Introdução
O texto aborda a prática de Oswaldo Maciá, artista colombiano, que instaura suas esculturas a partir de formas olfativas e volumes sonoros, e pretende refletir especificamente sobre a escultura “Sob o horizonte” (2011-2019), enquanto proposição de experiências perceptivas, evocadas sensorialmente por uma inscrição odorífera. Eleger o olfato como princípio ordenador de significação é provocar distensões sobre os padrões formadores e conformadores da nossa cultura, prioritariamente visual. A partir da afirmação do artista, “os elementos escultóricos criam cenários nos quais a percepção testa as fronteiras do conhecimento” (Maciá, 2016), assumimos neste texto o sistema olfativo, como contexto de compreensão da obra e modelo conceitual operatório para abordar a perspectiva filosófica da percepção, referenciando Barwich (2019, 2018, 2017).
Maciá nasceu na cidade caribenha Cartagena de Índias, Colômbia, e vive e trabalha atualmente entre Inglaterra e Estados Unidos da América. O artista formou-se na Escola de Belas Artes de Cartagena, em 1980, mudando-se em 1982 para a capital Bogotá, e atende o curso de Publicidade na Universidade Jorge Tadeo Lozano. Em 1989 muda-se para Barcelona, Espanha, e estuda Pintura Mural na Escola de Belas Artes Llotja; e em 1990, instala-se em Londres, terminando o Bacharelado em Escultura entre 1990 e 1993 na Universidade Guildhall. Seus estudos acadêmicos finalizam-se com o Mestrado em Belas Artes no Goldsmiths College, Universidade de Londres, em 1994. Deste percurso interdisciplinar e multicultural compreende-se sua perspectiva ampliada para operacionalizar e compor imagens, objetos, sons e cheiros em esculturas. Sua atitude crítica revela-se também no “Manifesto para uma escultura olfativa-acústica (Um guia para criar uma desconfortável pergunta)”, no qual, durante o período de 1994 a 2016, escreveu intenções, definiu valores, problematizou argumentos, e mobilizou questionamentos.
Na escultura “Sob o horizonte” (2011-2019) (Figura 1), Maciá instala uma banheira no nível dos olhos dos visitantes com as torneiras abertas sem controle transbordando um líquido preto, enquanto um cheiro invade o espaço expositivo. Este índice não visual pretende evocar outras leituras, não mais dependentes de associações temporais e contextuais (experiências anteriores, memórias), mas atuar na ampliação das possibilidades de identificação, pois conforme o artista, “o olfato é um meio escultural essencial: o que percebemos pelo nariz não tem linguagem verbal, chega diretamente à intuição” (Maciá, 2016). Neste sentido os cheiros,
.não são tanto sobre objetos e percepção estável de objetos, mas também sobre mudanças na composição química do ambiente e flexibilidade quanto à avaliação contextual. No processo perceptivo, a entrada sensorial é filtrada e estruturada por diferentes processos antecipatórios. O que percebemos é altamente dependente da combinação de um sinal com outros registros sensoriais, experiências anteriores e expectativas de quais opções um sinal oferece (Barwich, 2018: 338)
Assim, os cheiros não atuam como uma estável composição, mas enquanto situações odoríferas que sinalizam, permanecem e desvanecem em graus variados de intensidade e de composição (Rodaway, 1994), e quando se infiltram no espaço expositivo demandam por atitudes do visitante. A escultura é também composta por ruídos (máquinas de costura e chuva artificial), que o artista operacionaliza em sequências sonoras não harmoniosas. Entre sons agudos e redondos, ele questiona nossa compreensão de mundo e busca reverberar outros espaços e limites imaginários.
Entre distintas materialidades e linguagens no fazer do artista, pretende-se conceituar as construções perceptivas, não como processo representacional de objetos, oriundo de um sinal externo (conforme teorias visuocêntricas), mas enquanto experiências perceptivas processuais baseadas na combinação causal e semântica dos elementos odorantes, e dependentes de decisões sensíveis e iterativas do observador a cada contexto (Barwich, 2017; Barwich, 2018). Afinal, o mesmo estímulo químico pode ocorrer em situações diferentes, que alteram sua disposição causal (uma mistura), bem como seu significado. Por exemplo, o ácido butírico pode ser encontrado como parte dos alimentos (parmesão) ou de contaminantes (vômito). Outra situação recorrente pode ser explicitada pelas moléculas aromáticas do cravo-da-índia e da noz-moscada, que apresentam cheiros muito distintos apesar da semelhança química estrutural. Desta maneira, a função da olfação é reconhecer todas estas mudanças contextuais e de composição química e, também identificar a disponibilidade e intensidades da informação material, pois alterações na concentração podem tornar desagradável um cheiro agradável. Neste sentido, busca-se a seguir, referenciar um alternativo framework teórico para modelagem da percepção, que compreendemos responder às táticas poéticas formuladas pelo artista.
1. Processo perceptivo olfativo em articulação poética
Os cheiros dissipam-se no espaço físico pela dispersão das moléculas voláteis, que em colisão livre com outras substâncias do ar são responsáveis pela sensação olfativa. Inicialmente, os nosso receptores olfativos, situados no epitélio nasal, detectam estes odorantes, que são coletados e organizados conforme a expressão dos mesmos receptores pela ativação de áreas específicas (glomérulos) do bulbo olfativo. Mas, esta organização topográfica não se mantém na etapa seguinte, pois os estudos descrevem os sinais chegando ao córtex piriforme e respondendo conforme diferentes e variáveis tipos de regulação organizacional (Barwich, 2018; Malnic, 2008). Assumindo que esta instável condição neuroquímica contextualiza o processo perceptivo que pretendemos validar para leitura da obra, referencia-se Barwich (2018: 345), que afirma “o córtex piriforme pode ser treinado a formar padrões mais ou menos estáveis temporalmente através de comportamentos inatos e aprendidos (cheiros associados)”. Embora não exista consenso sobre as teorias do cérebro até o momento, afirma a autora, há convergência de pesquisas que reconhecem uma estrutura conceitual genuinamente alternativa para o processamento neural baseado em “bias e revisões processuais” cíclicas (Barwich, 2018: 346). As “bias” expressam as formações de antecipações e preferências moduladas por experiências anteriores em movimentos top-down, que são continuamente adaptadas durante as “revisões processuais”, enquanto intervenções bottom-up.
Entendemos que estes dois mecanismos cognitivos complementares são explorados esteticamente na escultura “Sob o horizonte” (2011-2019), pois as informações contextuais acionadas pelo artista, diante da dessincronização entre odorantes, paisagem sonora e objeto do cotidiano, provocam um estranhamento por parte dos visitantes e evocam uma ação bottom-up. O desconhecido cheiro da raiz de cenoura ao não estabelecer associação com os dados referenciais sonoros (ruídos de chuva e de maquinário) e nem com os funcionais objetuais (banheira) questiona o visitante a inferir uma informação, sem precisar validar construções anteriores. Assim, da mesma maneira que Maciá (2016) afirma em seu manifesto: “cheirar deve nos fazer parar e pensar”, Barwich (2018) explicita os mecanismos perceptivos da olfação.
.A análise perceptiva não está centrada na ideia de imagens perceptivas estáveis como representativas de objetos externos. Em vez disso, diz respeito à dinâmica entre antecipação e correção na percepção e aos processos que constituem os mecanismos formativos de aprendizado e revisão. Esse quadro dinâmico explica a flexibilidade com a qual os organismos são capazes de reagir a uma variedade de mudanças ambientais (Barwich, 2018: 347)
O cheiro disseminado no espaço expositivo pelo artista flexibiliza o modelo perceptivo assumindo a instabilidade do objeto olfativo, que negocia significados sem qualquer representação visual ou sonora e vem provocar/instigar a formulação de um outro padrão.
Diferentemente da codificação das cores pela sintonia dos três cones, noção central na percepção visual, a olfação humana emprega 400 diferentes tipos de receptores com “princípios combinatórios de codificação, bem como variações e alcance na sintonização de receptores” (Barwich, 2019: 5), podendo assim o mesmo odorante ser reconhecido por distintos receptores (Malnic, 2008), que são conformados diferentemente para cada pessoa. Esta complexa condição impossibilita assumir uma relação direta entre estruturas químicas e respostas perceptivas, o que coloca o processo olfativo “fundamentalmente moldado por outros processos cognitivos sensoriais (por exemplo, pistas cross-modais, descritores verbais, atenção seletiva ou humor do observador)” (Barwich, 2019: 7). Dito isso, reconhece-se que a prática do artista valida também convenções imagéticas ao instalar a banheira no nível do olhar (Figura 2). Na perspectiva de câmera subjetiva, os visitantes são mergulhados metaforicamente nas águas escuras, que transbordam enquanto o cheiro invade, “escapa e ultrapassa fronteiras, compondo diferentes entidades em totalidades olfativas” (Classen et al., 1994: 4-5). A impossibilidade de dominar pela visão o conteúdo integral da banheira prioriza a condução espacial dos visitantes pelo cheiro, já que a fonte situa-se na altura do nariz e aciona uma condição favorável para a nossa percepção olfativa.
Assim, a proposição da obra dá-se pela contaminação do ambiente - dispersão e identificação, e valida a olfação orientada não para moléculas específicas, ainda que a presença de qualquer impureza química gere significantes diferenças na avaliação, mas definida nas/pelas transformações oriundas das experiências perceptivas e respostas comportamentais.
Nesta perspectiva, assume-se a experiência estética como ação potente formativa, que ressoa “com mecanismos neurais, os quais constantemente alimentam domínios sensoriais e, assim, influenciam os efeitos bioquímicos que produzem nossas impressões perceptivas” (Barwich, 2018: 347). Conforme a autora, é preciso reforçar que não se descarta o estímulo externo enquanto dado estruturante de nossa experiência perceptiva, mas sua articulação dá-se conforme os processos nos quais participa. Esta condição implica na produção de regularidades sensoriais temporais, a partir de padrões perceptivos, que se apresentam dinâmicos, iterativamente adaptados e flexíveis para abarcar nossas antecipações, experiências vividas e informações contextuais.
Conclusão
Em “Sob o horizonte” (2011-2019), a operação poética estabelece-se enquanto processo, que ao instituir atributos e características olfativas para a forma-escultura, potencializa outras conexões e consequentes redes semânticas - alternativas para nossos padrões de linguagem, de representação e de percepção de mundo. Uma enunciação, que oscila distintivamente entre um cheirar, um ver e um ouvir, e conforme Smith (2017) incita respostas comportamentais dos indivíduos, sem atribuir semelhanças entre os estímulos olfativos e os objetos físicos. Ao contrário, rompe com expectativas e associações visuais e/ou sonoras, pela presença de um elemento odorante incomum. Entende-se, assim, que o artista valida a olfação, profundamente baseada na experimentação, e cuja estabilidade perceptiva acontece na/pela integração dos vestígios/registros do estímulo em situações vividas, que se adaptam continuamente. Neste sentido, prioriza-se a dimensão comportamental da percepção, pois
.a representação de estímulo não é o principal objetivo da olfação. Em vez disso, seu trabalhoéresolverumproblemadeavaliação, codificandorapidamenteaimportância biológica de um estímulo e preparando nossa representação multissensorial para uma ação contextualmente apropriada (Castro e Seeley, 2014: 87)
E é desta condição dinâmica da olfação que Oswald Maciá se vale para propor um novo vocabulário e pensar sobre o mundo. No limiar entre o incômodo e o conhecido, o artista desafia processos hegemônicos da linguagem e cultura visual, e questiona a normalização de nossos hábitos. “Meu trabalho prioriza subjetividade sobre objetividade, experiência sobre conhecimento” (Maciá, 2016).