A repressão miguelista
O reinado de D. Miguel representou o período de mais forte repressão da História de Portugal. Um dos seus «traços distintivos» foi a «imagem de terror que lhe ficou colada», através de um discurso maniqueísta de apologia da violência política e de apelo à vingança e à delação (Lousada e Ferreira, 2006, p. 150). Invocando os anos trágicos das invasões francesas ainda bem vivos na memória coletiva nacional, os miguelistas associavam os liberais portugueses à França revolucionária. Deste modo, com o apoio da Igreja, mobilizavam o povo rural e urbano contra o liberalismo, gerando um movimento patriótico contrarrevolucionário, «um nacionalismo populista de direita». O próprio monarca apelava «à mobilização armada»(Lousada e Ferreira, 2006, p. 156) contra os liberais e os pedreiros-livres, considerados inimigos do Trono e do Altar.
Segundo dados estatísticos da época, em meados de 1829 encontravam-se presas 23190 pessoas, incluindo mulheres e crianças. Os emigrados para fora do reino ou escondidos dentro do país seriam 40790. 1122 tinham sido enforcados por determinação judicial ou simplesmente assassinados na via pública. Pelo menos 17316 propriedades estavam confiscadas e 868 herdades incendiadas (Fonseca, 1908, p. 377). Além das tristemente célebres forcas do Cais do Sodré em Lisboa e da Praça Nova no Porto (Lousada e Ferreira, 2006, p. 150), havia muitos «cadafalsos levantados em toda a parte» e «alçadas em todos os lugares» (Fonseca, 1908, p. 377).
Lisboa, a acrescentar aos detidos na cidade e em localidades próximas, recebeu ainda as levas de pronunciados do movimento de maio de 1828, oriundos do Algarve e de outras regiões do país. A prisão do Limoeiro, o presídio da Trafaria e os fortes do Bugio e de S. Julião da Barra ficaram sobrelotados (Pinheiro, 2011, p. 215). Entre 1828 e 1833 teriam passado por esta última prisão mais de 630 liberais, entre condenados à morte, às galés, ao degredo ou a penas de prisão perpétua ou prolongada (Lopes, 1984, p. 25-84)1. Pelo menos 34 acabariam aqui por morrer, devido às torturas e às duras condições de vida no cárcere, além de outros 45, falecidos em unidades hospitalares de doenças contraídas na cadeia(Lopes, 1984, p. 517-520).
O Fundo Processos Políticos do Reinado de D. Miguel existente no Arquivo Nacional da Torre do Tombo contém processos relativos a 1081 presos entre 1828 e 1833, apenas na cidade de Lisboa, embora esse número possa estar aquém da realidade (Fonseca, 2016, p. 112)2.
As acusações, como podemos verificar no Quadro 1, são de vários tipos. As que resultaram em penas mais pesadas relacionam-se com o presumível envolvimento nas revoltas militares liberais ocorridas a partir da «Archotada» até à libertação da capital, a 24 de julho de 1833, ou incidem sobre aqueles que de alguma forma conspiraram contra o governo miguelista.
No entanto, em face da apertada vigilância imposta sobretudo a partir da revolta do Porto (maio a julho de 1828), bem como devido ao incitamento público à delação, tudo servia de pretexto para denunciar alguém como liberal. Além daqueles que durante o triénio vintista ou o primeiro período de vigência da Carta Constitucional se manifestaram adeptos do constitucionalismo monárquico, podiam ser acusados todos quantos participassem em reuniões consideradas «políticas», fossem surpreendidos na posse de armas ilegais ou de correspondência ou «papéis» suspeitos, divulgassem notícias ou simples boatos de movimentações liberais, pronunciassem «expressões sediciosas», soltassem «gritos subversivos» ou simplesmente entoassem «cantigas» também consideradas «subversivas».
Estas últimas, envolvendo 49 indivíduos, incluindo quatro mulheres, constituirão o objeto do presente trabalho. Representam, de uma maneira geral, as acusações de que resultaram penas mais leves.
Motivos da prisão | Nº de presos |
---|---|
Acontecimentos revolucionários | 192 |
Ameaças políticas | 14 |
Conspiração contra o governo | 4 |
Cantigas subversivas | 49 |
Correspondência política | 23 |
Expressões sediciosas | 190 |
Gritos subversivos | 38 |
Notícias tendenciosas e expressões sediciosas | 103 |
Papéis sediciosos | 115 |
Partidários do regime liberal | 269 |
Posse ilegal de armas | 6 |
Reuniões políticas com fins sediciosos | 72 |
Tentativa de homicídio e regicídio | 6 |
Total | 1081 |
As detenções injustas, a condição deplorável das prisões, a inconsistência das acusações, o longo tempo de espera pelas audições judiciais, a demora das sentenças geralmente excessivamente pesadas, são as principais características detetadas nestes processos, que não diferem substancialmente das que são conhecidas para a segunda metade do século XVIII, certamente idênticas para todo o Antigo Regime (Chantal, [196-] , p. 252-263).
Durante o triénio vintista, tinham sido introduzidas algumas melhorias no sistema prisional, inspiradas nas reformas penais de raiz iluminista, em curso nos Estados Unidos da América e em alguns países europeus, como a França e a Inglaterra. As penas, além da prisão e do degredo, passaram a incluir os trabalhos públicos, considerados mais humanos e eficazes na pretendida regeneração dos detidos (Subtil, 1986, p. 123-154).
No entanto, a curta duração da primeira experiência liberal, associada à grave situação económica e financeira do país, às dificuldades de recrutamento de um funcionalismo prisional capaz e ao boicote da magistratura, maioritariamente conservadora, ditaram o fim destas melhorias de curta duração, apenas retomadas durante a Regeneração (Subtil, 1986, p. 154 e 197).
O liberal D. Francisco de Almeida, exilado em Paris, descreveu, em 1834, o ambiente prisional português vivido durante o absolutismo miguelista. Apontava como «único» objetivo dos responsáveis das cadeias «o emprego de todos os meios, mesmo ilícitos e cruéis, tendentes a impedirem a fuga do preso». Criticava a falta de separação «entre acusados e sentenciados». E denunciava o estado de conservação dos alojamentos, «imundos, o ar deteriorado, a comida mesquinha e de má qualidade» e a inexistência de qualquer «meio de correção para o criminoso», o que convertia tais prisões em «verdadeiras escolas de crime» (Subtil, 1986, p. 155).
O advogado de um dos nossos detidos confirma em parte esta situação, ao alegar que o seu constituinte «está inocente numa cadeia infecta»3.
Além das más condições prisionais, a especificidade política da época, pautada por «um feroz combate ao liberalismo», (Vicente, 2009, p. 47) originou novos motivos de detenção, instigando uma maior vigilância da Guarda da Polícia e respetivas patrulhas, reforçada com a atividade empenhada dos novos Corpos de Voluntários Realistas. Criados a 30 de maio de 1828, eram «uma espécie de guardas nacionais realistas». Em finais de 1829 contavam com mais de 12000 efetivos, repartidos por 38 corpos, cobrindo todo o país (Lousada e Ferreira, 2006, p. 156).
Caracterização dos acusados de «cantigas subversivas»
Os acusados são quase todos jovens (Quadro 2), devido à baixa esperança de vida (Rodrigues, 2009, p. 269 e 361)4 e sobretudo ao facto de serem estes quem mais frequentava a rua e os locais públicos de convívio. Dos 36 de quem sabemos a idade à data da prisão, o mais velho tem 61 anos; dois 56; um 42 e outro 40. Cinco possuem entre 30 e 38 anos. A maioria encontra-se na casa dos 20; e dois têm 19 e 15 anos, sendo a média de 30,5 anos.
Idade | Número de detidos |
---|---|
Mais de 50 anos | 2 (5,6%) |
Entre 49 e 40 anos | 2 (5,6%) |
Entre 39 e 30 anos | 5 (13,8%) |
Entre 29 e 20 anos | 25 (69,4%) |
Menos de 20 anos | 2 (13,8%) |
Total | 36 |
No respeitante à atividade profissional desta Lisboa popular, recorremos a uma base de análise mais alargada, incluindo as testemunhas, por regra pessoas do mesmo meio socioeconómico e geralmente vizinhas e conhecidas dos acusados. Como a sua ocupação é frequentemente referida nos processos, reunimos um universo de 128 pessoas. Constatamos, no Quadro 3, que a maior parte (tanto dos detidos como das testemunhas) se ocupa nos serviços e na indústria artesanal, como era então comum nos grandes centros urbanos. Esta tendência, já evidente na Lisboa da segunda metade do século XVIII (Macedo, 1982, p. 87 e 109; Fonseca, 2002, p. 64)5, acentuou-se nas décadas seguintes.
No setor dos serviços, destacam-se os criados, sempre numerosos nos centros urbanos; os aguadeiros; os moços de recados ou «de fretes»; os soldados; os barbeiros; alguns funcionários da Misericórdia ou de instituições públicas (como a Câmara de Lisboa ou a Companhia do Açúcar); meretrizes; uma lavadeira, um estafeta do Correio-mor e um trabalhador indiferenciado. Os aguadeiros abasteciam-se nos 25 chafarizes públicos da cidade6, locais onde eram frequentemente surpreendidos pelas patrulhas, a assobiar ou cantar enquanto enchiam as vasilhas de «água fresca», que depois apregoavam pela cidade ou vendiam a clientes certos (Câncio, 1939, p. 20-21 e 48). Em 1822 eram mais de três mil, embora apenas 360 possuíssem licença camarária para o exercício da atividade7.
Atividade | Detidos | Testemunhas | ||
---|---|---|---|---|
Serviços | 28 | 57,1% | 32 | 40,5% |
Artesanato | 11 | 22,5% | 28 | 35,4% |
Comércio | 4 | 8,2% | 9 | 11,4% |
Sem atividade | 3 | 6,1% | 7 | 8,8% |
Transportes | 2 | 4,1% | 2 | 2,6% |
Proprietário | 1 | 2% | - | - |
Agropecuária | - | - | 1 | 1,3% |
Total | 49 | 100% | 79 | 100% |
No artesanato surge um número bastante variado de artífices. Trabalhavam e viviam na mesma casa, onde também se dedicavam ao comércio dos produtos que manufaturavam, pelo que os comerciantes eram, na prática, em número bastante superior ao apresentado. Em maior número aparecem os sapateiros, que representaram, até 1834, o núcleo mais numeroso de todas as corporações da capital (Madureira, 1992, p. 73). Seguem-se os marceneiros e os alfaiates. Inserimos neste grupo um «caeiro» (fabricante de cal), um aprendiz de confeiteiro, um cozinheiro e um padeiro. E ainda dois lapidadores de diamantes, um ourives do ouro, um sombreireiro, um serralheiro e um peliteiro.
No setor do comércio incluímos um almocreve, um droguista, um vendedor de sal, um livreiro, um «vendilhão», vários donos de «loja de bebidas» e de tabernas.
Nos transportes temos um «remador», um «marítimo», um «fragateiro» e um alquilador, embora o almocreve e o estafeta também pudessem ser aqui incluídos, dada a ambiguidade das suas funções.
Considerámos proprietário um homem «que vive de suas rendas», expressão muito comum na época. E classificámos no setor agropecuário um couteiro.
Englobámos no grupo «Sem atividade» profissional um «velho e pobre», um «desempregado», um «menor» e várias mulheres, aparentemente sem ofício, que testemunham na condição de «vizinhas» dos acusados.
O tradicional fenómeno demográfico da emigração interna para a capital, intensificado com o crescimento urbano verificado a partir de meados de Setecentos, acelerou-se depois da entrada no novo século, com a chegada de muitos jovens provenientes do Minho e da Beira Interior (Rodrigues, 1993, p. 242). Por isso, temos entre os populares visados nestes processos gente oriunda destas regiões e também da vizinha Galiza (Quadro 4).
Os galegos, uma figura típica da Lisboa oitocentista, começaram a afluir à capital portuguesa em finais do século XVIII para suprirem a falta de mão-de-obra escrava, cada vez menos numerosa na sequência da legislação anti esclavagista pombalina (Lahon, 1999, p. 90-94). Eram alvo frequente da «chacota» dos alfacinhas e considerados, pelas autoridades camarárias, «grosseiros e atrevidos»8. Ocupavam-se das tarefas mais pesadas e menos remuneradas, como aguadeiros, criados de servir e moços de fretes (Câncio, 1939, p. 23, 48 e 62). Destacavam-se no mercado da Praça da Ribeira, pois conduziam diariamente deste local aos inúmeros lugares de venda da cidade as hortaliças e outros produtos, que pequenos vendedores compravam por grosso no referido mercado9.
Além dos galegos, também encontrámos aguadeiros oriundos de regiões pobres do interior do reino, como Góis e Arganil; registámos um criado de Guimarães e um caixeiro de Braga. Desta cidade é ainda natural um droguista. Um trabalhador indiferenciado é oriundo de Vila da Feira. Um desempregado, do Porto. Uma das meretrizes, de Setúbal. Um dos lapidadores de diamantes veio de Faro. E um dos alfaiates, da região de Coimbra.
Circunstâncias das detenções
A notícia do regresso de D. Miguel e da sua associação ao poder, decidida por D. Pedro IV através do decreto de 23 de julho de 1827, granjeou de imediato opositores, mesmo no setor liberal mais moderado, e esteve na origem da já referida «Archotada», desencadeada em Lisboa e rapidamente alastrada ao Porto, a Elvas e a mais localidades (Leitão, 1971, p. 177-178; Fonseca, 2016, p. 102-104).
Apesar das calorosas manifestações de apoio com que foi recebido à chegada à capital, D. Miguel estava consciente das resistências que os seus planos políticos desencadeariam da parte dos opositores constitucionais. Ainda regente, apelou ao país união para aniquilar «o monstro revolucionário». Prometia perdão aos arrependidos que se tinham deixado levar pelo «lado errado». E ao mesmo tempo ameaçava com «o rigor da lei» os que persistissem no «erro» (Vicente, 2009, p. 44).
Com a dissolução da Câmara dos Deputados, a 13 de março, acentuou-se no país o clima de desconfiança e intimidação. A Intendência Geral da Polícia acusou os ministros territoriais de não terem reagido com a firmeza necessária contra os divulgadores de «pasquins» condenatórios do «feliz regresso» do então ainda infante-regente10. E ordenava-lhes que passassem a comunicar semanalmente ao tribunal régio os acontecimentos nas respetivas áreas de jurisdição relativos à tranquilidade e segurança públicas, devendo dar notícia «mesmo se não tiver havido ocorrências»11.
Durante o processo de eleição dos procuradores às «Cortes dos Três Estados» desse ano, onde D. Miguel seria proclamado rei absoluto, recomendava-se aos mesmos ministros régios especial atenção para com «pessoas mal-intencionadas», capazes de «subornar» os eleitores «para obterem votos com o particular fim de perturbar e transtornar o importante objecto de semelhante convocação». Deviam ainda invalidar a eleição de indivíduos «facciosos», que pelas suas opiniões ou delitos se tivessem manifestado «como inimigos dos verdadeiros princípios da legitimidade», procedendo, nesses casos, à imediata devassa de suborno12. Lisboa, por ser a capital do reino, foi merecedora de particular atenção, recebendo carta régia com as mesmas recomendações13.
A revolta do Porto determinou uma intensificação da perseguição aos liberais (Ventura, 2008, p. 32-41) e do reforço da vigilância. O intendente geral da Polícia José Barata Freire de Lima, em carta de 23 de maio de 1828, dirigida ao Senado lisbonense, ordenava o processamento, como suspeita, de toda e qualquer pessoa achada na posse de proclamações oriundas da cidade do Porto, tanto impressas como manuscritas, se em lugar de as entregar de imediato às autoridades as mantivessem em seu poder. Na mesma carta, que deveria ser divulgada na forma de edital, proibia-se aos moradores da capital a hospedagem em suas casas de quem não se apresentasse munido do passaporte pessoal ou não se tivesse previamente apresentado ao magistrado judicial do respetivo Bairro14. A 2 de junho, novo edital obrigava, em cumprimento de outra ordem do mesmo intendente geral da Polícia, os possuidores de armas de fogo, de corte, ou perfurantes de qualquer espécie a apresentarem ao ministro do seu Bairro de residência uma declaração escrita e assinada com a discriminação da morada e a especificação das armas em seu poder, sob pena de serem autuados como rebeldes e traidores15.
E a tentativa gorada de desencadear mais uma sublevação liberal nos primeiros dias de 1829, aproveitando a perturbação causada pelo acidente sofrido por D. Miguel em novembro do ano anterior, deu origem a mais uma vaga de prisões, enforcamentos e condenações a degredo e a prisão perpétua (Fonseca, 1908, p. 367-369).
Nos anos seguintes, com o encarceramento ou a fuga para o exílio de cerca de 12000 liberais e a relativa consolidação de D. Miguel no trono, a resistência interna abrandou temporariamente e com ela a onda persecutória dos primeiros tempos (Dias, 1982, p. 23 (21-25), como se constata pelos dados do Quadro 5. Além disso, a partir de 1830, o governo miguelista passou a conferir prioridade à reorganização do exército, de modo a preparar-se para o previsível confronto com as tropas liberais (Vargues, 1993, p. 78 (65-87). E a alteração da situação política nacional, provocada pelo desembarque do Mindelo (8 de julho de 1832), desviou a vigilância policial para outro género de delitos.
Ano | Número de detidos |
---|---|
1828 | 24 (49 %) |
1829 | 14 (28,6%) |
1830 | 4 (8.1%) |
1831 | 4 (8,1%) |
1832 | 2 (4.1%) |
1833 | 1 2,1%) |
Total | 49 (100%) |
Quanto às acusações, estas consistiam maioritariamente em cantar, trautear ou assobiar, tanto na via pública como dentro de casa, «o hino constitucional», «a constituição», também designada por «hino estrangeiro», ou de forma mais genérica «cantigas constitucionais» ou «cantigas proibidas».
As penas eram bastante variáveis. A mais pesada foi aplicada ao moço de fretes Martinho Amoedo Reis, um galego de 56 anos. A 31 de outubro, pelas 21 horas e 45 minutos, a patrulha então a circular na rua da Prata foi informada que na rua dos Fanqueiros estava um indivíduo «cantando a constituição» e «proferindo ao mesmo tempo indignas palavras» contra El-Rei. Detido pelos guardas e conduzido ao posto da Praça da Figueira, aí declarou que «não conhecia reis que governassem e outras palavras». Deu vivas a D. Maria II e à Constituição, «cantando descaradamente cantigas à liberdade». De acordo com os guardas, fingira-se embriagado.
Posteriormente, alegou perante o juiz «estar muito bêbedo» na altura da detenção, por ter ingerido grandes quantidades de vinho numa taberna do Cais de Santarém. E apontou como testemunha um aguadeiro do Chafariz de Dentro ou de El-Rei, não sabia ao certo, que bebera na sua companhia. Aproveitou para denunciar os guardas, de quem recebera «muita pancada».
Tais desculpas de pouco lhe valeram, pois foi-lhe encontrado no bolso um bilhete, mandando-o procurar, num quiosque do Rossio, as cartas e gazetas inglesas para a pessoa cujo nome vinha escrito no papel. Não soube dizer quem tinha sido o homem que lhe dera o recado nem conseguiu provar a nacionalidade galega. E apesar de ter sido o simples portador de um recado e ser este o seu modo de vida, acabou condenado às galés por um período de cinco anos, depois de ter passado quase seis meses no Limoeiro16.
Aos militares e funcionários públicos era sempre aplicada, em situações idênticas, uma pena superior, explicitamente justificada na sentença de condenação. Nas ordens de devassa, levantadas por todo o país contra «os inimigos» de D. Miguel após a revolta do Porto, determinava-se a extração de uma relação dos militares de primeira, segunda e terceira linhas e dos empregados civis do Estado e do Exército que nelas tivessem saído culpados, para ser enviada à Secretaria de Estado dos Negócios da Justiça (Fonseca, 2016, p. 111).
Tal critério ajuda a explicar a pesada pena aplicada a dois de três soldados, em 1830. A 17 de setembro desse ano, por volta das 22 horas e 30 minutos, estes foram detidos pelo alcaide que acompanhava a ronda do Bairro da Graça, quando regressavam da feira do Campo Grande, por entoarem «cantigas proibidas e obscenas, acompanhadas de expressões ofensivas». O advogado de defesa alegou que os seus constituintes não tinham consciência do que cantavam, pois regressavam de uma feira onde se bebia muito vinho, mesmo quem habitualmente o não fazia. Contudo, a sentença foi pesada. José António e Francisco Anselmo, «pela sua má conduta anterior» e por terem ainda mais obrigação de respeitar o rei e preservar a boa ordem pública «pelo facto de serem soldados», foram condenados a três anos de degredo para Cabo Verde. E Manuel dos Santos, por não possuir antecedentes criminais, sofreu um ano de prisão17.
Quando os processos chegavam às mãos do juiz, o tempo de detenção já tinha, em muitos casos, ultrapassado largamente o declarado posteriormente na sentença. Mas se em certos casos o acusado era logo solto, por vezes tinha de cumprir a pena de prisão determinada pelo magistrado, sem se atender ao tempo de detenção anterior à decisão judicial.
Tal arbitrariedade sucedeu com o sombreireiro Feliciano Nunes. A 23 de dezembro de 1831, foi detido por dois voluntários realistas do quartel de Campo de Ourique, por mandar «tocar o hino constitucional18 a uns cegos na ocasião em que estes tocavam o hino realista»19, numa padaria da rua do Sol. Os voluntários realistas reconheceram que Feliciano se encontrava embriagado, o que foi confirmado por várias testemunhas. E embora tal condição servisse geralmente de atenuante, o juiz do crime do Bairro de Santa Isabel condenou-o, a 31 de outubro do ano seguinte, a três meses de prisão. Alegou que o infrator correra o risco de «excitar a desordem pública» com a ordem dada aos cegos. Além disso, demonstrara, com tal atitude, «maus sentimentos políticos». E apesar de se encontrar no Limoeiro há dez meses, apenas recebeu ordem de soltura a 5 de dezembro de 183220. Deste modo, os três meses de pena acabaram por se converter num ano de prisão.
Algumas denúncias eram infundadas ou inconsistentes. A 27 de abril de 1831, o sapateiro Francisco dos Santos foi preso por cantar, «em altas vozes» o «hino constitucional» numa taberna do Bairro de Alfama, sem que aparentasse estar embriagado. Um rapaz que o acompanhava, embora se mantivesse em silêncio, foi também conduzido à prisão, apenas «por ser amigo» do anterior e presumivelmente «ter os mesmos sentimentos políticos». Apesar de inocente, esteve detido três dias e Francisco 26 dias21. Em agosto de 1828, prenderam o «vendilhão» Gregório António, por estar embriagado junto ao largo das Necessidades a trautear uma ária que aos captores «pareceu» o «hino constitucional». Por falta de provas, o juiz do crime do Bairro de Santa Catarina mandou-o soltar. Mas a suposição dos acusadores custou a Gregório oito meses e meio de prisão22, além de ter de pagar as custas do processo, como sucedia a todos, independentemente da culpa ou inocência.
Idêntico motivo resultou na absolvição de outros detidos: Manuel António, puxador na roda de diamantes da Casa Real, preso a 11 de agosto de 1828 e solto por ordem judicial de 29 de novembro do mesmo ano23; Maria Joaquina, lavadeira, presa a 3 de novembro de 1828, «despronunciada» e «solta» a 7 de fevereiro do ano seguinte24; Maria Clara, meretriz, detida a 21 de janeiro de 1929, a quem os juízes determinaram «dar baixa da culpa e soltá-la» a 22 de junho do mesmo ano25; Inácio de Almeida, remador, capturado no quartel dos escaleres do Contrato do Tabaco a 3 de janeiro de 1829, a quem o juiz do crime do Bairro de Santa Catarina «não pronunciou (…) mandando-o soltar» a 21 de fevereiro desse ano26; ou Manuel Pinho, cozinheiro, apanhado pela polícia a 11 de janeiro de 1829 e solto, por ordem judicial, a 8 de maio desse ano27.
O excesso de zelo dos policiais, entendido como prova de fidelidade política, era, por vezes, recompensado. Por Decreto de 20 de junho de 1831, foi atribuída a Francisco José Martins, tenente do 3º Batalhão de Voluntários Realistas da Corte, a mercê da propriedade de um dos ofícios de escrivão da Almotaçaria das Execuções28. E por diploma idêntico de 2 de julho do mesmo ano, foi concedida a Francisco António Sobral, capitão da 3ª Companhia do mesmo batalhão, a propriedade do ofício de fiel da Casa de Ver-o-Peso29.
A maior parte das detenções era efetuada na rua. Mas as patrulhas não hesitavam em invadir as habitações, se lhes parecia terem escutado algo de suspeito vindo do interior.
Em 1832, Joaquim Ferreira, «moço das tumbas» da Misericórdia, foi preso em casa, no largo da Oliveirinha, «por cantar o hino», ouvido pela patrulha que passava em frente. Os vizinhos afirmaram que Joaquim era «muito realista» e que apesar de pobre contribuíra com «cinco tostões» para as «urgências do Estado»30. Foi solto ao fim de dez dias31.
Ainda menos sorte teve o alfaiate João António. Pelas 23 horas do dia 14 de agosto de 1828, foi preso na casa do seu mestre, o alfaiate Lourenço da Rocha, situada por cima da Casa da Guarda da Pampulha. A sentinela «ouvira cantar o hino por três vezes» e chamou o cabo da guarda para o prender. Nos interrogatórios, o preso afirmou que nunca entoava «nem boas nem más cantigas» e por isso o mestre «lhe dizia que estava sempre triste».
As testemunhas afirmaram unanimemente nada ter ouvido. O advogado de defesa alegou que as janelas estavam fechadas, pelo que seria difícil a sentinela ter ouvido alguém cantar no seu interior. Além disso, a prisão não tinha sido efetuada em flagrante delito, apenas por denúncia. No entanto, o presumível engano ou intenção dolosa do denunciante valeu a João António quatro meses e dois dias de detenção32.
As forças da ordem eram ainda acusadas de violência para com os detidos. Quando os supostos infratores tentavam resistir à detenção, eram por vezes espancados, como sucedeu ao referido Martinho Amoedo Reis e ao ajudante do procurador da Câmara de Lisboa, José Machado Botelho33. Este último, pelas 22 horas do dia 9 de julho de 1828, foi assaltado, na rua do Salitre, por um soldado que o ameaçou com uma navalha e o empurrou em direção à travessa das Varas, onde podia perpetrar o roubo com mais segurança, «por ser deserta de noite». José Botelho começou a gritar «há qui del rei», enquanto o soldado lhe desferia «muitos socos». Quando as pessoas acudiram ao local, o agressor alegou que o agredido vinha «a cantar quadras ao Saldanha, dando-lhe vivas e dizendo que morressem aqueles que o não queriam», e que resistira à prisão.
As testemunhas ouvidas pelo juiz confirmaram as afirmações da vítima e uma delas acrescentou que o soldado, além de lhe desferir «muitas pancadas», tentara tirar-lhe o relógio. Quanto a este último, além de «muito dado à embriaguez», era conhecido como ladrão. Tinha já sido três vezes punido por «má conduta civil e militar», uma delas por sentença do Conselho de Guerra. A tentativa de assalto causou a José Botelho dez dias de prisão, ao fim dos quais foi solto, com a advertência de que «não devia andar àquela hora da noite na rua e disfarçado de capote»34.
O uso da força podia ainda traduzir-se pela entrada forçada nas habitações. A 21 de janeiro de 1829, uma patrulha da 2ª Companhia de Cavalaria, pelas 23 horas, «entrou à força por uma janela da casa da delinquente» Clara Maria, prendendo a suspeita e mais duas pessoas que lá se encontravam. O juiz ordenou a libertação destas últimas, devido ao reconhecido «excesso» cometido pelos captores35.
Neste ambiente persecutório, onde os «inimigos de D. Miguel» pareciam estar em todo o lado, até as denúncias por inimizade, ciúme e vingança adquiriam alguma eficácia.
A 17 de agosto de 1828, pelas 23 horas, um grupo de homens, depois de comerem e beberem numa loja de bebidas da freguesia de Santa Catarina, puseram-se à porta do estabelecimento, entretanto fechado, a cantar em voz alta. No momento em que passava uma patrulha, alguém gritou: «prendam (…) que são malhados». Alguns fugiram, mas três foram presos, «sem mais averiguações». Estiveram detidos três meses e doze dias36.
O aprendiz de confeiteiro António Filipe Néri foi denunciado pelo barbeiro Inácio Rodrigues, por cantar quadras contra D. Miguel e por constar que era «malhado». Preso em janeiro de 1829, declarou que «cantava a Constituição quando não era proibido, mas agora que é não canta nem quer cantar». Tendo as autoridades policiais averiguado que ambos «namoravam a criada de uma louceira», consideraram as acusações «intrigas do denunciante» e soltaram-no ao fim de dezasseis dias37.
As meretrizes Maria Rosa e Maria das Dores, às 23 horas e 30 minutos do dia 24 de dezembro de 1828, estavam à janela, numa casa do Bairro da Mouraria, quando dois homens pretenderam entrar à força. As moças, receosas, não lhes abriram a porta. Por vingança, os dois insultaram-nas, chamaram-lhes «malhadas» e foram à polícia acusá-las de estarem a cantar «a constituição». No ato da prisão, Maria das Dores conseguiu fugir. As testemunhas declararam ter ouvido apenas uma delas cantar, mas não identificaram o hino nem sabiam ao certo quem tinha cantado. Maria Rosa foi posta em liberdade ao fim de dois meses38.
Cantava-se em toda a parte, até na cadeia. Numa tarde de fevereiro de 1831, o negociante Francisco Henriques Pereira da Costa, preso na «Cadeia Nova», foi surpreendido pela sentinela a cantar e a assobiar «a constituição» e mais «cantigas constitucionais». Outros presos disseram-lhe «que não fosse tolo e não fizesse tal». Mas Francisco não fez caso e continuou a cantar, «à grade» em frente da qual «estava a sentinela». O carcereiro mandou-o «pôr a ferros e corrente». Mas como o infrator já estava preso por iguais delitos sem demonstrar «emenda alguma», deu parte da ocorrência ao regedor das justiças da Intendência Geral da Polícia.
Ouvido pelo juiz do crime do Bairro do Castelo, Francisco da Costa explicou que estava preso há três anos e tinha de se distrair de qualquer maneira. Cantava de tudo, até o hino realista «O Rei chegou». E acareado com uma testemunha, admitiu que «uma ou outra vez», «distraidamente», talvez tivesse cantado o hino constitucional39.
A quase totalidade dos supostos transgressores, tanto no momento em que eram surpreendidos pelos agentes policiais como nos interrogatórios judiciais, negavam as acusações, tentando alguns até apresentar provas concretas da sua fidelidade realista. De facto, ocorreram, como vimos, situações de falsa denúncia por ciúme, despeito ou vingança, neste caso pelo facto de os denunciados, independentemente do que cantavam, perturbarem o descanso noturno dos vizinhos. Outros transgressores estariam a entoar melodias proibidas por simples distração ou ignorância.
A maioria, porém, teria prevaricado conscientemente, por rebeldia, desejo de transgressão ou como forma deliberada de resistência, numa espécie de «luta discreta» exercida para com as autoridades consideradas representantes de um governo opressor. A nossa suposição é reforçada pelo facto de os captores afirmarem, relativamente a oito dos detidos, que já não era a primeira vez que eram surpreendidos a cantar modas proibidas40, que insistiam em cantar após serem advertidos41 ou que já tinham sido presos por esse motivo42. As cantigas subversivas enquadrar-se-iam, assim, naquilo a que James Scott classificou como o «discurso oculto dos fracos» normalmente expresso «de modo aberto, ainda que sob forma disfarçada», um recurso para iludir a «insubordinação». Encaradas como uma forma de resistência passiva, política e ideológica, podem contribuir para a compreensão da conduta política dos grupos subordinados, particularmente em «momentos de efervescência política» como, neste caso específico, face ao domínio miguelista e à repressão da liberdade de expressão (Scott, 2013, p. 18-20).
As cantigas subversivas no quotidiano popular lisboeta
Apesar do seu número limitado, os processos abordados permitem-nos vislumbrar um pouco do quotidiano dos grupos sociais de origem popular. Os espaços públicos, nos quais ocorrem a maior parte das detenções, constituem «lugares cruciais» da vida urbana, onde ocorrem diversas «formas de interação social» (Cordeiro e Vidal, 2008), incluindo de natureza política (Ferreira, 2008). São, por isso, locais privilegiados para a observação do comportamento do «homem ordinário», do «herói anónimo», que Michel de Certeau elegeu como objeto de estudo do quotidiano, onde é possível acompanhar as diversas maneiras de os frequentar e pressentir, enfim, «o murmúrio das sociedades» (Certeau, 1998, p. 57).
No caso concreto da capital portuguesa, a rua continuava a ser, nesta época, «um local de intensas vivências populares» (Pinheiro, 2011, p. 189). De facto, quem nela mais circulava era o povo miúdo: aguadeiros, como vimos bastante numerosos numa Lisboa de cerca de 200 000 habitantes (Pinheiro, 2011, p. 183), sem água canalizada; os moços de fretes; os criados domésticos, que ultrapassariam seguramente as duas centenas (Madureira, 1992, p. 85)43; os boieiros, ocupados nas cavalariças da gente abastada; os vendedores ambulantes; os soldados; os cegos, que individualmente ou em grupo cantavam na rua e em locais de venda ao público, a troco de esmola; as meretrizes, abundantes na cidade (Madureira, 1992, p. 84); e os homens sem ofício, recém-chegados em busca de uma nova vida. Os pequenos mesteirais aparecem também com frequência, como acusados ou testemunhas e frequentando os mesmos locais de convívio dos anteriores.
Apesar das difíceis condições de vida, a Lisboa popular era barulhenta e alegre. Cantava, assobiava, tocava e dançava de dia, e principalmente à noite, ao som da guitarra, um instrumento então muito popular, tocado principalmente nas tabernas (Câncio, 1939, p. 176), mas também da trombeta e da gaita.
Ao ar livre, os chafarizes espalhados pela cidade onde, além dos aguadeiros de profissão, também os criados das casas particulares e muito povo anónimo se abastecia do precioso líquido, representavam zonas privilegiadas de convívio, devido à aglomeração de pessoas em espera pela vez de se abastecerem.
No interior, as tabernas e estabelecimentos similares, como casas de bebidas e botequins, muito numerosos nas zonas populares da capital (Madureira, 1992 , p. 86), eram os locais de convívio e diversão mais frequentes onde, além de se comer e beber «vinho barato» (Rodrigues, 1997 , p. 85), se conversava, cantava e jogava bilhar. Representavam, como observou Nuno Luís Madureira, «cadeias de sociabilidade coletiva», essenciais na construção de laços sociais e económicos (Madureira, 1992 , p. 65-66). E mesmo após a hora de encerramento, os clientes, muitas vezes já embriagados, prolongavam as discussões no exterior, alertando, com o barulho, as patrulhas policiais.
A ingestão excessiva de álcool era vulgar entre o povo, sendo frequente encontrar homens embriagados e até algumas mulheres, à porta dos estabelecimentos e na via pública. As expressões «ébrio», «embriagado», «um tanto bêbado», «muito embriagada», «gosta de beber» e outras semelhantes, estão presentes em dezoito dos processos analisados.
Também se cavaqueava e cantava nas mercearias, nas padarias, nos locais de trabalho e nas casas particulares, embora o convívio nestas últimas, devido à falta de espaço, fosse frequentemente transferido para a rua (Madureira, 1992, p. 141)44. No entanto, os serões, quando ocorridos no interior doméstico, eram frequentemente partilhados com grupos de amigos45, com quem se cantava, tocava ou jogava às cartas.
As habitações de rendas baratas dos bairros populares, em virtude da sua aglomeração, exiguidade dos compartimentos e construção deficiente (Madureira, 1992 , p. 66, 138-144), não proporcionavam a privacidade familiar. Daí as acusações de se ouvir, a partir da rua ou de casas vizinhas, conversas em concreto e assobiar, cantar e tocar determinadas cantigas.
Nos espaços mais amplos, incluindo as paradas dos quartéis46, jogava-se ao chinquilho (uma variante do jogo da pela). Estes costumes estavam de tal modo enraizados, que nem a sua proibição, acompanhada de multas pesadas e de penas de prisão, lhes conseguia pôr termo47.
Os lugares públicos, principalmente à noite, eram monopólio quase exclusivo dos homens. Das quatro mulheres constantes nestes processos, apenas a meretriz Inácia Vitória cantava e dançava, embriagada, na rua ocidental do Passeio Público, no momento da detenção, em julho de 1832, pelas 19 horas, quando o sol ainda ia alto48. As outras três foram presas em casa. E destas, só a meretriz Clara Maria cometera o delito causador da prisão na via pública. Entoara na rua do Ouro (Câncio, 1939 , p. 62)49, também pelas 19 horas mas de finais de janeiro de 1829, cantigas «contra a realeza»50.
Lisboa, além de alegre, buliçosa e barulhenta era uma cidade onde já então se dormia pouco. Embora a maior parte das detenções tivesse sido praticada em pleno dia, algumas houve depois das 23 horas e 30 minutos e uma às 5 horas da madrugada51.
Apesar do ambiente intimidatório, a cidade era de facto animada de dia, de noite, durante todo o ano e um pouco por toda a sua extensão. Houve infratores surpreendidos pelas forças da ordem em Arroios (à época o extremo norte da cidade) em Campo de Ourique, na Pampulha, em Alfama, na Graça, nas zonas ribeirinhas da Rocha do conde de Óbidos de Alcântara e da praia do Cais do Pinho, nas imediações da calçada da Estrela, nas Necessidades, na rua do Salitre, na Praça da Alegria, no Passeio Público, nas ruas da Prata, do Ouro e dos Fanqueiros.
Predominaram as detenções no Bairro Alto (doze), na freguesia de Santa Isabel (nove) e na Mouraria (seis) que constituíam, juntamente com Alfama, as zonas de perfil mais acentuadamente popular (Rodrigues, 1993, p. 130-157), onde abundavam as tabernas e os bordéis. Estes locais de boémia, frequentados pelos grupos sociais mais pobres e pelos marginalizados, tanto da sociedade como do sistema político vigente, eram propícios a excessos e a alterações da ordem pública, mas também a discursos ilícitos, a ajuntamentos clandestinos e a conspirações (Pais, 1985, p. 43, 50 e 56), tornando-se por tudo isso alvo de uma vigilância mais apertada52.
Notas finais
Os processos políticos do reinado de D. Miguel e mais concretamente os respeitantes ao delito referido como «Cantigas subversivas» permitem-nos conhecer um pouco da época e do local em que decorreram, sob as vertentes política e social, permitindo-nos também apreender algo do seu quotidiano. No âmbito político, confirmam-nos aquilo que já é conhecido no respeitante ao ambiente persecutório. As ruas eram fortemente patrulhadas, particularmente à noite, mais propícia a reuniões e outros contactos duvidosos. Militares e elementos dos corpos de Voluntários Realistas rondavam os bairros populares, principalmente as tabernas e casas de pasto, onde a convivência se afigurava mais suspeita e o excesso da bebida poderia resultar em inconfidências denunciadoras de atividades ou de simpatizantes constitucionais.
Os agentes da autoridade viam «liberais» em todo o lado, como se comprova pela dificuldade em provar muitas das acusações. Agiam de forma violenta e arbitrária. Aproveitavam até para roubar os viandantes, inventando contra eles falsas acusações quando não logravam o seu intento. Reagiam de imediato a qualquer tipo de denúncia, sem averiguar da sua veracidade. E não hesitavam em penetrar no interior das habitações, por vezes através de arrombamento, para deter suspeitos.
Apesar da pouca gravidade deste tipo de delitos, os presos permaneciam, a maioria das vezes, detidos vários meses até serem ouvidos pelo juiz, que acabava frequentemente por dar ordem de soltura, perante a fragilidade das acusações. As testemunhas, por convicção ou solidariedade, reiteravam quase sempre a inocência dos réus, declarando não os ter ouvido cantar ou não terem identificado a cantiga como proibida e acrescentando serem os mesmos adeptos de D. Miguel.
Quando os infratores eram militares ou reincidentes, os magistrados aplicavam penas particularmente pesadas, podendo implicar o degredo ou a condenação às galés.
Aparentemente, nos primeiros dois anos de governação miguelista, quem atraísse a atenção policial por circular a desoras, cantando, tocando ou assobiando, nas ruas e praças de Lisboa, estava sujeito a ser preso por vários meses ou até por mais de um ano. O mesmo podia suceder a quem fosse acusado de entoar modinhas subversivas dentro de casa, à janela ou no local de trabalho.
Segundo declarações dos próprios soldados, os presumíveis infratores, tanto homens como mulheres, ao avistarem a ronda, desatavam a fugir, conseguindo, a coberto da escuridão, escapar à detenção. Apenas os menos ágeis, devido à idade ou à embriaguez, eram capturados.
Os processos permitem-nos ainda conhecer as canções mais populares da época, entoadas individualmente, em coro ou à desgarrada. Os presos, ao negarem as acusações, explicavam que na altura da detenção trauteavam, não temas proibidos, mas outros politicamente inócuos como «Lucinda sendo pastora», o «O passarinho trigueiro», «O hino das trevas» (na Quaresma)53 ou cantigas relacionadas com o sistema político vigente, como o hino realista «O rei chegou» (França, 2008 , p. 497)54 e «Braga fiel» (Lousada e Ferreira, 2006, p. 166) 55. Os de fora da capital, incluindo os galegos, alegavam cantar modinhas da sua terra.
O hino constitucional parece ter sido bastante popular. Os detidos, surpreendidos a cantá-lo ou a assobiá-lo, alegavam desconhecer-lhe a natureza política e a ilicitude. Explicam que apenas o entoavam distraidamente, por ser bonito, ou por lhes fugir a música para essa melodia. E os que negavam cantá-lo, admitiam no entanto que o faziam antes de passar a ser proibido. Torna-se impossível averiguar o grau de veracidade destas justificações, mas fica pelo menos a certeza de que o hino liberal andava no ouvido de toda a gente.
Compunham-se também cantigas satíricas inspiradas em eventos com impacto social e político, como sucedeu com o da quebra da perna direita de D. Miguel56, ocorrida a 9 de novembro de 1828, em consequência de um acidente sofrido ao deslocar-se entre Queluz e Caxias (Fonseca, 1908, p. 367-368)57. E outras de crítica aberta ao miguelismo, como a quadra entoada pela meretriz Clara Maria na rua do Ouro, em janeiro de 1829: Para matar a fome / Uma cantiga se inventou / Quanto mais a fome aperta / Mais se canta «O rei chegou»58.
O hábito da gente do povo de cantar, tocar, dançar e provocar distúrbios na rua após os serões nas tabernas, era na época uma forma de divertimento que ultrapassava a capital do reino, sendo comum aos centros urbanos com alguma dimensão, como pudemos constatar em Évora (Fonseca, 2009, p. 381-385 (373-385), Elvas (Fonseca, 2016, p. 44-49 e 108-124) e Loulé (Fonseca, 2017, p. 48 e nota 231). Adquiriu no entanto maior visibilidade durante o reinado de D. Miguel por ter sido alvo de particular atenção por parte das forças policiais e ter originado processos que nos permitem atualmente conhecer e interpretar o significado social e político dessa realidade.