Introdução
O planeamento urbano é considerado, na generalidade dos países da Europa Ocidental, um instrumento de ação do Estado. Conforme salientou Nuno Portas, “sucedeu que certos municípios, ao lançarem-se nas primeiras operações de planeamento urbano em sentido moderno, serviram-se da base institucional para a recolha de um material empírico que, por sua vez, suportaria a formulação das primeiras teorias urbanísticas” (Portas e Gonçalves, 1979, p. 59). Em Portugal, é disto exemplo a vinda de um urbanista, Professor do Institut d’Urbanisme de Paris, Etiènne de Gröer (1882-1952), que, procurando dar seguimento às operações urbanas iniciadas por Donat Alfred Agache (1875-1934) na elaboração do Plano de Urbanização da Costa do Sol (1935-1948), ocuparia o cargo de urbanista-conselheiro técnico da Câmara Municipal de Lisboa (1938-1940), ali desenvolvendo o Plano de Urbanização e Expansão de Lisboa (1948). Para fundamentar as suas opções projetuais, de Gröer publicou os artigos “Le Tracée d’un Plan d’Urbanisation” (Gröer, 1945) e “Introdução ao Urbanismo” (Gröer, 1946; d’Almeida, 2015, Marat-Mendes e Oliveira, 2013). Mas o mesmo também sucedeu noutros países da Europa, como por exemplo em Espanha, onde Ildefons Cerdá (1815-1876), responsável pelo Plano de Extensão de Barcelona (aprovado em 1859), publicou a sua justificativa na obra Teoría General de la Urbanización (Cerdá, 1867). Na Holanda, Hendrik Petrus Berlage (1856-1934), que foi responsável pelo Plano de Extensão de Amesterdão (1915-1919), publicaria a obra Architettura, Urbanistica, Estetica (Berlage, 1989), sustentando a sua teoria urbana.
Antes do ensino do urbanismo ser inteiramente da responsabilidade de estabelecimentos universitários, instituições como o Institut de l’Urbanisme de Paris (1919-1968) em França, o Centre for Environmental Studies (1966-c.1980) no Reino Unido, ou o Centro de Estudios Urbanos do Instituto de Estudios de Administración Local em Espanha (1940-1985), foram responsáveis pelo aperfeiçoamento de muitos técnicos da administração pública, nomeadamente arquitetos camarários, através da partilha de conhecimentos da investigação (interdisciplinar) urbana e regional ali desenvolvida (Wullkopf e Pearce, 1977; Gil, 2016). No início da década de 1960, alguns centros de investigação universitários começaram também a manifestar interesse pelo estudo da arquitetura e do urbanismo. No Reino Unido, o Centre for Land Use and Built Forms Studies (1967), integrado na Universidade de Cambridge e fundado por Leslie Martin (1908-2000) na sequência da sua integração no Departamento de Arquitetura (1956), procurou explorar, continuando as anteriores linhas de investigação como a aplicação computacional à arquitetura ou a história da arte e da arquitetura, a aplicação de princípios geométricos à ocupação do território para melhorar os programas de habitação (Gil, 2016). Em França, após Maio de 1968, com a saída do curso de arquitetura das Escolas de Belas Artes (Lengereau, 2018), abriram-se as portas a uma investigação mais interdisciplinar com Paul-Henry Chombart de Lauwe (1913-1998), Claude Cornuau (n. 1948) e Maurice Imbert (n. 1930) no Centre d'études des Groupes Sociaux, onde o estudo da arquitetura e do urbanismo aparece em diálogo com as ciências humanas e a história da forma da cidade (Stanek, 2011; Gil, 2016).
Em Portugal, a legislação para a criação das cadeiras de Urbanologia (15ª) e de Projetos e Obras de Urbanização (16ª) entrou em vigor em 1945 (DL, 1945), com o objetivo de reforçar a formação de arquitetos-urbanistas (Marat-Mendes et al., 2014). Estas cadeiras foram introduzidas nas Escolas de Belas Artes de Belas Artes de Lisboa e do Porto em 1945. No Porto, a 15ª cadeira teve como seu primeiro professor António Brito e Cunha (1946-1961) e a 16ª cadeira, David Moreira da Silva (1945-1961). Em Lisboa, ambas as cadeiras tiveram como primeiro professor Paulino Montez (1946-1967) (Moniz, 2011). No curso de Engenharia Civil ministrado no Instituto Superior Técnico, a inclusão da cadeira de Urbanização ocorreu dez anos mais tarde, em 1955 (Portas e Gonçalves, 1979; Abreu, 1973). Foi precisamente por esta altura que a investigação relacionada com estas temáticas começou a ganhar maior notoriedade (e aplicabilidade). Dada a inexistência do desejado Instituto de Urbanismo - “destinado a administrar a engenheiros e arquitetos conhecimentos especializados de Urbanologia” (DL, 1950) -, o Gabinete Técnico na Habitação da Câmara Municipal de Lisboa (GTH, 1959-1969), o Centro de Estudos de Urbanismo e Habitação Engenheiro Duarte Pacheco (CEUH, 1963-1977) e o Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC, a partir de 1961 até aos nossos dias) iniciam a pesquisa científica neste domínio. No GTH a investigação centrava-se em dar resposta a implementação de três grandes operações urbanísticas - Olivais Norte, Olivais Sul e Chelas -, impulsionadas pela implementação do DL Nº 42.454 (1959); no CEUH procurava-se conhecer o que se fazia nos “países civilizados” para um mais correto ordenamento do território nacional (Gil, 2019; Oliveira, 1966); no LNEC, a investigação e os estudos experimentais levados a cabo tinham em vista “o progresso da engenharia civil, exercendo a sua ação fundamentalmente nos domínios das obras publicas, da habitação e urbanismo” (DL, 1979). O trabalho de investigação produzido dentro de cada um destes organismos foi disseminado a partir de publicações periódicas, como o Boletim do GTH e a revista Urbanização do CEUH, bem como a partir de Relatórios Técnicos, Informações Técnicas e Memórias no caso do LNEC (Figuras 1).
A investigação científica em arquitetura e urbanismo desenvolvida no LNEC entre 1961 e 1979 é aqui merecedora de uma maior atenção. A pesquisa levada a cabo no âmbito de um Projeto de Pós-Douramento , nomeadamente aos arquivos e biblioteca do LNEC, bem como aos relatórios sumários da atividade conduzida neste Laboratório e a entrevistas a alguns dos seus ex-investigadores, permite-nos hoje identificar, entre a totalidades dos trabalhos desenvolvidos na Divisão de Construção e Habitação (DCH, 1961-1969) do Serviço de Edifícios e Pontes e na subsequente Divisão de Arquitetura (DA, 1969-1979) do Serviço de Edifícios, os principais no tocante às temáticas da arquitetura e do urbanismo. O conhecimento destes trabalhos permite-nos hoje confrontá-los com as preocupações temáticas e metodológicas de investigações recentes no âmbito do estudo planeamento urbano, nomeadamente aquelas oriundas do projeto de investigação SPLACH - Spatial Planning for Change (2017-2020), que visa informar futuras políticas públicas na promoção de uma transição de planeamento urbano para a sustentabilidade, com particular interesse na temática do sistema alimentar contemporâneo.
Neste sentido, procuraremos neste artigo responder às seguintes questões de partida: Em Portugal, nos anos sessenta, quando o mundo testemunhava a expansão da investigação como ferramenta de apoio às transformações económicas, sociais e ambientais que afetavam as cidades e o território, quais as primeiras investigações desenvolvidas no LNEC no âmbito da arquitetura e do urbanismo? Quem foram os intervenientes dessas investigações no LNEC? Que temas abordaram e que consequências práticas tiveram no planeamento urbano português? E, qual a sua atualidade face às problemáticas da sustentabilidade nos dias de hoje?
De forma a responder a estas perguntas, o presente artigo estrutura-se em duas partes. Segue-se a esta introdução a primeira parte, dedicada à investigação científica em arquitetura e urbanismo conduzida no LNEC, elucidando as diferentes temáticas e metodologias abordadas, os investigadores por elas responsáveis, os centros de investigação estrangeiros que serviram de referência para a comunidade científica do LNEC, e o impacto da investigação na prática da arquitetura e do planeamento urbano em Portugal. Na segunda parte, promove-se uma breve leitura da evolução das linhas de investigação em arquitetura e urbanismo e dos seus incentivos financeiros, conduzidas em Portugal face às políticas urbanas nacionais e europeias e, no âmbito de contributos resultantes do Projeto SPLACH, destacam-se quais as problemáticas contemporâneas impostas pela questão da sustentabilidade e quais os principais temas de investigação que têm sido chamados para a resolução dos problemas urbanos que lhe estão associados. Finalmente, nas conclusões, destaca-se a utilidade dos trabalhos de investigação conduzidos outrora no LNEC como importantes lições para a análise da presente problemática da sustentabilidade da vida urbana.
Fonte: Boletim 1 (julho/agosto 1961). Lisboa: Gabinete Técnico na Habitação da Câmara Municipal de Lisboa; Urbanização, vol. IX, 1 (março 1974). Lisboa: Centro de Estudos de Urbanismo e Habitação Engenheiro Duarte Pacheco; Portas, N. (1969) Funções e exigências de áreas de Habitação. Informação Técnica - Edifícios Nº 4. Lisboa: LNEC.
1. Investigação em arquitetura e urbanismo no LNEC
Dada a intensificação de trabalhos de Engenharia Civil, em 1946, o Ministério das Obras Públicas cria o LNEC, de modo a centrar num só edifício o “estudo dos materiais, dos processos e da técnica da construção civil” (DL, 1946). Mas, como nos relembrou Nuno Portas (n. 1934), a par dos três primeiros serviços criados , “todos os problemas enfrentados pela prática urbanística - sobretudo os que fossem suscetíveis de um tratamento em termos normativos - poderiam ter suscitado a atenção do LNEC desde a sua criação” (Portas e Gonçalves, 1979, p. 67), o que não se verificou. Somente no início da década de 1960 é que este domínio de estudo foi merecedor de uma maior atenção, particularmente quando Nuno Portas foi convidado pelo LNEC a formar uma equipa de investigadores para dar resposta a estudos referentes à habitação e ao uso do espaço urbano na DCH (Dias, 2017; D’Almeida et al, 2019).
Se é verdade que as necessidades de transformação territorial, urbana e regional, intrínsecas ao período pós-Revolução Industrial, justificavam um avanço neste domínio de investigação, também é verdade que em meados da década de 1960 eram ainda poucos os arquitetos que manifestavam apetência para uma via profissional mais vocacionada para a investigação científica. Entre o grupo de jovens arquitetos que privava com Nuno Portas, nomeadamente no atelier de arquitetura que este partilhava com Nuno Teotónio Pereira (1922-2016), encontravam-se alguns colaboradores que, em diferentes alturas, evidenciaram aptidão para desenvolver algumas das indispensáveis linhas de pesquisa . Deste modo, durante um determinado período, não só alguns destes arquitetos foram convidados a investigar no LNEC, como o contrário também se verificou.
Todavia, antes de estabelecerem um vínculo com o LNEC, alguns destes arquitetos haviam experienciado outras atividades de pesquisa, nomeadamente em centros de investigação estrangeiros. Particularmente Bartolomeu Costa Cabral (n. 1929) estagiou no CSTB (1962) e no Greater London Council (1965) e Maria da Luz Valente Pereira (n. 1934) na Société d’Etude Technique et d’Aménagement Planifié (SETAP) e no Institut de Recherche et Formation en Vue du Développement Harmonisé (Paris, 1962-1963) (Dias, 2017-E3; Cabral, 2018-E1; Pereira, 2017-E7). Neste contexto, embora não tenha passado pelo atelier de Nuno Portas e Nuno Teotónio Pereira, Francisco Silva Dias (n. 1930) também estagiou no Centre Scientifique et Technique du Bâtiment (CSTB, Paris 1966) antes de ingressar no LNEC.
Verificamos ainda que um determinado número de investigadores do LNEC trabalhou a atividade de pesquisa em articulação (simultânea ou não) com outras práticas profissionais, nomeadamente, cargos públicos numa componente político-administrativa, de que é exemplo, entre outros, o desempenho de Nuno Portas enquanto Secretário de Estado da Habitação e Urbanismo (1974-1975) e do engenheiro Manuel Rocha (1913-1981), Diretor do LNEC (1954-1974), nomeado Ministro do Equipamento Social e Ambiente (1974). Certos arquitetos-investigadores do LNEC integraram também associações de técnicos responsáveis pela elaboração de planos urbanos e/ou projetos de urbanização, nomeadamente Silva Dias, que trabalhou para a Câmara Municipal de Lisboa através do GTH (1960-1963) (Dias, 2017-E3); Costa Cabral, arquiteto da Federação das Caixas de Previdência/Habitações Económicas (1959-1963) (Cabral, 2018-E1; Couto, 2016); e Valente Pereira, arquiteta colaboradora do Fundo de Fomento da Habitação (1979-1982) (Pereira, 2017-E7; D’Almeida e Marat-Mendes, 2020).
Importa ainda lembrar aqueles que lecionaram cadeiras diretamente relacionadas com a prática de projeto arquitetónico/urbano nas Escolas de Belas Artes de Lisboa (EBAL) ou do Porto (EBAP), como é o caso, por exemplo, de Nuno Portas , Silva Dias , Costa Cabral e Alexandre Alves Costa (Moniz, 2011, pp. 50, 75, 513 e 519).
Recém-chegado ao LNEC, Nuno Portas colocou imediatamente à disposição dos restantes investigadores (sobretudo jovens arquitetos), uma série de obras de referência para que estes se inteirassem das temáticas e metodologias de estudo aplicadas por outros autores/investigadores estrangeiros , nomeadamente de Chombart de Lauwe, Cristopher Alexander (n. 1936), Serge Chermayeff (1990-1996), Leslie Martin (1908-1999), Lionel March (1934-2018), Jay Wright Forrester (1918-2016) ou Kevin Lynch (1918-1984). Assim, naturalmente, os primeiros temas de investigação em arquitetura e urbanismo desenvolvidos no LNEC surgiram na continuidade de trabalhos levados a cabo em centros de investigação estrangeiros. As pesquisas desenvolvidas em centros de investigação além-fronteiras eram cuidadosamente acompanhadas por Nuno Portas e alguns dos seus investigadores, em contacto regular com este arquiteto português (Portas, 1965; D’Almeida et al, 2020). Assim, embora os primeiros trabalhos sejam mais direcionados para o domínio da habitação, para a análise do projeto arquitetónico e dos sistemas construtivos, como veremos, posteriormente, seguem-se outros mais relacionados com o domínio do urbanismo (Anexo 1).
Numa primeira fase levaram-se a cabo estudos relacionados com a análise do comportamento dos utentes em determinadas áreas residenciais, particularmente com a realização do Inquérito-piloto sobre necessidades familiares em matéria de habitação (Portas e Gomes, 1963). Desenvolvido em linha com as metodologias aplicadas pelo sociólogo Chombart de Lauwe (Lauwe, 1959), pretendia este inquérito possibilitar o conhecimento das “modalidades de utilização da habitação em função de duas ordens de variáveis: famílias diferentes e diferentes conceções de organização do fogo e seu agrupamento” (Portas e Gomes, 1963, p. 14). Para além do registo em planta da localização do mobiliário e equipamentos domésticos (Figura 2), foi ainda dirigido à dona da casa um questionário minucioso onde constavam perguntas como: Há quantos anos vive nesta casa? Quantas pessoas vivem no alojamento? A família tem criada? Gostava que a sua casa tivesse mais quartos? Onde costuma tomar as principais refeições? Costuma ficar alguém na sala depois do jantar? A sua cozinha tem sol? Em que divisões da casa deixa as crianças pequenas brincar? Para que lhe serve a varanda? (Figura 3). O apuramento deste inquérito, cujos resultados foram publicados pelo LNEC (Portas e Pereira, 1967) e também difundidos nacional e internacionalmente (d’Almeida et al, 2020), possibilitou igualmente uma caracterização demográfica e sociocultural das famílias inquiridas, elaborada pelo sociólogo João Ferreira de Almeida (n. 1941) (Portas e Gomes, 1963). Consequente, seguiram-se dois novos inquéritos : i) o Inquérito à habitação urbana (Pereira e Portas, 1967; Pereira e Gago 1972 e 1977), que procurou refletir sobre a influência nas atividades da casa e zonas exteriores a esta mas diretamente relacionadas com a habitação; e ii) o Inquérito à utilização da cidade (Pereira, 1970a), com enfoque na relação da habitação com a vida urbana na cidade, oferecendo aos projetistas urbanos daquele tempo um maior conhecimento acerca da distribuição dos locais de permanência obrigatória (habitação e trabalho) e dos locais ‘atraentes’ para o uso (mistos de tempos livres). A análise e interpretação das atividades realizadas na habitação relacionadas às características socioeconómicas dos núcleos familiares foi apresentada em O uso do espaço na habitação (Pereira e Gago, 1974) e divulgada “através dos canais a que esta instituição normalmente recorre: publicação de relatórios, apresentação de comunicações em congressos, conferências e outros tipos de encontros técnicos, e realização de seminários integrados em ações de especialização” (Portas e Gonçalves, 1979, p. 71).
A informação recolhida nos inquéritos serviu diversos estudos subsequentes, designadamente, e logo após o inquérito-piloto, o estudo intitulado Racionalização de soluções da habitação (Costa e Portas, 1966), em aproximação ao tema do Design and Building Process levado a cabo por Christopher Alexander (1964). A expansão dos recursos informáticos do LNEC possibilitou o emprego de modelos matemáticos e o tratamento automático da informação estatística, transformando os resultados dos questionários numa matriz numérica, acessível ao cálculo computorizado. Seguiu-se, entre outros, o estudo da Racionalização de soluções de organização de fogos (Cabral, 1968), resultante da necessidade de se proceder à analise da forma geométrica dos edifícios para identificação das soluções mais reveladoras de qualidade do espaço urbano, trabalho em consonância com os estudos realizados por Leslie Martin e Lionel March no Centre for Land Use and Built Form Studies (LUBFS) da Universidade de Cambridge, Inglaterra. Soluções alternativas de projeto evolutivo foram apresentadas por Silva Dias e Nuno Portas no trabalho intitulado Tipologias de edifícios: Habitação Evolutiva (Dias e Portas, 1971), decorrente de questões apontadas no Colóquio da Política da Habitação do Ministério das Obras Públicas (1969) e que impunham resposta “alternativa às fórmulas correntes dos bairros de blocos habitacionais de iniciativa pública” (Dias e Portas, 1971).
Saliente-se o facto de, por esta altura, serem já do conhecimento do LNEC, e dos seus investigadores por via de Nuno Portas, as experiências habitacionais levadas a cabo na América do Sul e no Norte de África. Como se verifica, foram reunidos em anexo (N.º III) deste mesmo trabalho de pesquisa “exemplos de realizações estrangeiras” (Dias e Portas, 1971: 91-101; Dias, 2017, pp. 296-300), nomeadamente da autoria de M. Azaguy e Gérard Blachère (1914-2011) em Marrocos, Carlos Nelson (1943-1989) no Rio de Janeiro, e de Germán Samper (1924-2019), Kiyonori Kikutake (1928-2011), Georges Candilis (1913-1995) e Toivo Korhonen (1926-2014) em Lima. Neste contexto importa igualmente lembrar a experiência desenvolvida por Valente Pereira na SETAP, da qual também resultou uma missão em Abidjan (Costa do Martim) sob a orientação dos arquitetos Guy Lagneau (1915-1996), Jean Dimitrijevic (1926-2010) e Michel Weill (1914-2001) (Pereira, 2017-E7 e Pereira, 2018-E8). Este trabalho, com enfoque no desenvolvimento de uma aldeia piloto, foi posteriormente apresentado por Valente Pereira, enquanto estagiária para especialista do LNEC , nas Segundas Jornadas de Engenharia e Arquitetura do Ultramar (Luanda, maio 1969).
Com a entrada em vigor do DL Nº 55/71 (1971), o Serviço de Edifícios passa a “exercer atividade no domínio da investigação, da assistência técnica e de divulgação relativas aos problemas da conceção, projeto e execução e conservação de edifícios em geral e, em particular, dos edifícios para habitação e dos conjuntos habitacionais” (Rocha, 1972, p. 1). Assim, a investigação desenvolvida na então designada Divisão de Arquitetura (1969-1979), agora chefiada por Nuno Portas, vai incidir sobretudo no “Planeamento de Estudos no Domínio de Edifícios” (Rocha, 1971, p. 27; LNEC, 2006, p. 212; D’Almeida et al, 2019). Abriram-se assim novas perspetivas para a abordagem dos problemas urbanísticos, nomeadamente a partir da análise à legislação urbanística e das instituições responsáveis pelo implemento de planos urbanos e territoriais.
Neste âmbito destacam-se aqui os trabalhos desenvolvidos por Fernando Gonçalves (n. 1946), particularmente aqueles que incidiram sobre a análise da legislação urbanística portuguesa (Gonçalves, 1974, 1982 e 1983). Esta temática de investigação, que até aquele momento não havia sido estudada em Portugal (Gonçalves, 2019-E5), foi posteriormente também analisada em confronto com a experiência Sueca, resultado do Programa de Cooperação Técnica Luso-Sueca, estabelecido a 23 de outubro de 1975. Assim ao Laboratório português foi proposto um esquema de troca de informações técnicas e a realização de seminários, para públicos mais alargados. Deste modo, em dezembro de 1975, decorreu em Lisboa, nas instalações do FFH, um curso ministrado por especialistas suecos, subordinado ao tema “Cooperativas de habitação” (Bandeirinha, 2011, p. 289). A primeira missão de arquitetos-investigadores do LNEC à Suécia foi conduzida, em janeiro de 1976, pelo chefe da Divisão, Nuno Portas, e pelo estagiário para especialista António Reis Cabrita (n. 1942). Esta “missão exploratória”, realizada essencialmente em Estocolmo com o apoio da Swedish International Developmet Authority e do Swedish Institut, destinou-se a procurar: “a) Informação acerca do contexto e evolução do sistema de administração pública Sueca, com especial atenção para o sistema de planeamento - económico e físico, nacional e regional; b) Pesquisa sobre a natureza dos instrumentos de planeamento urbano na Suécia - planos, regulamentos e seu controle, assim como o processo de aprovação e implementação na prática das instituições comunais e regionais; c) Compreensão das relações entre os níveis locais e governamental, incluindo a estrutura do planeamento nas comunas, condados e Regiões Administrativas” (Portas e Cabrita, 1976: 117). Neste sentido, concluiu-se naquele momento que a estrutura administrativa Sueca era muito diferente da Portuguesa, sobretudo porque assentava “numa grande autonomia dos municípios, com receitas próprias, controlada pelo processo político, partidário e eleitoral” (Portas e Cabrita, 1976, p. 6; Gonçalves, 2019-E6). Relativamente à organização dos estaleiros, dos trabalhos e dos projetos de obra, concluíram ainda os técnicos portugueses que muitos dos princípios aplicados eram semelhantes aos recomendados pelo LNEC, particularmente no trabalho de Reis Cabrita, intitulado Projeto de Comunicação à Obra (Portas e Cabrita, 1976: 25; Cabrita e Portas, 1972; Cabrita, 2017-E2).
O conhecimento adquirido com estas missões e viagens ao estrangeiro, com os trabalhos de investigação entretanto desenvolvidos na DCH e na DA, bem como com as apresentações e contactos estabelecidos pelos seus arquitetos-investigadores em congressos nacionais e internacionais, promoveu o apoio técnico do LNEC a muitos serviços do Estado. Designadamente à Secretaria de Estado da Habitação e Urbanismo, para reformular a legislação urbanística portuguesa e “se apresentar um projeto de ‘Lei-Quadro do Urbanismo’” (Portas e Gonçalves, 1979, p. 72; Gonçalves, 1982 e 1983), a fim de se definirem as linhas orientadoras para o ordenamento do território e para a prática urbanística; e para se desenhar o processo SAAL, Serviço Ambulatório de Apoio Local (Portas, 1986, p. 637), cujo apoio técnico e financeiro foi prestado pela Suécia (Bandeirinha, 2011, p. 292) na sequencia do Programa de Cooperação Técnica Luso-Sueca, para dar resposta em Portugal ao problema da habitação e da desagregação social nas cidades com a construção participada de habitações para as classes mais desfavorecidas (Despacho DD4630, 06/08/1974).
A aproximação de alguns investigadores da Divisão de Arquitetura a temáticas de investigação exclusivamente relacionadas com o domínio do urbanismo e da gestão territorial levou a que, uns anos mais tarde, fosse criado no LNEC o Grupo de Urbanismo e Planeamento Municipal (GURPLAM, 1987-1997). A cooperação técnica para o desenvolvimento de ações de apoio às autarquias locais no âmbito do Planeamento Urbano e Municipal, constituiu um dos objetivos preponderantes do GURPLAM (Gago e Pereira, 1990).
Fonte: Adaptado de Pereira, M. L. V., Gago, M. A. C. (1972) Inquérito à habitação urbana. Pesquisa de campo. Lisboa: LNEC.
2. O desafio da sustentabilidade
Passadas quase seis décadas desde o início do desenvolvimento da investigação em arquitetura e urbanismo no LNEC, é possível hoje constatarmos que foram várias as transformações políticas, sociais e económicas que ocorreram entretanto em Portugal, e cujas implicações nas formas de organização da investigação em arquitetura e urbanismo, bem como no planeamento urbano nacional contemporâneo ainda se encontram por determinar. Nomeadamente, é notório o impacto positivo da descentralização do conhecimento técnico e científico que outrora se encontrava confinado a laboratórios estatais, para centros de investigação na sua maioria vinculados a instituições universitárias, como é o caso do Centro de Estudos sobre a Mudança Socioeconómica e o Território (DINÂMIA'CET-IUL) do Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-IUL, ou o Centro de Investigação do Território, Transportes e Ambiente (CITTA) da Faculdade de Engenharia do Porto, ou a Unidade de Investigação em Governança, Competitividade e Políticas Públicas (GOVCOPP), da Universidade de Aveiro, entre muitos outros. Referimo-nos a estes três centros de investigação em particular pois eles integram a equipa de investigação do Projeto SPLACH.
Essa descentralização, bem como a sua expansão deveu-se sobretudo a vários programas de estímulo à ciência em Portugal, nomeadamente aqueles impulsionados por Mariano Gago (1948-2015) nos anos 90 do século XX, enquanto Ministro da Ciência e da Tecnologia (1995-2002) do XIII Governo Constitucional (Heitor e Rodrigues, 2015). No entanto, a promoção da atividade científica em Portugal, centralizada em instituições para a gestão e desenvolvimento, teve o seu início mais cedo, concretamente em 1929, data em que é fundada a Junta de Educação Nacional (até 1936), que constituiu a primeira instituição com a vocação de promover e apoiar o desenvolvimento e a organização da ciência em Portugal (Rollo et al., 2011) e que viria a ser continuada pelas demais instituições que a sucederam, onde se incluem a Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica (JNICT, 1992-1995) e a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT, 1997-nossos dias). Embora todas estas instituições fossem de gestão e de incentivo à ciência, caberia aos laboratórios e aos centros de investigação promover o desenvolvimento da ciência em Portugal, através dos seus investigadores, bem como articular essa investigação com o ensino e a sociedade civil.
É neste contexto que Portugal assiste à difusão de uma cultura científica, através da sua divulgação junto da restante comunidade empresarial, artística e dos media (Granado e Malheiros, 2015). Uma cultura científica que encontra eco nas agendas de promoção científica nacionais e internacionais, sobretudo após a adesão de Portugal à União Europeia em 1986 e, no crescente número da sua produção científica até aos dias de hoje (Agência Lusa, 2019). As implicações desta cultura no desenvolvimento das linhas de investigação no âmbito da arquitetura e do urbanismo também ainda se encontram por esclarecer. No entanto, é notório o maior desenvolvimento de determinados aspetos em detrimento de outros, em função da própria promoção financeira e temática por parte das intuições europeias e nacionais que nortearam as linhas de investigação a desenvolver. Por exemplo, a própria Agenda da Sustentabilidade, que é em si um projeto científico desde a publicação da definição do conceito de Desenvolvimento Sustentável pelas Nações Unidas em 1987 (WCED, 1987), teve implicações profundas no desenvolvimento da investigação em arquitetura e urbanismo em Portugal, mas com claros desequilíbrios entre diferentes sectores. Destaca-se o forte incentivo às linhas de investigação com enfoque na problemática da eficiência energética, cuja articulação entre investigação e o meio empresarial é evidente. Este incentivo rapidamente impulsionou o desenvolvimento do sector da construção e da mobilidade em Portugal. Foram várias as diretivas comunitárias e nacionais que acompanharam este processo e impuseram novas regras de construção, novos materiais de construção e a promoção e o desenvolvimento de novos aplicativos e utensílios (por exemplo placas fotovoltaicas, luzes led, carros elétricos, etc.) por parte das empresas, com direto impacto nas cidades e no planeamento de infraestruturas viárias no âmbito da promoção das Obras Públicas.
No entanto, foram várias outras áreas, no âmbito da arquitetura, urbanismo e planeamento urbano, que foram remetidas para planos menos prioritários, embora nunca abandonadas pelos investigadores portugueses (incluindo o estudo da forma urbana, da habitação, dos modos de vida, etc.). Algumas destas linhas de investigação, como verificado, haviam sido iniciadas no próprio LNEC.
Contudo, através de uma análise aos mais recentes documentos publicados pelas Nações Unidas (United Nations, 2015 e 2017), no âmbito da proposta de uma nova agenda urbana para a sustentabilidade é de se apontar a existência de uma reorientação temática no tocante às problemáticas societais, que seguramente terão implicações várias nas agendas de investigação nacionais e internacionais. Temas como o acesso à alimentação, à água e às condições de habitabilidade, bastante em voga durante os anos 60, quando a investigação em arquitetura e urbanismo dava os seus primeiros passos no LNEC, são agora retomados pelas Nações Unidas, e a eles tem sido dado idêntico destaque como foi o caso da eficiência energética no início do século XXI. Contudo carecem de maior desenvolvimento dentro de uma agenda de planeamento urbano nacional.
De facto, nos anos 60, quando a Europa e Portugal necessitaram de encontrar respostas urgentes ao problema da falta de habitação e da organização do espaço urbano para acomodar as novas edificações residenciais e os novos equipamentos sanitários, viários, desportivos, recreativos, escolares, universitários, entre outros, o LNEC contribui para esses mesmo estudos com trabalhos de investigação desenvolvidos na Divisão de Construção e Habitação (1961-1969) e, posteriormente, na Divisão de Arquitetura (1969-1979). Aí, conforme já referido, foram levados a cabo diversos estudos de cariz multidisciplinar, nomeadamente inquéritos à habitação, ao espaço urbano e às condições de vida das populações. Esses estudos ajudaram a desenvolver um conjunto de critérios, de linhas orientadoras para o ordenamento do território e para a prática urbanística, e a apoiar na delineação de instrumentos de planeamento para a concretização no terreno da materialização dessa mesma investigação, alguns deles ainda hoje em vigor, de que é exemplo o Decreto de Lei sobre o Plano Diretor Municipal (DL, 1977), desenvolvido a partir de uma proposta de Nuno Portas e Fernando Gonçalves (Grande, 2012: 399; Gonçalves, 1974). É neste tempo, momento da génese do pensamento urbanista português, que foram desenvolvidas as metodologias de análise urbana conduzidas no LNEC, cujos contributos ao desenvolvimento do estudo da forma urbana em Portugal se fizeram sentir no planeamento de vários bairros residenciais, suportadas pelos resultados da observação direta dos seus investigadores à realidade portuguesa da época .
No âmbito do Projeto SPLACH, e perante a problemática de investigação em apreço - nomeadamente na indicação de orientações de planeamento para uma transição sustentável do sistema alimentar contemporâneo, especificamente na Área Metropolitana de Lisboa -, a investigação conduzida no DINÂMIA'CET-IUL desenvolveu um conjunto de tarefas de análise e um inquérito exaustivo à agricultura urbana na AML no atual contexto, com o objetivo de o avaliar e assim apontar possíveis linhas de melhoria a desenvolver no âmbito do planeamento. Curiosamente, das análises realizadas aos atuais instrumentos de planeamento em vigor, designadamente às práticas emergentes relacionadas com o sistema alimentar (incluindo as hortas urbanas), concluiu-se que, para a resolução de uma transição do sistema alimentar da AML, será necessário não só uma reorganização do planeamento do sistema alimentar, mas também uma melhor articulação deste com os restantes subsistemas que operam no sistema urbano - como por exemplo o sistema hídrico e o sistema natural cujos impactos no metabolismo urbano são evidentes (Niza et al, 2016) -, mas também com o sistema habitacional, cujos impactos espaciais e sociais analisados nos anos 60, carecem agora de atualização e de articulação com o estudo metabólico das cidades iniciados nos anos 90 e agora retomados pelo Projeto SPLACH (Marat-Mendes e Borges, 2019). Confirmou-se ainda a necessidade de uma articulação de metodologias de investigação complementares e multidisciplinares para dar resposta à investigação dos problemas urbanos contemporâneos, nomeadamente através do estudo do metabolismo urbano e da forma urbana, conforme testemunhado no inquérito à agricultura urbana. Finalmente, saliente-se ainda que a abordagem metodológica levada a cabo no âmbito do Projeto SPLACH se assemelha à experiência conduzida no LNEC durante os anos 60, através da combinação de diversas metodologias de investigação, promovidas pela interligação de diversas áreas disciplinares, destacando-se a sociologia, a informática e o desenho urbano.
Conclusões
Para o desenvolvimento deste artigo foi analisada a investigação produzida na Divisão de Construção e Habitação e na Divisão de Arquitetura do LNEC, o que corresponde a uma baliza temporal compreendida entre 1961 e 1979, e à análise de mais de uma centena de trabalhos de investigação (Anexo 1). Verificou-se que, no âmbito da arquitetura e do urbanismo, os temas desenvolvidos naquele tempo neste Laboratório português, concentrados em dar resposta ao problema do crescimento da população urbana e da consequente falta de habitação, não se encontram hoje desatualizados, antes, são pertinentes para retomar uma reflexão séria sobre a cidade e os impactos dos nossos modos de vida na sua forma urbana. Quando complementados com novas abordagens, nomeadamente com o estudo do metabolismo urbano, os trabalhos de investigação outrora desenvolvidos poderão oferecer importantes lições para a análise da presente (e futura) problemática da sustentabilidade da vida urbana, nomeadamente sobre as realidades e praticas quotidianas de quem vive nas cidades, conforme equacionado pelo já referido Projeto de Investigação em curso, SPLACH.
Presentemente, o confinamento a que todo o mundo foi sujeito por imposição da rápida disseminação do Coronavírus, mudou radicalmente o modo como as pessoas habitam as suas casas, vivenciam os seus bairros e acedem aos bens de primeira necessidade para a sua alimentação. Um novo inquérito à habitação - “Inquérito sobre Habitação e o COVID-19” -, promovido por uma equipa de investigadores do DINÂMIA'CET-IUL, procura examinar, entre outros níveis de análise, as condições habitacionais nas atuais circunstâncias de confinamento e face à carência habitacional verificada nos últimos anos nas grandes cidades, particularmente por “invasão” de um enorme número de turistas e pela adaptação das habitações a alojamento local. Contudo, diversos outros estudos são urgentes e necessários, incluindo às formas urbanas que congregam os vários sistemas que operam no território, nomeadamente o sistema alimentar. Importa hoje analisar, tal como o fez outrora o LNEC, a realidade presente e percecionar os problemas que esta nos impõe para podermos contribuir para um futuro urbano mais sustentável.