Introdução
Natural de S. Vítor (Braga), Clara Menéres (1943-2018) conclui Escultura na ESBAP (68) após nascimento dos filhos e uma mostra individual.
A par do talento e sensibilidade, cedo percebe as resistências que as mulheres encaram nas carreiras artísticas, sobretudo em escultura, o que consolida a sua ação determinada numa terribilita multidirecional. Da figuração à depuração formalista abstracta, da escultura pública ao anti-monumento, da medalhística à escultura religiosa e à desmaterialização dos objetos, ela indaga amplas possibilidades das linguagens escultóricas, articulando tradição clássica e propostas de vanguarda, inovação material e tecnológica e pensamento contemporâneo.
O percurso artístico intenso e reconhecido anda a par com a carreira académica nas Belas Artes de Lisboa de 72 em diante, criando depois de 96 a escola de artes na Universidade de Évora onde se aposenta (2007). Pelo meio, doutora-se em Etnologia em Paris (78/81), faz provas académicas em Escultura em Lisboa (80/81), investiga no MIT (89/91), funda o Centro de Escultura de Pêro Pinheiro e é perita do ensino superior artístico.
1977 é, no percurso artístico de Clara Menéres, um ano especial. Em janeiro e fevereiro debate o feminino na exposição Artistas Portuguesas e, organizadora e participante, mostra A Concha de Vénus. Em março vai com a exposição a Paris, após criar Mulher-Terra-Viva na Alternativa Zero em fevereiro. Em agosto as obras vandalizadas nos IV Encontros Internacionais de Arte das Caldas da Rainha levam à suspensão de atividades do Grupo Acre (com Lima de Carvalho). No Outono faz nova versão da mulher de terra na Bienal de S. Paulo, Brasil.
1. Artistas Portuguesas e Concha de Vénus
A exposição, organizada por Sílvia Chicó, Emília Nadal e Clara, abre em Lisboa a 25 de janeiro em 3 partes: Artistas Portuguesas desaparecidas (MNAC, curadora M. de Lourdes Bartholo); Artistas Portuguesas contemporâneas (SNBA, mais de 30 artistas como Ana Hatherly, Ana Vieira, Dorita, Nadal, Graça Morais, Maria Keil, Menez, Paula Rego, Salette Tavares, Sarah Affonso, Teresa Magalhães); e ainda Liberation. 14 Artistas Americanas (SNBA). Em março e abril, a exposição no Centre Culturel Portugais de Paris tem só as portuguesas.
No catálogo mais extenso (78) há fotos e textos sobre obras e atividades paralelas às exposições - conferências, concertos, recitais de poesia e projeções de filmes por mulheres de diferentes áreas da cultura artística, literária, musical e sociopolítica. O tom dos registos exprime sobretudo o estado geral da condição feminina na sociedade portuguesa do pós-revolução e na criação artística. Não há menções a vultos da teoria feminista internacional como Luce Irigaray, embora a crítica americana Beth Coffelt refira a pioneira Gloria Steinem e aluda a Why Have There Been No Great Women Artists de Linda Nochlin (71).
Na exposição a escultura de Clara Menéres destaca-se.
A Concha de Vénus vem na sua linha de pesquisa sessentista sobre o erotismo e a sexualidade. Cruza uma metáfora do mundo marinho com a anatomia feminina cuja morfologia genital evidencia e depura. Ao mesmo tempo, sugere uma flor que abre pétalas / lábios vaginais em desafio ativo, numa ligação mítica do feminino à origem da vida que envolve a sensualidade da forma e o maternal na simbologia ancestral. (Figura 1)
Bourgeois ecoa talvez na destruição do pai, quando Clara, como O’Keeffe, afirma a diferença feminina a partir da condição física na qual a maternidade não anula o erótico.
2. Mulher-Terra-Viva
Na Alternativa Zero a convite de Ernesto de Sousa, a artista retoma o feminino e cruza-o com a land art num pedaço de paisagem ou jardim, um canteiro/torso feminino moldado em terra, vivo na matéria orgânica, relva e plantas, corpo verde. (Figura 2)
Organismo feminino jacente, oferta expectante e alusão à passividade, é uma mulher truncada, um corpo-fragmento sem cabeça ou membros, limitado ao centro, quiçá essencial para o olhar dominante masculino assim implicado: condenada a uma prisão, carrega o destino da mudança eterna, repetível, dos ciclos da vida e da morte. O lado ativo, performativo e ritual da obra implica a artista, que semeia, planta, faz germinar, rega, limpa e apara, em gestos femininos associados ao cuidar da vida. A obra tem forte impacto (Figura 3).
Na XIV Bienal de S. Paulo (Brasil), de outubro a dezembro, a representação portuguesa comissariada por Sommer Ribeiro responde aos temas ditados pelo espírito e regulamento da bienal: Arqueologia do Urbano, Recuperação da Paisagem e Grandes Confrontos. Integram-se neste último as obras ambientais dos artistas escolhidos, Alberto Carneiro (também com as Notas para um Manifesto de Arte Ecológica) e Clara Menéres.
Clara constrói no exterior do pavilhão do Ibirapuera nova versão da peça da Alternativa Zero, agora em escala maior. (Figura 4)
Diz ela:
Um dia passo os olhos à minha volta e descubro o corpo-paisagem da terra-mãe. Regado de neblina, húmido, coberto de uma pelagem leve e verde no ventre feito de outeiro e nos seios de colinas, ondula tranquilo, curva após sulco, repetido em formas, desdobrado em texturas. Foi ver uma realidade que se multiplica na transformação que sofre no tempo e no espaço, alongada na sua irrecusada forma de se dar, reproduzindo o círculo genético comum às mulheres e à terra.
Refazer o que já estava feito, torná-lo só mais evidente, dar em objecto limitado o que sempre nos foi oferecido em forma plena e extensa, esse corpo vivo, em movimento, gerador e fecundado.
De um anterior projecto de jardim, integrado em outras zonas de passeio e lazer, executei recentemente uma outra obra de dimensões mais pequenas, como que um bloco de uma paisagem arrancada à natureza, transportado para uma sala de exposições. Hoje executei a ideia inicial, na dimensão adaptada a um espaço exterior, integrando-a no terreno e tendo em conta todos os condicionamentos do meio em que iria viver. (Menéres, 1977: s/n).
Antes mulher/bloco arrancada à paisagem e limitada na galeria, estende-se agora ao ar livre, corpo habitável cujas fronteiras tendem a esbater-se. Ostenta a sua diferença sexual e convida à fruição e cuidado do corpo-paisagem, erótica, performativa e ritual, que exala essências míticas. Na linha da peça anterior, Clara propõe uma ideia de mulher que abre o sentido estrito do sexo feminino indagando eixos possíveis do corpo, da sexualidade, do prazer e da cultura, sob perspectiva intemporal. (Figura 5)
O que não é só um sexo
Também em 77 Luce Irigaray publica Ce Sexe Qui N’En Est Pas Un.
É possível que, na ida a Paris com Artistas Portuguesas, Clara tenha acedido nas livrarias a essa obra ou à anterior (Speculum, De l’autre femme, de 74).
Depois da luta pela igualdade, voto e educação, Irigaray está entre a 2ª e 3ª (da libertação à diferença de género) das possíveis 4 vagas do feminismo.
Em Speculum (...) analisa a história do discurso teórico ocidental (Platão, Hegel e Freud) para concluir que o feminino vem definido em função do masculino como reverso ou falta deste. Influenciada por Derrida, pugna por heterogeneidade e diferença na linguagem e, na senda de Sartre, centra-se na questão do imaginário, que entende como sexuado:
Podemos assumir que qualquer teoria do sujeito tem sido sempre apropriada pelo ‘masculino’. Quando se submete a (tal) teoria, a mulher não compreende que renuncia à sua própria relação com o imaginário (Irigaray, 1974: 133)
Em Ce Sexe, debate-se contra a igualdade e defende que a mulher poderia ser igual ao homem, mas não é nem deve ser pensada sob tal modelo.
Assim a oposição entre a atividade clitoridiana “viril” e a passividade vaginal “feminina” de que fala Freud - e outros - como etapas, ou alternativas, do tornar-se mulher sexualmente “normal”, parece um pouco demasiado requerida pela prática da sexualidade masculina. (...) Da mulher e do seu prazer nada se diz numa tal concepção de relação sexual. (Irigaray, 1977:23)
Contra Freud primeiro e agora Lacan, o que lhe vale a demissão da Universidade de Vincennes, mais do que respostas define questões: Como pensar uma sexualidade feminina fora do modelo falocrático? Como criar uma linguagem própria? Como articular a exploração sexual das mulheres com a social? Como agir e pensar politicamente como mulheres? Como falar-mulher? O que é uma mulher? O que é o feminino e o que é a dicotomia masculino-feminino? Há um outro inconsciente? E uma outra simbólica? Falar-mulher é falar da mulher ou falar entre mulheres? Falar-mulher é um falar histeria?
Mas sustenta certezas sobre o prazer e o autoerotismo:
A mulher, ela, toca-se em si mesma e por si mesma sem necessidade de uma mediação, e antes de qualquer separação possível entre atividade e passividade. A mulher “tocase” todo o tempo, sem que se possa de resto proibir-lho, porque o seu sexo é feito de dois lábios que se abraçam continuamente. Assim, dentro de si mesma, ela é logo dois - mas não divisíveis e un(os) - que se afectam. (Irigaray, 1977: 24)
A fruição da mulher, que “não é nem um nem dois” (Irigaray, 1977: 26), não obedece às regras impostas, dado que ela dispõe de um dispositivo próprio polivalente para o prazer, difuso, ampliado e “goza mais do toque do que do olhar” (ibidem).
No ano seguinte, Irigaray esclarece ainda:
O investimento na visão não é tão privilegiado nas mulheres como nos homens. Mais do que outros sentidos, a visão objectifica e domina. Estabelece uma distância, e mantém uma distância. Na nossa cultura a predominância da visão sobre o olfacto, paladar, tacto e audição tem trazido um empobrecimento das relações corporais. No momento que que a visão domina, o corpo perde materialidade. (Irigaray, 1978: 70)
Cabe à mulher assumir o seu prazer plural, a multiplicidade de zonas erógenas, a fluidez e sem limites, valorizando o tacto e o olfacto na fruição erótica, sendo importante recuperar a materialidade do corpo feminino para se reinventar a linguagem e, sobretudo, pensar o imaginário.
Poderemos voltar a essa coisa reprimida que é o imaginário feminino? Portanto a mulher não tem um sexo. Ela tem pelo menos dois, mas não identificáveis em unos. Ela tem aliás bem mais. A sua sexualidade, sempre pelo menos dupla, é ainda plural. (...) Ora, a mulher tem sexos um pouco por todo o lado. Ela goza um pouco de tudo. Sem falar mesmo da histerização de todo o seu corpo, a geografia do seu prazer é bem mais diversificada, múltipla nas suas diferenças, complexa, subtil, do que se imagina... num imaginário demasiado centrado no mesmo. (Irigaray, 1977: 27-28)
Irigaray estabelece possibilidades para a mudança: nos dois lábios (vaginais e da boca) reside um novo universo simbólico; a questão central do feminino está na anatomia mas também na linguagem e na estrutura ideológica dos sistemas de representação; trabalhe-se a linguagem (conteúdo, léxico, estrutura e regras), a relação mãe-filha e a mimesis.
Conclusão
“Assim a mulher não teria ainda um lugar” (Irigaray, 1974: 282). Conhecendo ou não o que ela escreve então, a escultura de Clara parece assumir que a mulher é um lugar e, mais do que isso, território.
“Ora a mulher não é nem aberta nem fechada. Indefinida, in-finita, a forma que não se termina” (Irigaray: 1974, 284). Primeiro delimitada, depois tendendo para o infinito, a mulher-terra-viva sugere acordo e contradição num sem-limites, já que, na versão de S. Paulo, desfaz a relação figura-fundo e abre o lugar do espectador à indistinção de papéis. Afinal, quem frui e quem é fruído? Certo sentido lúdico da Mulher-Terra-Viva evoca Hon - A Cathedral, de Niki de Saint-Phalle (1966, Museu Modena, Estocolmo): um enorme corpo de mulher a ocupar uma sala permitindo a entrada dos visitantes no seu interior: “(...) um pouco como templo (...) a ideia da catedral (...) uma quermesse (...) a alegria, um regresso à mãe (...) a maior puta do mundo (...) a religiosa devoradora (...) muitas facetas e funções. (...)” (Saint-Phalle, 1966)
O feminino e o lúdico implicam uma poética mais profundamente libertária e ancestral nas mulheres de terra de Clara Menéres, de que surge ainda uma 3ª versão em Serralves (1997) em que a artista retoma o anterior projeto de jardim que afirma na origem. (Figura 6)
Obras eróticas como o Relicário (1969), os objetos vulvares bordados ou recortados em metal (1972) ou a série a que pertence o Berbigão (1980) subjazem a um “equívoco de obscenidade” (Nunes, 2015: 52), mas confirmam sobretudo que Clara cedo percebe a questão sexual como chave do feminino e expande essa perspectiva na relação com a land art em inúmeras obras suas, diversamente de Hans Haacke, Mona Hatoum, casal Weinberger, etc.
Essa relação é expressiva em desenhos seus de 78 (Figura 7), nos quais a paisagem-corpo-infinito é devassada por estradas construídas pelos homens. Surge nos corpos jacentes fundidos na terra como os amantes que modela em barro (81), e em peças abstractas dos anos 80, quando pedra e néon operam e desmantelam o feminino-masculino.
Se Clara Menéres conhece mesmo textos de Luce Irigaray nos anos 70, só ela confirmaria. Provavelmente diria que sim ou que as ideias andavam no ar numa década tão ativa em debates de género e de afirmação política do espaço social do discurso feminino, em arte e teoria.
Contudo, conhecendo a obra da escritora, talvez a Clara não escapasse a hipótese de formar metáforas da fluidez que Ce sexe associa ao feminino em qualidades materiais de obras suas.
Por outro lado, se Irigaray linguista e psicanalista é crítica de Freud e Lacan, Clara afirma-se “uma admiradora de Gustav Jung e dos seus textos” (Pereira, 2008: 298). Em várias vezes declara respeito pela psicanálise, mas preferência pela leitura junguiana na ideia de arquétipos e inconsciente colectivo, no entendimento da psique humana na sua natureza simbólica, no interesse por zonas do conhecimento especulativo tangenciais ou exteriores à ciência, na crença no muito que não sabemos e que a razão não domina.
Nesse sentido, justifica-se evocar os Earthworks de Ana Mendieta (desde 73), em que a encenação da morte se redime na relação com a natureza maternal e se enraíza, segundo essa artista, na busca da origem assente “na crença de Energia Universal que corre em tudo dos insectos ao homem, do homem aos espectros, dos espectros às plantas, das plantas à galáxia.” (Mendieta, 1988: 98)
Também Menéres indaga um fluxo vital imanente, feminino e matricial que da natureza emana para a cultura e habita o inconsciente colectivo, o que anda no ar. Irigaray, feminista da diferença, antecede o contexto atual da multiplicidade identitária e da não-binariedade (unissexo, sem género, poligénero, fluído, etc.), e as obras polimórficas de Clara Menéres parecem anunciar a 4ª geração feminista. Proposta de diferenciação sexual feminina ao primeiro olhar, A Concha de Vénus abre os lábios a partir da forma fechada, mas ergue-se vertical, erecta (como o falo que, anos antes, Clara oferece no relicário para idolatrar ou abrir e usar); quando floresce, tem algo de masculino ou indiferenciado, aludindo à caprichosa vida sexual de plantas e moluscos que ela, cedo atenta a ciências da natureza e química, não esquece.
E, quando com terra a escultora oferece corpos femininos para fruição ou devassa, não denuncia apenas a “sua entrada numa economia escopológica dominante” ou “uma submissão à passividade” (Irigaray, 1977: 26). Ela “será o belo objecto para olhar” (ibidem), mas antecipa ecofeminismos vindouros e a sua hipótese de responsabilização sobretudo masculina pelo desastre ecológico em curso desde a revolução industrial.
O empenho de Clara na ação social, cultural e política recentes confirma-se em participações no Movimento de Intervenção e Cidadania (2006), no Congresso Feminista (2008), em candidaturas às Eleições Europeias pelo MPT (Partido da Terra) e à Assembleia da República pela coligação Frente Ecologia e Humanismo (2009).
Escultora de rara intuição e inteligência, com obra desdobrada por dimensões formais e técnicas, feministas, ecológicas, míticas, espirituais e políticas, a própria Clara Menéres é ainda hoje, de certo modo, mulher-terra-viva.