinação contra a gripe10. Em Portugal, desde 2014, a Direção Geral da Saúde (DGS) recomenda a vacinação contra a gripe de todas as grávidas, independentemente da idade gestacional, entre outubro e dezembro. Contudo, este grupo não era abrangido pela vacinação gratuita em 2019/2011.
Apesar das recomendações emitidas por diversas sociedades8), (10), (11 no sentido de se promover a vacinação das grávidas contra a gripe, a cobertura vacinal é ainda muito reduzida neste grupo (50% nos EUA, 40-65% no Reino Unido, inferior a 25% noutros países europeus) (9, sendo praticamente desconhecido o seu valor em Portugal.
Este foi um estudo piloto que teve como objetivo principal determinar a taxa de grávidas vacinadas contra a gripe e os principais motivos da não vacinação e, como objetivo secundário, comparar a taxa de vacinação contra a gripe com a taxa de vacinação contra a Bordetella pertussis nas grávidas.
Material e métodos
Estudo observacional prospetivo realizado num hospital terciário entre 6 de janeiro e 29 de fevereiro de 2020.
Este estudo obteve parecer positivo da Comissão de Ética do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte e do Centro Académico de Medicina de Lisboa.
O estudo decorreu no internamento de Puerpério. Foi aplicado um inquérito de autopreenchimento às puérperas internadas acerca da vacinação contra a gripe e contra a Bordetella pertussis durante a gravidez e sobre os motivos da não vacinação contra a gripe. O inquérito foi distribuído pelo investigador principal às puérperas internadas durante o período de estudo, sendo a participação voluntária e anónima. Pela participação ser voluntária e não ter sido possível distribuir os questionários todos os dias, o número de participantes foi menor do que o número total de puérperas internadas durante o período do estudo. As dúvidas foram esclarecidas pela equipa médica ou de enfermagem aquando da recolha do inquérito. Na ausência de resposta no inquérito em relação à vacinação contra a gripe, o estado vacinal foi considerado como indeterminado.
Para a análise estatística, utilizámos software Microsoft Excel 365 e IBM SPSS Statistics, versão 27 (IBM, Armonk, NY, USA). As variáveis contínuas com distribuição não normal foram descritas utilizando a mediana. As variáveis categóricas foram comparadas através de tabelas de contingência e aplicaram-se os testes Qui-quadrado ou o teste exato de Fisher quando o teste Qui-Quadrado não se mostrou adequado. Considerou-se diferença estatisticamente significativa se valor de p inferior ou igual a 0,05.
Resultados
Durante o período de estudo, registaram-se 362 partos no nosso hospital, sendo que 117 (32%) puérperas responderam aos inquéritos distribuídos durante o internamento.
Em sete casos não foi possível aferir o estado vacinal contra a gripe, pelo que estes foram excluídos da análise estatística. Das 110 mulheres com estado vacinal conhecido, 54 (49%) referiram ter sido vacinadas contra a gripe, 57% das quais no 2.º trimestre e 43% no 3.º trimestre (Quadro I). Em relação aos motivos para a não vacinação contra a gripe, 34 mulheres (61%) referiram não ter sido informadas sobre a recomendação para a realização desta vacina na gravidez, 11 (20%) recusaram a vacinação por receio de efeitos adversos, quatro (7%) recusaram por considerarem desnecessário e uma grávida recusou por motivos económicos (Quadro II). Entre as mulheres vacinadas, 20 (37%) obtiveram de forma gratuita a vacina através do centro de saúde.
Em relação à importância das diferentes vacinas, 51% (60) das mulheres considerou a vacinação contra a gripe tão importante quanto a vacinação contra a tosse convulsa (Quadro I).
Quando questionadas sobre o conhecimento de que a gripe pode ser mais grave na grávida e nos primeiros meses de vida do seu filho, 61 mulheres (52%) responderam positivamente. Além disso, 59 mulheres (50%) referiram também estar informadas de que a vacinação contra a gripe na gravidez poderia prevenir a gripe no seu filho nos primeiros meses de vida (Quadro I).
Na nossa amostra, a vigilância da gravidez foi realizada nos cuidados de saúde primários (CSP) em 33%, em consulta hospitalar do Serviço Nacional de Saúde (SNS) em 28%, no sector privado em 15% ou em mais do que uma instituição em 24%.
A maioria das grávidas vigiadas em consulta hospitalar do SNS foi vacinada contra a gripe (68%), versus um terço (31%) das grávidas vigiadas nos cuidados de saúde primários e 47% das vigiadas em obstetra do setor privado (p=0,023) (Figura 1).
A vacinação contra a gripe foi mais frequente nas mulheres vacinadas contra a tosse convulsa (96% vs 79%, p=0,005), naquelas que estavam informadas sobre a possível maior gravidade da gripe na grávida e no recém-nascido (65% vs 41%, p=0,033) bem como naquelas que estavam informadas sobre a possibilidade de vacinação da grávida contra a gripe poder prevenir a gripe nos primeiros meses de vida do recém-nascido (76% vs 29%, p<0,001) (Quadro I). A maior valorização da vacina da gripe, tosse convulsa ou valorização de igual forma de ambas as vacinas foi independente do estado vacinal para a gripe. A maioria das puérperas valorizou igualmente ambas as vacinas (Quadro I). Das cinco mulheres que valorizaram mais a vacina da gripe comparativamente à vacina da tosse convulsa, apenas três tinham sido vacinadas contra a gripe.
Discussão
Nos últimos anos a vacinação contra a gripe tem sido fortemente aconselhada na gravidez para prevenir a morbilidade materna e fetal que se associa a esta infeção. Contudo, apesar dos dados disponíveis quanto à segurança da vacina contra a gripe, para a grávida e o feto, serem bastante consistentes e tranquilizadores9, esta informação pode não atingir a totalidade da população alvo que, além das grávidas, inclui também os profissionais de saúde.
Este estudo, relativo a uma população de grávidas da região de Lisboa, mostrou que a taxa de vacinação contra a gripe durante a gravidez foi de 49%. Nesse período não era realizado registo de vacinação em suporte de papel (no Boletim de Saúde da Grávida) ou em suporte informático, pelo que não foi possível a confirmação definitiva da sua realização. Apesar destas limitações, observou-se que a taxa de vacinação contra a tosse convulsa obtida através dos inquéritos aplicados no internamento de puerpério (89%) foi semelhante ao estimado pela DGS para 2019 (88%), o que confere fidedignidade à informação prestada12.
O estudo realça também que o principal motivo de não vacinação foi esta não ter sido proposta à grávida (61%), seguido do receio da grávida relativamente a efeitos adversos (20%). A diferença estatisticamente significativa que encontrámos na cobertura vacinal consoante o local de acompanhamento - hospitais do SNS ou no CSP (68% vs 31%, p=0,023) - poderá dever-se a diversos fatores: maior divulgação da vacina contra a gripe na grávida seguida em meio hospitalar onde a vigilância é realizada por um obstetra; maior conhecimento sobre a segurança da vacinação na gravidez; melhor capacidade de transmissão dessa informação com confiança à grávida e maior sensibilização para possíveis complicações da gripe em grávidas com comorbilidades.
Os resultados deste estudo revelaram alguns fatores que podem influenciar a cobertura vacinal. Houve uma diferença estatisticamente significativa no grupo de grávidas vacinadas versus não vacinadas quanto ao conhecimento da gravidade que a gripe pode ter na grávida e no recém-nascido (p=0,033) e sobretudo quanto ao conhecimento de que a vacinação da grávida pode prevenir a gripe nos primeiros meses de vida do filho (p<0,001). Este dado é consistente com o facto de 44% das puérperas considerarem mais importante a vacina contra a tosse convulsa, que se destina à proteção do lactente nos primeiros meses de vida.
Um estudo realizado no Texas (EUA), que pretendeu esclarecer os conhecimentos das grávidas e dos profissionais de saúde sobre as recomendações da vacinação na gravidez, revelou que os principais fatores de decisão para a aceitação da vacinação na gravidez foram a garantia da segurança para o feto e para a mãe, bem como um adequado aconselhamento e esclarecimento pelo profissional de saúde. (13 Estes dados estão de acordo com a importância que identificámos no papel dos profissionais de saúde na transmissão de informação clara e atualizada sobre os benefícios e segurança da vacinação tanto para a grávida como para o feto e recém-nascido.
Desde 2012 que se observou, em Portugal, uma reemergência de casos de tosse convulsa, nomeadamente nas crianças com menos de 2 meses, tendo-se em 2015 adotado como principal estratégia de prevenção a vacinação da grávida, de forma a conferir proteção passiva ao recém nascido. (14 Por outro lado, a vacinação contra a gripe na gravidez no outono/inverno está recomendada desde 2005, inicialmente, apenas a grávidas com gestação no 2.º ou 3.º trimestre, e desde 2014, independentemente da idade gestacional11. Diversos estudos já demonstraram a segurança de ambas as vacinas, nomeadamente em relação à taxa de aborto espontâneo, prematuridade e morte fetal9. Contudo, a cobertura vacinal para a tosse convulsa durante a gestação é bastante superior à da gripe. Um dos motivos para esta diferença pode residir no facto de a vacina contra a tosse convulsa na gravidez estar incluída no Programa Nacional de Vacinação (PNV), e não tanto pela gratuitidade do PNV. O facto de a vacina contra a gripe ser paga não foi considerado relevante para a não vacinação, exceto numa grávida. Este potencial fator foi, entretanto, eliminado na época gripal 2020/21 uma vez que a vacina se tornou gratuita para a grávida15. A inclusão de uma vacina no PNV corresponde a uma prescrição universal, independente de prescrição médica, da qual todos os médicos e enfermeiros têm conhecimento e todos os serviços de saúde devem respeitar, influenciando a taxa de cobertura vacinal. Além disso, a sazonalidade da vacina contra a gripe pode também contribuir para uma menor cobertura vacinal.
Os principais pontos fortes deste estudo são: ter permitido avaliar a cobertura vacinal contra a gripe numa população de grávidas de Lisboa e compreender os principais motivos para a não vacinação. Este trabalho revela a necessidade de maior divulgação e de maior formação dos profissionais de saúde relativamente às orientações emitidas pela DGS15.
Para as grávidas com receio de efeitos adversos da vacinação, 9% da amostra total das puérperas (20% das não vacinadas), poderá eventualmente ser considerada a hipótese de vacinação no segundo trimestre da gravidez, após a realização da ecografia morfológica, efetuada entre as 20 e as 23 semanas. Esta estratégia vacinal pode ter contribuído para o sucesso da vacinação contra a tosse convulsa que atinge atualmente níveis elevados de cobertura vacinal. Por seu turno, as complicações da gripe na grávida são significativamente mais frequentes nos dois últimos trimestres e a vacinação no primeiro trimestre pode associar-se a menor título de anticorpos transmitidos por via transplacentar para o filho16.
Este estudo tem algumas limitações. Em primeiro lugar, trata-se de um estudo observacional realizado apenas num hospital em Portugal. Em segundo lugar, por ausência de registos, não foi possível confirmar de forma definitiva que a vacinação contra a gripe tinha sido efetuada. Contudo, o possível enviesamento que admitimos não compromete as principais conclusões do estudo, nomeadamente os motivos de não vacinação.
Um aumento significativo da taxa de vacinação contra a gripe na grávida pode ser particularmente relevante com a atual pandemia de SARS-CoV-2. As manifestações clínicas desta doença são semelhantes às da gripe e podem originar problemas na abordagem diagnóstica, nas recomendações de isolamento social e hospitalar e na terapêutica. Por outro lado, poderá haver o risco de coinfecção influenza e SARS-CoV-2, com consequências clínicas ainda desconhecidas.
Conclusão
Em conclusão, este estudo revelou uma taxa de vacinação contra a gripe na gravidez de 49%, sendo que o principal motivo de não vacinação foi a ausência de recomendação para a realização desta vacina (61%).
Finalmente, os resultados do nosso trabalho revelaram insuficiências na aplicação da Orientação da DGS quanto à vacinação contra a gripe durante a gravidez e permitem identificar soluções que julgamos ser decisivas para melhorar a cobertura vacinal, nomeadamente: a implementação de novas medidas de sensibilização e formação dos médicos e enfermeiros sobre os benefícios reais esperados para a grávida e para o seu filho, com especial foco nos CSP; a divulgação eficaz da informação dirigida à grávida, nomeadamente em termos da segurança da vacina e de proteção do filho nos primeiros meses de vida.
Contribuição dos autores
Maria Pulido Valente: Contribuições substanciais para a conceção e delineamento do estudo, recolha de dados, análise e interpretação dos dados. Participação na redação e revisão critica do artigo. Revisão da versão final do manuscrito.
Cristiana Marinho Soares: Participação na recolha e análise dos dados e revisão critica do artigo no que respeita a conteúdo intelectualmente importante.
Luísa Pinto: Contribuições substanciais para a conceção e delineamento do estudo. Participação na redação e revisão critica do artigo no que respeita a conteúdo intelectualmente importante. Aprovação da versão final do manuscrito.
José Gonçalo Marques: Contribuições substanciais para a conceção e delineamento do estudo, análise e interpretação dos dados. Participação na redação e revisão critica do artigo no que respeita a conteúdo intelectualmente importante. Aprovação da versão final do manuscrito.