Introdução
Francisco Lourenço (1986) é um jovem artista português que vive e trabalha na cidade de Lisboa. O seu interesse artístico na imagem pictórica intensifica-se durante a sua profissão como criador de booktrailers infantis (desde 2015) à qual se dedicou depois de ter concluído a Licenciatura em Pintura na Faculdade de Belas-artes da Universidade de Lisboa. É como criador de booktrailers infantis que se treina na aplicação de técnicas digitais para animar ilustrações de outros criadores. Este trabalho criativo e fundamentalmente técnico mostrou-se libertador do ponto de vista da responsabilidade autoral pois não é Francisco Lourenço quem cria as ilustrações de base - e vai permitir-lhe tomar consciência por um interesse que se plasma no seu trabalho artístico e autoral que, desde logo, assume como separado, à parte dos booktrailers. A formação académica de Francisco Lourenço tem continuado e, actualmente, frequenta o Mestrado em Pintura na FBAUL onde realizada os vídeos sobre os quais este artigo se debruça. Tem igualmente exposto em espaços galerísticos e mostra a sua produção artística através de sites onde podemos destacar a ZetGallery (https://zet.gallery).
booktrailers
Para um melhor entendimento dos vídeos artísticos de Francisco Lourenço é importante distingui-los dos booktrailers. Neste sentido, as Figuras 1 e 2 que são printscreens do booktrailer para o livro Impossível da autoria de Catarina Sobral, funcionam como exemplificação do seu trabalho de animador de ilustrações. Embora sejam fotogramas e, por definição, fragmentos que se retiram ou recortam de um todo inteiro, exemplificam o que podemos ver no booktrailer a que pertencem: uma sequência de imagens que Francisco Lourenço propõe em co-autoria com Vera Machado para nos mostrar alguns dos conteúdos de uma história e para nos despertar curiosidade sobre a mesma. A história não é contada, claro. Porque o objectivo é publicitário: divulgar o autor, o ilustrador e o livro que resulta desta colaboração. A ausência de narrativa, ou seja, a criação de uma sequência que evita contar a história (é-lhe retirado o muthos - o nó da intriga - e o desenlace a que qualquer história está vinculada) é uma estratégia que Francisco Lourenço vai também aplicar nos seus vídeos artísticos.
Como artista visual, Francisco Lourenço recorre ao vídeo e ao desenho. De uma forma casual, os seja, sem uma condição de eleição específica, foram seleccionados dois dos seus vídeos para abordar o seu trabalho artístico, a saber: os que se intitulam Unfortunately, my friends were not available to help me grieve (Figuras 3, 4 e 5) e When you invited me, you said it was ok to come alone (Figuras 6, 7 e 8), ambos de 2018.
São vários os conceitos que delimitam os seus vídeos na generalidade, mas iremos concentrar-nos nos seguintes: a) a imagem pictórica, b) o movimento hesitante, c) a colagem e d) a duplicação.
A imagem pictórica e o movimento hesitante
A pintura é, por definição, uma imagem fixa. Contudo, a utilização de tecnologias actuais permite pensar a fixidez e a quietude numa relação com o movimento feito por animação ou cinematográfico. No caso das imagens propostas por Francisco Lourenço existe um compromisso entre o que mexe e o que está quieto compromisso que é o bastante para conotar o que é animado com o que está vivo (a alma e a vitalidade sempre tiveram uma relação fundamental). O movimento é continuamente impedido através de um loop. O loop, neste caso, usa-se como estratégia que potencia a hesitação, como soluço imagético. Ou seja, o movimento continuamente interrompido é sem destino, é sem rumo, infinitamente repetitivo e cristalizado numa aparente redundância. “Aparente” porque há formulação de sentido na hesitação, enquanto efeito de gaguez imagética que produz tanto o riso como o choro. É o riso ou, pelo menos, o sorriso que se manifesta no observador destes vídeos. Para além deste efeito (secundário) no observador um efeito prazenteiro há também um efeito (primeiro) que é o de impregnar as situações com ânimo, com alma, com vida porque tremem as figuras, porque se agitam os céus, porque oscilam os arbustos com a deslocação do ar, porque há uma acção centralizada num personagem (uma acção inconsequente em termos narrativos, mas ainda assim, uma acção)
A colagem
A técnica da colagem permite colocar elementos imprevisíveis lado a lado, num ambiente que é trabalhado para parecer natural. A aparente naturalidade com que os elementos se conjugam no cenário é construída com rigor e domínio técnico um domínio que foi conquistado a fazer booktraillers. Os cenários e os personagens destes vídeos são provenientes do quotidiano - não fazem qualquer referência formal aos booktraillers como linguagem plástica, pelo contrário, ancoram-se no real e no vivido. Para fazer estes vídeos é imprescindível um arquivo de imagens recolhido do mundo real e, por isso, o método de trabalho de Francisco Lourenço inicia-se, primeiro, na atenção ao momento, depois na captação de imagens que filma no seu dia a dia, sem pré determinações específicas, e por fim na articulação dessas imagens através de selecção, recorte e colagem. Pode afirmar-se que o seu método é ao contrário do que acontece com Grand Verre de Marcel Duchamp que assume o acaso e o acidente para dar a obra como terminada; em Francisco Lourenço é a atenção ao acaso e ao acidente que originam cada vídeo, que iniciam todo o processo criativo.
O próprio artista, no site da Zet.Gallery informa-nos sobre o seu método:
As minhas obras mostram instantes de uma realidade contingente, onde a natureza se apresenta como um componente frágil de uma estrutura construída pela visão subjetiva do ser humano. Nos meus vídeos vemos elementos naturais em situações de instabilidade, sobre os quais paira uma ansiedade causada por uma sensação de constante antecipação. Para esse efeito, crio loops de curta duração, composto por um único plano contínuo, que repetem de forma imperceptível. Estes vídeos são composições formadas por vários elementos, provenientes do meu arquivo pessoal de filmagens, de vídeos de stock e de animações digitais que são conjugados através de técnicas de compositing de modo a criar uma ilusão de verosimilhança, explorando as potencialidades do movimento enquanto elemento pictórico.
Descreve ainda o artista: “Rodeada por um bando de pássaros brancos que se movem freneticamente, uma ovelha esfrega a cabeça carinhosamente numa substância verde, dentro da qual está um hipopótamo. O chão vermelho pisado pelos pássaros contrasta com o chão negro onde está a ovelha, como se esta estivesse num palco.” Sublinha-se o imaginário e a consciente articulação de elementos figuras, personagens - num ambiente visual onde tudo tirita, treme, oscila, sem que haja um movimento efectivo em direcção a alguma coisa, sem que haja um efeito de reacção à acção que nos é mostrada. Na hesitação permanente existe uma predilecção pela escolha de elementos da fauna e da flora e de cenários que acentuam um gosto pelo espaço natural, rural, arbóreo onde os elementos (da natureza) raramente são perturbados por elementos urbanos ou artificiais. Justamente, o artifício destas imagens é produzido conscientemente por Francisco Lourenço e é com ele que se percepciona a estranheza da aparente naturalidade desta natureza artificial e artificiosa. Há um enorme cuidado cromático e um dramatismo uma ambiência de que há “qualquer coisa” que se suspende um suspense que nos deixa (mais) atentos à imagem, expectantes. E espera-se o desenlace, a reacção, a continuação de uma história que nos é mostrada apenas parcialmente, como se fosse fragmentada, como se fosse uma parte de um todo que nos és desconhecido (e que permanecerá por conhecer).
A duplicação
Frente a uma figueira e a uma oliveira, um macaco continua os afazeres do seu dia-a-dia, ignorando por completo os estranhos objetos que enchem cada vez mais o céu. Estes objectos pairam no ar aproximando-se e afastando-se do ecrã e revelando o reflexo de dois focos intensos de luz.
Esta descrição do autor sobre o vídeo intitulado When you invited me, you said it was ok to come alone permite pensar a importância dos conceito “único” e “duplo” e dos conceito “solitário” e “acompanhado” no trabalho de Francisco Lourenço. Os títulos têm uma dimensão performativa nas suas obras porque ampliam o que nos é mostrado, abrem a um campo de interpretação que é da ordem dos afectos. Como se fossem frases retiradas de uma canção escrita em inglês: “I will always be sorry for letting you be my shelter. You say it’s ok but it changed things”, “The steps you took left me scarred and screaming”, “As long as I can keep the anxiety from kicking in I can delay this decision”, “Your sunglasses are not enough to look at the sun”, “It’s not going to kill you, but you should have outgrown cereal by now” ou “ Certain algae are familiar to most people” intitulam vídeos sem a vocação de qualquer repetição ilustrativa (as imagens recusam mostrar o que nos dizem os títulos) e expandem o inusitado das situações hesitantes impregnando-as com a sugestão de histórias, que se adivinham ou supõem, ocultas na hesitação e abrindo a expectativa. Algumas figuras - as principais - são, por norma, únicas. Sem duplicações, sem espelhamento. A nossa atenção foca-se nelas como sendo as principais de uma história que ainda desconhecemos. Contudo, a estratégia da duplicação de elementos nas imagens o “pombo” em Unfortunately, my friends were not available to help me grieve (Figuras 3, 4 e 5) , ou o “rochedo voador” em When you invited me, you said it was ok to come alone (Figuras 6, 7 e 8) acentua o isolamento das personagens centrais, por comparação. Esta duplicação e repetição de elementos testemunhas da acção principal tem um efeito de assertividade, de confirmação das opções de composição deste artista. Reitera a certeza das hesitações como efeito estético, confirmam a não redundância que é mostrar duas vezes (ou mais) a mesma coisa, por oposição e confronto com figuras isoladas, “auráticas” ou principais, permite o reconhecimento fundamental do já visto, do já conhecido. A oposição dos conceitos único/duplo e só/acompanhado permite, ainda, interpretar as situações que nos são apresentadas nestes vídeos: os elementos principais, centrais na composição, são únicos e estão sós (sem matilha, sem iguais) e, por outro lado, os restantes elementos, os que os rodeiam, estão repetidos e formam um conjunto (os rochedos), um bando (os pombos), ou seja, uma comunidade que contextualiza, que assiste, que testemunha a acção da figura central. O movimento que os vídeos apresentam, embora hesitante, não deixa de introduzir uma dimensão temporal à imagem que é também um efeito da exploração “das potencialidades do movimento enquanto elemento pictórico”.
Se a duplicação e a repetição se verificam como estratégias para composição de cada frame, também se afere como estratégia de produção de movimento e indução de uma temporalidade (o loop é, justamente, a repetição ad infinitum de uma sequência de frames), e também se confirma nas opções de projecção dos vídeos na sala de exposições. Utilizar o canto da sala como eixo vertical para separar duas projecções idênticas, é um exemplo.
Conclusão
Pode afirmar-se que os critérios para identificar o que é uma pintura no campo expandido residem apenas num único: tomar os critérios de produção da pintura (tradicional) e aplica-los a outros media.
Foi de acordo com esta definição que se analisaram os dois vídeos de Francisco Lourenço como projectos pictóricos. O vídeo, media que Francisco explora para produzir as suas pinturas, acrescenta, inevitavelmente, uma dimensão temporal e espacial através de um movimento hesitante (em loop) que sugere ser parte de outro, mais amplo e permanentemente boicotado e, assim, o artista concebe uma imagem hesitante, trémula, para-narrativa, aparentemente fragmentária. As suas obras parecem atestar um certo “efeito Pigmalião” (STOICHITA, 2008) aplicado à pintura (em vez de à escultura): um efeito de vivacidade na arte “a tal ponto que a arte não se vê na arte” (OVÍDEO, Metamorfoses X). É este o efeito a que Francisco Lourenço se refere quando afirma “As minhas obras mostram instantes de uma realidade contingente, onde a natureza se apresenta como um componente frágil de uma estrutura construída pela visão subjetiva do ser humano”. O artista reitera a visão como um sentido da percepção que pode ser enganado através da simulação do que é real e vivo, simulação conseguida, neste caso, com recurso a um movimento hesitante aplicado a uma imagem que quer ser (ainda) pintura. Esta capacidade de simular o real e o vivo através da pintura é apreciada desde a antiguidade, como nos conta Plínio, o Velho na sua História Natural, justamente no histórico exemplo sobre os pintores Zêuxis e Parrásios. E continua a impressionar, ora criando um efeito de anedota e produzindo o sorriso e a gargalhada, ora criando uma situação da ordem do trágico com efeito de desolação e consequente choro. As obras de Francisco Lourenço tendem a provocar-nos o sorriso e, mais ainda, há nelas uma delicadeza gentil que nos coloca num campo estético peculiar no contexto contemporâneo: fazem-nos acreditar numa beleza que, embora estranha e irrealista, tem uma naturalidade humana, um sentido humanista. Não são fábulas, mas podiam ser (se os animais falassem...). Justamente, a fábula é uma história onde as personagens são animais que tomam as características dos homens para espelhar os seus defeitos e as suas virtudes. Cada vídeo de Francisco Lourenço, tal como uma fábula, enuncia, de imediato, esse imaginário onde os animais são os protagonistas num mundo re-inventado como cenário paisagístico e onde as situações e os títulos têm uma dimensão poética “para reconciliar o homem com as coisas” (LYOTARD, 1971:292).