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Revista Crítica de Ciências Sociais
versão On-line ISSN 2182-7435
Revista Crítica de Ciências Sociais no.121 Coimbra maio 2020
DOSSIER
Memória, justiça e poder: desafios contemporâneos. Uma introdução
Rogério Ferreira de Souza
https://orcid.org/0000-0002-5838-6810
Programa de Pós-graduação em Sociologia Política, Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro da Universidade Candido Mendes (IUPERJ-UCAM) | Laboratório de Estudo da Cidade e Cultura, IUPERJ-UCAM. Rua da Assembleia, 10, 7.º Andar, Sala 702, Centro, CEP: 20011-901, Rio de Janeiro, Brasil rogeriosouza@iuperj.br
Queria acreditar em algo além,
Além da morte que a desfez.
Queria poder dizer a força
Com que outrora desejamos,
Nós, já submersos,
Poder mais uma vez juntos
Caminhar livremente sob o sol
Levi (2019 (1946): 21)
O poema “25 de fevereiro de 1944”, escolhido como epígrafe para o presente texto de introdução a este dossiê, traz a força poética pela qual Primo Levi imprimiu à literatura, à filosofia e ao pensamento social suas reminiscências, decorrentes da experiência enquanto prisioneiro num campo de concentração alemão nos anos de 1943-1944. Ao rememorar suas experiências do Lager, ora em forma de poesia ora em romances e ensaios, Primo Levi nos narra o que para Walter Benjamin (1996) seria intraduzível enquanto experiência narrativa – o horror do processo de desumanização do ser humano. Levi conseguiu fazer da sua memória um instrumento de denúncia e reflexão sobre um dos períodos mais traumáticos da história moderna. E por isso, e para além disso, a necessidade de nunca ser esquecido.
Um marco civilizacional era exigido no pós-guerra, e as denúncias às atrocidades dos campos de concentração criaram uma “onda memorialista” que abarcou parte das últimas décadas do século xx, constituindo um campo investigativo tanto epistemológico como político. Não obstante, as últimas décadas do século xx representaram a consolidação da “cultura da memória e da política da memória” em âmbitos transnacionais, quiçá globais, como expôs Andreas Huyssen (2014: 135). Para este autor, é a partir dessa altura que o trauma histórico decorrente da Primeira Guerra Mundial, das guerras descoloniais, dos extermínios étnicos e raciais e de inúmeros outros crimes contra os direitos humanos começou a ser denunciado, e memórias até então esquecidas passaram a ser instrumentos de reivindicação na luta por justiça e reparação. A “história a contrapelo” benjaminiana se abria em um horizonte de possibilidades, para que grupos historicamente reprimidos e jovens democracias submetidas às agruras dos sistemas totalitários se vissem na real possibilidade de reescrever as suas experiências em processos históricos rumo à luta por justiça e reparação, alargando o horizonte democrático.
É neste ínterim que as comissões da verdade surgem com força, principalmente nos países da América Latina, trazendo à tona o período sombrio do terrorismo de Estado. Abriam-se assim inúmeras possibilidades de um refazer histórico. A memória e sua instrumentalização política enveredavam-se em lutas por justiça, reparação e reconhecimento. Porém, e não se pode perder isso de vista, todo o movimento memorialista e todas as lutas por direito à memória são processos conflituosos. Disputas simbólicas se dão no presente e em torno de um passado que se encontra sempre em reconstrução. Ou seja, as lutas por memórias se dão em “passados presentes” desconstituídos, por assim dizer, de neutralidade. Disto isso, por mais que se busque uma objetividade ao reconstruir um passado, “toda lembrança está sujeita a interesses e usos funcionais específicos” (Huyssen, 2014: 181).1
No âmbito da cultura, em consonância ao movimento político em torno das lutas pela memória e justiça, o fenômeno da luta pela memória e sua política memorialista acompanharam também um surto produtivo. No final do século xx e início do século xxi, como já referido, a memória do Holocausto, das duas guerras mundiais, dos genocídios étnicos e raciais como também dos crimes do terrorismo de Estado foi retratada em inúmeros estudos, obras acadêmicas e literárias. Estes foram acompanhados de um crescente movimento de produção de lugares de memória, onde memoriais sobre o Holocausto, projetos arquitetônicos e exposições se espalharam por várias partes do Ocidente. Esse movimento também foi acompanhado pelas artes plásticas e visuais, pelo cinema e pelo teatro, trazendo um exponencial aumento de produções culturais em um sentido quase “ritualístico da memória” (ibidem: 135). O Ocidente forjou para si uma cultura memorialista e comemorativa da memória, na qual, cada vez mais, uma revisão e uma releitura sobre as atrocidades do passado se fazia emergencial.
Os processos decorrentes da cultura memorialista, de reviver e de relembrar momentos históricos traumáticos estiveram, em larga medida, atrelados ao movimento de “nunca esquecer”– e para tal era preciso ser sempre lembrado. O filósofo e crítico literário francês Jacques Rancière, em uma de suas conferências, argumentou que em certas ocasiões somos obrigados a nos debruçarmos e refletir frente à seguinte questão: “o que mudou durante os últimos dez, vinte ou cem anos?” (2010: 73). Sua resposta é acompanhada de uma provocação: “o que mudou nesse lapso de tempo é que os tempos mudaram”, ou seja, que “certas coisas já não pertencem ao que os novos tempos tornaram possíveis” (ibidem). Assim, já não era mais possível conceber os genocídios em massa e a política dos Lager, nem a permanência de países colonizados e subalternizados, ou ainda a continuidade de Estados ditatoriais e totalitários. A implementação e aceitação de injustiças sociais, étnicas, raciais e de gênero – entre outras – se tornavam inconcebíveis. Inconcebível também seria a ausência de direitos e liberdades de pensamento. Enfim, se de facto os tempos mudaram, mudou também o sentido da dignidade humana junto aos afetos constitutivos do sentimento de justiça. Pelo menos foi a partir dessa perspectiva que inúmeros grupos, movimentos e atores sociais pautaram suas lutas. Foi nesse estado de inadmissibilidade de injustiças que essas lutas configuraram e ainda configuram demandas e estratégias.
Contemporaneamente, as demandas sobre identidade, reparação, justiça e reconhecimento se entrelaçam com as lutas por memória, forjando novos contornos e alargamento do número de atores e instituições. A reconstrução e recondução das memórias sociais e coletivas, outrora subjugadas, remetem para contextos históricos diversificados, onde o papel das instituições, grupos e atores sociais são articulados em diversas frentes de luta, ampliando os vínculos e valores democráticos, mesmo que de forma dissonante. E nesse sentido, as reivindicações culturais, simbólicas e jurídicas em torno das lutas por memória e justiça são produzidas, rememoradas, disputadas, manipuladas, esquecidas e instrumentalizadas por grupos, instituições e atores sociais em arenas públicas cada vez mais difusas, por conta do processo de globalização da cultura e do mercado, das novas mídias e das redes sociais.
Não obstante, pari passu às disputas políticas no campo da memória e luta por justiça, as pesquisas acadêmicas nas últimas duas décadas – principalmente no âmbito das ciências sociais – atribuíram relevância teórica, analítica e metodológica aos estudos desses campos. A discussão sobre a memória e a sua multidisciplinaridade temática vêm assim tendo, principalmente nos países da América do Sul, um enorme interesse acadêmico.2
(…) E esta tarefa vem sendo assumida com afinco e entusiasmo nas últimas duas décadas pelos pesquisadores e acadêmicos, pois, na medida em que o campo de estudo da memória coletiva e social se ampliava, devido às inúmeras demandas concernentes aos processos de redemocratização e abertura política e globalização, novas concepções e abordagens teóricas e metodológicas se fizeram necessárias. Inicialmente, duas questões se pautaram com urgência à discussão do campo da memória: i) a superação do divisor história/memória no âmbito epistemológico e; ii) a superação do binário memória individual e memória coletiva como categorias de análise. (…). Cabe, no entanto, destacar que o campo de estudos da memória coletiva e social necessitou e continua necessitando de inúmeras contribuições teóricas e metodológicas de áreas diversas das Ciências Humanas. Os conceitos de “aura”, “indústria cultural”, “ressignificação”, “fetiche”, “esquecimento” entre outros, oriundos da Filosofia são constantemente utilizados em trabalhos sobre memória coletiva e social. Assim como também, conceitos como “trauma”, “recalque”, “imaginário”, “fantasia” etc., provenientes das psicanálises freudiana e lacaniana são repensados e discutidos em inúmeras pesquisas no campo da memória. Correntes teóricas como a Fenomenologia, Funcionalismo, Estruturalismo, Pós-estruturalismo, Construtivismo, Interacionismo simbólico, Teoria Crítica e, mais recentemente, os Estudos pós-coloniais, Teorias Feministas, Estudos Culturais e Hibridismo, também vêm enriquecendo e diversificando o amplo campo de estudo da memória coletiva e Social, tanto no país quanto nos estudos internacionais. (Souza e Gadea, 2017: 210-211)
Considera-se que esses estudos, referidos no artigo indicado acima, e as inúmeras interfaces teóricas e temáticas vieram qualificar ainda mais o campo investigativo da memória social e coletiva e os processos de luta por justiça, trazendo novos conceitos e questões, como é o caso recente dos estudos da pós-memória e memória cultural.3 A tudo isso soma-se as inúmeras pesquisas sobre as lutas de grupos socialmente marginalizados ou subalternizados, como é o caso das minorias raciais e étnicas, as identidades de gênero, familiares de vítimas da repressão policial, ex-presidiários, migrantes e moradores de periferias e favelas (Souza e Gadea, 2017).
Em complemento ao que já foi exposto, este dossiê busca contribuir ainda mais para o campo da pesquisa e do debate sobre a memória, lutas por justiça e suas imbricações com a temática do poder na contemporaneidade. Em certa medida, além de atualizar o que vem sendo produzido e pesquisado, este texto introdutório e os quatro artigos que se seguem buscam reforçar a manifesta importância que estes campos de pesquisa mantêm ainda na agenda de grupos sociais e lutas políticas. Focar essas tensões – memória, justiça e poder – faz deste dossiê um espaço importante de reflexão e problematização do fenômeno da memória em nossa sociedade atual.
Assim sendo, o artigo que abre este dossiê de Myrian Sepúlveda dos Santos, intitulado “O retorno do pesadelo: um estudo sobre a luta da memória contra o esquecimento”, traz uma importante discussão teórica de expressiva envergadura analítica em torno dos diferentes tipos de memória e suas imbricações em relação às políticas da memória e à amnésia coletiva. A autora tem como pano de fundo histórico as significativas mudanças que se processaram no mundo globalizado, em especial nas duas últimas décadas. Para a autora, as crises econômicas cada vez mais sistêmicas e globais, as mudanças nas relações entre o capital e o trabalho (com a perda substancial dos direitos sociais dos trabalhadores) e o avanço exponencial das redes sociais de comunicação (com a multiplicação das chamadas fake news) despoletaram um processo de “falsificação histórica” e de desprezo pelo testemunho e pelo documento. Ao invocar diversos autores que discutem a temática da memória, Santos evidencia a forma como indivíduos e grupos buscam diferentes formas de luta contra o esquecimento, sem deixar de chamar a atenção para a relação poder-memória, na qual o poder, ao se constituir politicamente, busca pautar e instrumentalizar as narrativas sobre o passado, conduzindo suas memórias à legitimidade em detrimento de outras.
O segundo artigo, assinado por Célia Regina do Nascimento de Paula e Fernando Antonio da Costa Vieira, apresenta um balanço crítico e analítico sobre a instauração em 2012 da Comissão da Verdade no Brasil e sobre o processo de redemocratização do país – que teve início em 1979 com a Lei da Anistia e se findou com a aprovação da nova Constituição de 1988. Os autores contextualizam historicamente a implantação desta Comissão e os seus desafios, sem perder as referências históricas que antecederam esse processo – principalmente os anos em que o país esteve sobre à égide da Ditadura Militar (1964-1985). Além disso, o artigo “A Comissão da Verdade no Brasil: a luta pela memória em uma democracia fragilizada” busca apresentar a arena de disputa em torno da instalação da Comissão da Verdade e da pressão que atores sociais e políticos desempenharam, ora para o avanço de uma política de justiça e reparação, ora para uma política contra a memória e pela manutenção do esquecimento. Por fim, de forma sucinta, o texto apresenta os avanços e retrocessos desta Comissão através de uma análise comparativa às outras Comissões da Verdade implementadas noutros países da América Latina (o que foi possível fazer e o que foi impedido de ser feito em relação às reparações históricas).
O artigo seguinte, elaborado a partir de uma pesquisa desenvolvida por Menara Guizardi na tríplice fronteira do Paraná (entre Argentina, Brasil e Paraguai), gravita em torno da confluência entre educação e política no Brasil atual. Intitulado “Educación para la autonomía: inventarios de la memoria en el contexto del giro a la ultraderecha en Brasil”, a autora busca refletir sobre o papel da memória social no país frente à onda conservadora que tomou conta das eleições presidenciais no ano de 2018. Guizardi analisa as relações entre memória social, educação e política, denominadas pela autora como conceitos polissêmicos, e a forma como os eleitores vêm aderindo ao discurso de ódio – fortemente presente durante as campanhas de 2018. O artigo ainda conta com uma experiência etnográfica que a autora realizou, partindo de sua vivência nesse ano, acrescida de um diálogo com um jovem estudante brasileiro, beneficiário de políticas públicas de governos de esquerda, mas que, nesse ano, se apresentou como eleitor do candidato da extrema-direita (Jair Bolsonaro). Por fim, Guizardi busca apontar, em sua conclusão, a memória social como ferramenta para lidar e superar, através da educação, a exclusão social e política da população.
O quarto artigo, de Danilla Aguiar e Gonzalo Rojas, busca trazer uma discussão sobre o papel que o movimento feminista e de mulheres na Argentina teve, em períodos diferentes, e a sua importância na democracia do país. Em “O movimento feminista e de mulheres na Argentina: perspectivas pós-colonial e socialista” foca-se, em um primeiro momento, a organização Mães da Praça de Maio e, num segundo, o atual movimento de mulheres. Os autores baseiam suas análises e reflexões a partir de duas perspectivas teóricas: o pós-colonialismo e o marxismo gramsciniano. Mostram que as condições de subalternidade das mulheres argentinas não impediram que enfrentassem a opressão do poder patriarcal constituído – pelo contrário, os autores buscam argumentar que tanto as Mães da Praça de Maio quanto o atual movimento de mulheres abrem espaços importantes para um protagonismo radical, visando as lutas democráticas por justiça e reparação.
Este dossiê conta ainda com duas recensões e um texto na seção Espaço Virtual. A primeira recensão, de Eduardo Rebuá, trata da obra de Enzo Traverso intitulada Melancolia de esquerda: marxismo, história e memória. Rebuá busca apresentar os pontos importantes da obra a partir de um olhar benjaminiano. Já na segunda recensão, Rodrigo de Araujo Monteiro analisa o livro de Verónica Gago A razão neoliberal: economias barrocas e pragmática popular, buscando destacar o caráter original que Gago aplica ao abordar o neoliberalismo a partir de uma perspectiva dos “de baixo”. Na seção Espaço Virtual, apresento a página Rede de Lugares de Memória da América Latina e Caribe, destacando as importantes contribuições que a mesma vem tendo na luta pela memória e justiça, principalmente nos países que sofreram com regimes ditatoriais.
Os textos reunidos neste dossiê dialogam e se complementam ao abordarem de forma diversificada as questões pertinentes ligadas à luta pela memória e pela justiça, e suas imbricações com o poder – contribuindo para ampliar o campo de análise da memória social e coletiva e das lutas por justiça e reparação.
Afinal, mesmo tomando a assertiva de que “os tempos mudaram” e que há um esforço civilizacional para assegurar democracias mais sólidas e garantir o respeito pelos direitos humanos já conquistados, os mesmos estão constantemente sendo postos em causa, pelo que se torna necessário continuar a zelar e lutar por eles.
Referências bibliográficas
Assmann, Aleida (2011), Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. São Paulo: Editora Unicamp. Tradução de Paulo Soethe. [ Links ]
Benjamin, Walter (1996), Magia e técnica, arte e política. I. Obras escolhidas. São Paulo: Editora Brasiliense. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. [ Links ]
Hirsch, Marianne (2012), The Generation of Postmemory: Writing and Visual Culture after the Holocaust. New York: Columbia University Press. [ Links ]
Huyssen, Andreas (2014), Culturas do passado-presente: modernismo, artes visuais, políticas da memória. Rio de Janeiro: Editora Contraponto. Tradução de Vera Ribeiro. [ Links ]
Levi, Primo (2019), Mil sóis. Poemas escolhidos. São Paulo: Editora Todavia. Tradução de Maurício Santana Dias (orig. 1946). [ Links ]
Rancière, Jacques (2010), “O tempo da emancipação já passou?”, in Rodrigo Silva; Leonor Nazaré (orgs.), A república por vir. Arte, política e pensamento para o século XXI. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 71-100. Tradução de Vanessa Brito.
Souza, Rogério Ferreira de; Gadea, Carlos A. (2017), “Memória coletiva e social no Brasil contemporâneo”, Revista Brasileira de Sociologia, 5(11), 199-218.
NOTAS
1 Andreas Huyssen busca em seu livro, Culturas do passado-presente (2014), problematizar os processos políticos em torno das lutas por memórias e justiça no pós-guerra.
2 Em artigo publicado na Revista Brasileira de Sociologia, os pesquisadores Rogério Souza e Carlos Gadea (2017: 199-218) apresentam o estado da arte dos estudos sobre memória social e coletiva junto às ciências sociais nos últimos 30 anos no Brasil. O artigo em questão procura analisar o crescente interesse teórico e metodológico em torno da temática da memória social e coletiva discutindo duas das principais características desse campo de estudo: a forte tendência à transversalidade e interdisciplinaridade nos estudos e pesquisas sobre memória. Além disso, os autores buscam indicar uma agenda propositiva de questões futuras nesse campo.
3 Ver os trabalhos de Marianne Hirsch (2012) e Aleida Assmann (2011).