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Comunicação e Sociedade
versão impressa ISSN 1645-2089versão On-line ISSN 2183-3575
Comunicação e Sociedade vol.35 Braga jun. 2019
https://doi.org/10.17231/comsoc.35(2019).3133
ARTIGOS TEMÁTICOS
O tempo do medo versus o tempo da ciência: disputas discursivas sobre a epidemia de vírus Zika e microcefalia no Brasil
Fear time versus science time: discursive disputes over the epidemic of the Zika virus and microcephaly in Brazil
//
Simone Evangelista Cunha *
https://orcid.org/0000-0002-5457-5737
Marcelo Garcia **
https://orcid.org/0000-0001-6183-2343
//*Universidade Federal Fluminense, Brasil, simone.evangelistacunha@gmail.com.
//**Fundação Oswaldo Cruz, Brasil, marcelo.garcia@icict.fiocruz.br.
RESUMO
O artigo propõe-se a discutir alguns dos tensionamentos desencadeados pelas fricções entre regimes temporais distintos envolvidos num episódio epidémico. O texto tem como base o estudo de caso sobre a difusão de informações relacionadas com a epidemia de Zika e microcefalia no Brasil no verão de 2015/2016. A partir do contexto de mediatização intensa e da complexa temporalidade produzidas pelas tecnologias digitais de comunicação, procuramos analisar a relação entre atores humanos e não-humanos que contribuíram para a construção social dessa epidemia em particular. Nosso foco recai, em especial, sobre a produção de vídeos pelo público “leigo” que disseminam boatos com possíveis explicações alternativas para a epidemia.
Palavras-chave: Mediatização; risco; tempo; vírus Zika; YouTube.
ABSTRACT
This article discusses some of the tensions caused by the friction between distinct temporal regimes associated with an epidemic episode. This text is based on the study of the way information related to the Zika epidemic and microcephaly in Brazil was speeded out during the year 2015-2016. Starting with the context of intense mediatization, as well as of the complex temporality produced by digital communication technologies, we sought to analyze the relationship between human and non-human actors that contributed to the social construction of this epidemy. The focus of the text are the videos produced by the “lay” public who also spread rumors which show likely alternative explanations about the epidemy.
Keywords: Mediatization; risk; time; Zika virus; YouTube.
Introdução
Segundo o historiador Charles Rosenberg (1992), além do seu caráter biológico, toda doença é um amálgama dos sentidos atribuídos pelas sociedades, uma construção intelectual complexa. Nessa mesma direção, Janine Cardoso (2012) afirma que, a emergência e a experiência da doença, no plano individual ou coletivo, mobilizam repertórios culturais e cognitivos e expõem formas de organização social e de relações de saber e poder historicamente produzidas. O período inicial ou agudo da expansão do vírus Zika que assolou o Brasil entre os meses de outubro de 2015 e fevereiro de 2016, foi marcado por dúvidas, incertezas e medo. Muitos investigadores e profissionais da saúde traçaram paralelos com outras situações de epidemias vividas no país em especial VIH/ Sida, no início dos anos 1980. Ainda que biologicamente muito diferentes, partilham algumas semelhanças relativamente aos contextos de surgimento: pouco se conhecia sobre eles, havia muitas incertezas científicas sobre todos os aspectos associados a eles, as duas epidemias ganharam enorme destaque na imprensa e ambos representaram (e ainda representam) problemas graves de saúde pública.
Ao abordar a construção social da Sida, por exemplo, Norman Fairclough (2001) mostra como esse processo combinou vários discursos (como os da venereologia, da “invasão” cultural por “estrangeiros” e da poluição). Estabelecendo um paralelo com o vírus Zika, este também envolveu a proliferação de narrativas que entrelaçaram vírus, mosquitos, concepções sobre maternidade, aborto e vacinação, xenofobia e política partidária. Estes discursos que também aparecem nos média, nas páginas da internet e nas redes sociais desempenharam um grande protagonismo durante o episódio (Garcia, 2017) e apresentam-se como constitutivos da descontinuidade temporal criada pelo tempo do medo e do risco .
A velocidade de circulação de informações sobre Zika e microcefalia e o interesse despertado pela doença desconhecida transformaram o episódio num tempo de crise privilegiado para a revelação e análise das tensões que emergem do processo de mediatização que atravessa a sociedade contemporânea. Segundo Muniz Sodré (2007), por mediatização, entenda-se o funcionamento articulado das tradicionais instituições sociais com os média, representando uma mutação sócio-cultural centrada no funcionamento atual das tecnologias da comunicação. Conforme argumenta Fausto Neto (2008), a mediatização redesenha os processos interacionais e sugere a produção de uma nova ambiência, com o deslocamento de produtores e receptores no processo de comunicação para uma nova zona de contato, pautada por lógicas de circulação e de temporalidade não-lineares.
Dito de outra forma, José Luiz Braga (2012) afirma que na sociedade mediatizada todos os campos sociais, inclusive (e, talvez, em especial) o científico, parecem estar mais associados a necessidades de interação “externa” , devido à capacidade de conflito provocado por atores de fora do campo, ou por causa da possibilidade de interação com o ambiente externo fora das lógicas estritas do campo. Tais processos e lógicas difusos, próprios da mediatização, refletem um cenário de diminuição da capacidade de refração e da esfera de legitimidade dos próprios campos autónomos, oferecendo estados descontinidade temporal e de emergência de tempos diversos e, por vezes, contraditórios.
Num contexto em que a internet é uma fonte cada vez mais importante de informação sobre saúde, os cidadãos passam a assumir um papel de especialista (Garbin, Pereira Neto & Guilam, 2008; Vasconcellos-Silva & Castiel, 2010), mergulhado numa “espécie de mercado de variadas versões de verdades plausíveis subitamente urgentes a nos exigir decisões inequívocas” (Vasconcellos-Silva & Castiel, 2010, p. 4). Neste artigo, debruçamos-nos sobre as disputas pela legitimidade dos discursos em torno do vírus Zika no Brasil e, em especial, sobre as tensões originadas pelas fricções entre regimes temporais que caracterizam a rede dos atores humanos e não-humanos (Latou, 2000) em que se inscrevem as controvérsias sobre o episódio, incluindo as plataformas digitais de redes sociais. Analisar um episódio de pânico, incerteza e desconhecimento como a epidemia permite observar o compasso de tempo em que se inscreve a produção do conhecimento. É nesse vislumbre do processo de formação daquilo que Bruno Latour (2000) chama de caixa-preta[1], nesse curto intervalo de tempo de intensa produção semântica, que o episódio da Zika ganha seus contornos mais únicos.
Na primeira parte do artigo, debatemos as disjunções temporais relativas ao fazer científico e aos discursos sobre a ciência à luz do alto grau de reflexividade experimentado em nossa sociedade (Giddens, 1991). Fruto do próprio acúmulo do conhecimento científico e das mudanças ocorridas na modernidade, esse caráter reflexivo impõe uma série de novas questões, típicas do nosso tempo, sobre o papel da ciência e sua relação com a produção do risco e da incerteza. Em seguida, estabelecemos uma correlação entre o fortalecimento da retórica da “eu-pistemologia” (Van Zoonen, 2012) e a disseminação de narrativas alternativas sobre a epidemia, enquanto realidades que ocorrem. Por fim, apresentamos uma breve investigação inspirada na análise de conteúdo sobre três vídeos publicados no YouTube que apresentam boatos como possíveis explicações para o problema.
Este trabalho subscreve a proposta de Gary Kreps (2013) acerca da relevância de estudos sobre comunicação e saúde para o desenvolvimento de políticas públicas do setor. Segundo o autor, é fundamental examinar cuidadosamente a influência da comunicação em problemas críticos envolvendo populações em risco, profissionais de saúde e outros atores importantes para o sistema de saúde moderno. Num cenário no qual a desinformação se propaga com maior facilidade e em tempos cada vez mais curtos a partir dos média digitais, argumentamos ser crucial compreender as narrativas que circulam nestes espaços para concretização de políticas de promoção da saúde.
Este é um texto reflexivo no qual o vírus Zika e microcefalia é tomada como um ponto de partida para problematizarmos os imperativos do campo de comunicação e saúde na contemporaneidade e as suas temporalidades.
Tempo da população versus tempo da ciência
Ao analisar as perspetivas da ciência para a virada do século, Boaventura de Souza Santos (1988) descreveu a situação ambígua na qual vivia uma humanidade atónita. Segundo o autor, encontrávamos-nos (e, em nossa perspetiva, ainda nos encontramos) num cruzamento de “sombras de um passado que ora pensamos já não sermos e ora pensamos não termos ainda deixado de ser, e sombras de um futuro que ora pensamos já sermos, ora pensamos nunca virmos a ser” (Santos, 1988, p. 46). O sociólogo afirma que, se centrarmos nosso olhar no futuro, duas imagens contraditórias nos ocorrem alternadamente: a da nossa chegada ao limiar de uma sociedade libertada das carências e inseguranças pela tradução tecnológica dos conhecimentos acumulados e a dos perigos que nos fazem temer que o futuro termine antes de começar.
Pode-se alinhar a perceção de Santos com a célebre análise de Anthony Giddens (1991) sobre o caráter reflexivo da modernidade. Segundo este sociólogo, a modernidade é um fenómeno de dois gumes: o desenvolvimento das instituições modernas e sua difusão mundial criaram oportunidades para gozarmos de existências mais seguras e confortáveis, mas também produziram um lado sombrio porque aumentam a experiência de incerteza e de receio dos cidadãos (Giddens, 1991). Segundo esta visão, os riscos da modernidade não são frutos de relações de causa e efeito diretas, imediatas e certas; pelo contrário, estão associadas a potenciais, a possibilidades difíceis de determinar, o que gera um cenário global de incertezas não quantificáveis. Uldrich Beck (2010) também carateriza a sociedade moderna pelas incertezas e ameaças produzidas e agravadas pelo progresso. Nela, a ciência adquire um papel extremamente importante enquanto legitimadora de conhecimentos e práticas, mas, ao mesmo tempo, parece ser cada vez menos suficiente na definição socialmente vinculante de verdade (Beck, 2010), contribuindo para a experiência do risco, incerteza e descntinuidade.
Situações extremas e diversas como desastres naturais, ataques cibernéticos descentralizados ou epidemias de saúde pública exemplificam na prática as angústias e inseguranças que advêm das ambiguidades em torno do fazer científico. Luis David Castiel (1999) afirma que o conhecimento deixou de possuir a vinculação que possuía com os ideais deterministas; conhecer já não implica atingir certezas incondicionalmente estáveis. Embora os resultados e promessas da ciência repercutam cada vez mais em todos os âmbitos do nosso cotidiano (Tucherman & Ribeiro, 2012), a ciência em si repousa sobre areia movediça na sociedade de risco (Giddens, 19991), produzindo tempos descontinuos e fragmentados.
A partir do que pontuam Igor Sacramento e Izamara Bastos Machado (2015), essa temporalidade permanente de risco é amplamente difundida em narrativas sobre catástofes, acidentes e epidemias, particularmente no âmbito do jornalismo. Relatos e experiências construídos para estimular a identificação entre o leitor/espetador e personagens que sofrem contribuem para a percepção de que tais imprevistos podem ocorrer a qualquer momento, refletindo num presente constante a possibilidade de futuro. Num contexto em que as definições científicas sobre os riscos estão cada vez mais interligadas a expectativas e avaliações sociais (distante, portanto, de verdades irrefutáveis), a experiência mediatizada desses acontecimentos permeia todo o tempo da vida cotidiana.
Cabe lembrar que, diferentemente do que acredita o senso comum, o tempo é uma noção culturalmente construída e performatizada a partir de diferentes instâncias. Sendo assim, os média e os processos comunicacionais influenciam a nossa percepção do tempo e dos regimes temporais, complexificando ainda mais a relação entre público e ciência. Porém, a própria relação entre o tempo e os média é pautada pela articulação de diferentes temporalidades (West-Pavlov, 2012). Este fenómeno materializa-se de formas distintas, a partir dos usos simbólicos e sociais dos diferentes média ao longo da história, de forma que “cada processo comunicacional engendra um ou mais regimes de temporalidade” (Musse, Vargas & Nicolau, 2017, p. 8). Na atualidade, como argumenta Marialva Carlos Barbosa (2017), a dimensão relativa do tempo passa a tornar-se ainda mais palpável com a disseminação das tecnologias digitais. Em diferentes plataformas, é cada vez mais fácil revisitar e reconstruir o passado no presente, assim como apresentar e debater projeções sobre o futuro. A relação entre temporalidades e média é pautada por um tempo fluído e volátil, “governado pela lógica exponencial da aceleração” (Barbosa, 2017, p. 20).
A aceleração do tempo aponta não para a projeção teleológica de um futuro, nem para a recuperação de um passado, mas para uma experiência social alicerçada na instantaneidade e na condensação temporal (Mateus, 2013). Dessa forma, o tempo cotidiano já não é cíclico nem linear, mas pontilhista, marcado por sucessivas desintegrações (Maffesoli, 2003). Como argumenta Zygmut Bauman (2007), sua inconsistência, falta de coesão e profusão de descontinuidades desfaz os elos temporais que unem os acontecimentos, liquefazendo-o. A memória é alterada, transformando-se muma memória rizomática, espalhada por todos os nódulos da rede, esperando ser recuperada e reenviada, produzindo novas relações com o conhecimento e com a utilização desse conhecimento (Mateus, 2013).
Já na perspectiva de Muniz Sodré (2007), as tecnologias avançadas da comunicação e a velocidade de circulação das informações produzem uma outra temporalidade, o ‘tempo real’, no qual a experiência habitual do tempo é profundamente modificada, uma vez que virtualmente conectado a todos os outros, os indivíduos podem ser alcançados sem demora. Nessa temporalidade condensada no presente, “eterno presente” (Sodré, 2007, p. 19), a informação tende a ser pontuada por sua própria velocidade de transmissão, pela imediatez, espaço ilimitado e baixo custo. Os acontecimentos estão sempre à frente da possibilidade de que sejam interpretados pelos indivíduos, assim como o derrame social das tecnologias da comunicação está à frente da sua interpretação pelas formas individuais e coletivas de consciência. O filósofo argumenta que o discurso controla retoricamente a sociedade como um todo, constituindo-se ele próprio numa esfera existencial particular, “geralmente tão abstrata com relação ao território concreto e ao tempo real-histórico quanto é abstrato o sistema da língua com relação ao discurso” (Sodré, 2007, p. 20).
Em direção similar, Marialva Barbosa destaca que, ao produzir uma realidade na qual os eventos são sempre passíveis de atualização a grande velocidade, a confluência dos meios digitais também contribui para a constituição de um “presente estendido” (Barbosa, 2017, p. 20). Quer dizer, e em diálogo com François Hartog (2013), que o regime de historicidade é marcado pelo presentismo, face ao qual o futuro, antecipado como uma ameaça, é persistentemente trazido ao presente, reduzindo a experiencia de insegurança e risco. Os média atuam, assim, persitentemente, na ativação do presente, tendência que se reflete no fluxo ininterrupto de informação em circulação nos meios de comunicação: “é o tempo do fluxo que emerge das narrativas, notadamente no ambiente on-line, não permitindo a pausa necessária para a reflexão” (Barbosa, 2017, p. 21).
Situações como a epidemia de vírus Zika no Brasil revelam-se emblemáticas para compreender os atravessamentos entre as teorias do risco e as temporalidades mediadas pelos meios de comunicação, sobretudo digitais. Sem a pretensão de dar conta da totalidade dos elementos envolvidos nesta configuração, destacamos a seguir alguns pontos centrais para a reflexão proposta. Trata-se, afinal, de comprender as implicações envolvidas nas diferentes temporalidades relacionadas com a produção e disseminação do discurso científico, noticioso e, no contexto dos sites de mídia social, pessoais.
No âmbito da saúde, embora a ciência se proponha a explicar todos os fenómenos por meio de métodos científicos, o seu discurso concorre com outras crenças diversas (Pereira, Martins, Barbosa, Silva & Gomes, 2013). Mitos, crenças populares, medos e outras experiências sociais sobre o fenmeno da saúde e da doença acionam mecanismos muito antigos de compreensão da realidade. Dito de outra forma, nem sempre os dados científicos são as principais referências para as pessoas agirem ou pensarem sobre temas relacionados com a saúde (Pereira et al., 2013). Como também observa Fairclough (2001), o discurso da ciência médica concorre com vários discursos holísticos “alternativos” (como os da acupuntura e da homeopatia) e com discursos populares folclóricos, tendência que se amplia a partir do próprio acesso mais simplificado a informações, inclusive técnicas e especializadas, por meio das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs).
Outro aspecto central para a discussão proposta relaciona-se com a temporalidade própria do fazer científico, diferente do tempo de outros campos sociais, como os média, por exemplo. Se a pesquisa, em princípio, é caracterizada por um tempo de maturação lento, feito de idas e vindas, reconsiderações, avaliações e experiências, ela distancia-se da aura de glamour que envolve a própria divulgação dos resultados científicos nos média. Pautada pela lógica de espetacularização que organiza o tempo e o espaço para a articulação de “cotidianidades” que privilegiam o desejo pelo consumo (Lefèbvre, 1991), a comunicação da ciência é influenciada por uma visão mistificada da atividade científica. Priorizam-se aspectos espetaculares, valorizando aplicações imediatas e sugerindo, grande parte das vezes, que não se deve discutir algo decidido no campo científico. Neste processo, os média contribuem para a construção de fantasias tecnocientíficas que são uma parte cada vez mais poderosa da nossa paisagem cultural (Tucherman & Ribeiro, 2012).
No caso da epidemia de Zika, pode-se dizer que algumas dessas relações foram postas em xeque, uma vez que os média não puderam encontrar, num primeiro momento, respostas sobre o problema junto a pesquisadores e instituições científicas. Por mais que o tempo emergencial do problema tenha impulsionado o trabalho dos institutos de pesquisa e estimulado a organização de conglomerados internacionais de cientistas em busca de soluções, como discutiremos mais detalhamente a seguir, poderia ser necessário meses (ou anos) de pesquisas para a obtenção do conhecimento necessário para o entendimento mais completo da situação. Nesse contexto, considerando a velocidade de difusão de informações em plataformas digitais de redes sociais e o anseio público por respostas mais imediatas, múltiplos discursos passaram a disputar na produção de sentidos sobre a epidemia, com a emergência de vozes de arenas diversas como política, religião, entretenimento e jornalismo. Isso fica bem ilustrado pelas palavras de Ana Lúcia Azevedo, ex-editora de ciência do jornal O Globo sobre esse momento da epidemia: “tínhamos a sensação de estar construindo aquele conhecimento junto com os cientistas” (OSM, 2016).
A verdade de cada um
Nesse contexto de muitas incertezas e discursos conflitantes em circulação, ganha força um fenómeno que Liesbet Van Zoonen classifica como “eu-pistemologia” (2012). Em oposição à ideia da epistemologia, relacionada com a natureza e com métodos do conhecimento para encontrar verdades, a eu-pistemologia responde a questões que afligem os sujeitos, a partir do “eu” e da identidade, em detrimento das instituições. Desta forma, os indivíduos “transformaram a si mesmos em fontes alternativas de conhecimento e compreensão (Van Zoonen, 2012, p. 63), em uma busca que favorece novos modos de expressão. Neste sentido, Van Zoonen dialoga com o trabalho de Jon Dovey (2000), segundo o qual os discursos subjetivos, autobiográficos e confessionais se consolidaram enquanto formas culturais a partir dos anos 1990, proliferando-se em diversos meios de comunicação. Dovey utiliza o termo “mídia em primeira pessoa” (Dovey, 2000) para denominar determinados talk shows e os (então emergentes) reality shows que dão a ver aspetos particulares e experiências íntimas dos indivíduos, pretendendo revelar o “verdadeiro eu” . Esse desejo de “autenticidade real” , diz Van Zoonen (2012), estende-se de produtores de conteúdo a companhias, que devem criar produtos e experiências cada vez mais próximas da realidade. Face a essa abundância do “real” , cabe a cada indivíduo determinar, a partir de sua perspetiva subjetiva, o que é autêntico ou não (Sibilia, 2008) e a partir da sua instantaneidade temporal.
Com a popularização da internet, a eu-pistemologia ganha ainda mais vigor, pois os discursos de si ganham alcance e variedade inéditos. Através dos média digitais, pontua Van Zoonen (2012), existe uma multiplicação não apenas de espaços nos quais os sujeitos podem manifestar suas próprias verdades, mas de modos pelos quais outros indivíduos podem estabelecer correlações entre suas experiências e aquelas que acessa na rede. Em certos sentidos, o compartilhamento das vivências e das crenças de cada indivíduo oferece respostas mais velozes (e, de acordo com a retórica da “eu-pistemologia” mais confiáveis) a problemas complexos do que a ciência pode providenciar. Neste sentido, vale lembrar que caraterísticas técnicas de plataformas digitais de redes sociais têm papel relevante na articulação dessas construções. No início de 2018, o Facebook, rede social digital mais popular entre os brasileiros, anunciou que reduziria o alcance de notícias para priorizar postagens de amigos e familiares no feed de seus usuários (Tozetto, 2018), por exemplo.
Este processo de enunciação coletiva a partir da teia de interações entre atores humanos e não-humanos (Latour, 1994) em plataformas digitais torna-se ainda mais evidente em casos nos quais ainda há poucas respostas “oficiais” , em que o tempo insitutional se atrasa e provoca silêncios e esperas, como ocorreu durante a epidemia de vírus Zika. Menos próximo da horizontalidade propagada pela ideia de uma inteligência coletiva (Lévy, 1999) do que de disputas de sentido entre sujeitos diversos, tal processo é pautado pela capacidade de produzir narrativas consideradas “autênticas” . Dentro dessa lógica, além de questionamentos aos discursos institucionais, sujeitos que não possuem formação científica tornam-se relevantes dentro de determinadas redes relacionadas com conteúdos científicos na internet (Oliveira et al., 2017). O YouTube, a maior plataforma de vídeos da internet, têm se mostrado um espaço prolífico para este tipo de manifestação, com um “sistema de astros” (Burgess & Green, 2009) consolidado por produtores de conteúdos relacionados com a ciência no Brasil.
Considerando o apelo popular do tema e o enorme fluxo já existente de buscas por conteúdos sobre saúde na internet, não surpreende que diversos youtubers (produtores regulares de conteúdo para a plataforma) tenham produzido vídeos sobre Zika no auge da epidemia. Além de terem possivelmente boas intenções, tratava-se de uma oportunidade para conquistar capital social na internet. O reconhecimento de um produtor de conteúdo como fonte confiável de informações sobre um problema que afligia a população aumentaria sua autoridade, medida da influência de um ator em determinada rede (Recuero, 2009). Dada a ausência de informações oficiais sobre o Zika, boatos sobre possíveis informações “secretas” relacionadas à epidemia, que circularam intensamente em diferentes plataformas de redes sociais (Garcia, 2017) também ganharam espaço no Youtube. Não foram poucos os youtubers que produziram conteúdos defendendo tais narrativas alternativas, questionando-as ou simplesmente apresentando-as aos seus públicos.
Vale destacar, ainda, que em fevereiro de 2018 uma reportagem do jornal norte-americano Wall Street Journal apontou o potencial do Youtube na promoção de discursos radicais (Nicas, 2018). Conduzida com a participação de um ex-funcionário da Google, a investigação mostrou que a plataforma oferecia frequentemente conteúdos vinculados à extrema-esquerda ou à extrema-direita para usuários que assistiam conteúdos considerados informativos e relativamente “neutros” , na tentativa de mantê-los por mais tempo no portal. No âmbito da saúde, a questão da vacinação ganhou destaque: segundo o jornal, ao procurar por informações sobre vacinas contra a gripe, o público era incentivado a ver conteúdos sobre conspirações do movimento antivacinação. As acusações foram reiteradas pelo depoimento de outro ex-funcionário da empresa ao jornal britânico The Guardian. Segundo ele, o algoritmo de recomendações da plataforma distorce a realidade para fazer com que o público passe mais tempo online (Lewis, 2018). Trata-se de um contexto explosivo para a disseminação de narrativas como as analisadas ao longo deste trabalho.
É certo, concordando com autores como Jean-Bruno Renard (2007) e Jean-Noel Kapferer (1990), que os boatos fazem parte de nosso dia a dia, são uma de nossas fontes de informações desde tempos imemoriais. Tal conceção é reforçada, por exemplo, por Gordon Allport e Leo Postman (1973), para quem grande parte de nossa comunicação cotidiana é composta por rumores. Por outro lado, no processo de produção e disseminação de boatos em nossa contemporaneidade digital, temporalmente descontínua, também parecem representar papel importante as considerações da obra do filósofo Zigmunt Bauman (2007). Segundo ele, em nossos “tempos líquidos” , a quebra de fronteiras, a desregulamentação, o enfraquecimento das relações humanas traz à mente “a experiência aterrorizante de uma população heterônoma, infeliz e vulnerável, confrontada e possivelmente sobrepujada por forças que não controla nem entende totalmente” . (Bauman, 2007, p. 13). Desse sentimento de impotência individual nascem, segundo o autor, a insegurança do presente e a incerteza do futuro, que alimentam o medo.
Na perspetiva de Orlandi (2005), o rumor não pode ser compreendido como disse-me-disse, como fala desinteressada, mas como um elemento a mais na disputa pelo espaço contraditório das significações dos sujeitos e do espaço urbano. O boato produz-se num tempo próprio, afeta o ritmo do dizer, jogando na relação das palavras com o silêncio, dizendo de menos (não se diz “toda” a verdade, o fato não é “completamente” significado) ou demais (se vai além da verdade, há dispersão de sentidos em torno do fato). Dessa forma, afirma Eni Orlandi (2005), deixam-se ver os flancos do dizer, margem de equívocos, incertezas. As concepções da autora, nesse ponto, complementam as ideias apresentadas por Kapferer (1990), Renard (2007) e Luiz Carlos Iasbeck (2000), que sugerem que os rumores surgem quando um grupo tenta dar sentido a circunstâncias incertas e ambíguas, isto é, quando as informações são escassas e há a desconfiança de que podem existir muito mais por trás de uma versão “autorizada” , apontando para outras possibilidades interpretativas.
Essas narrativas difusas, desalojadas de um “lugar de origem” , compostas por elementos instáveis, mutáveis, são transmitidas, por excelência, de maneira informal, de “ouvido a ouvido” , criando um elo de cumplicidade e confirmando laços de confiança (Iasbeck, 2000). A informalidade, oralidade e aspecto conversacional característicos da comunicação digital em rede (Fairclough, 2001; Recuero, 2012) favorecem a circulação do boato enquanto fenómeno de transgressão, que não sofre estranhamento diante das novas tecnologias (Iasbeck, 2000; Reule, 2008). O boato fortalece-se a partir dos regimes de temporalidades desses espaços, que reforçam e são reforçadas pela aceitação da retórica da eu-pistemologia.
No tópico a seguir, analisaremos as disputas de sentido em torno da epidemia de Zika vírus com destaque para a emergência de youtubers como agentes disseminadores de narrativas alternativas sobre a doença que contribuem para a emergencia de uma temproalidade framentada, mas conflitual durante o período de “crise” .
Estudo de caso: narrativas sobre o vírus Zika no Brasil
O vírus Zika (ZIKV) chegou ao Brasil sem alarde. A princípio responsável por quadros clínicos brandos, transformou-se num dos maiores problemas de saúde pública nacional dos últimos anos. O principal fator que explica o medo da população, a preocupação das autoridades sanitárias e o grande interesse da mídia na doença é associação com o crescimento dos casos de malformações congênitas (em especial a microcefalia, quando a criança nasce com o perímetro craniano muito reduzido), além de outros problemas graves como a síndrome de Guillain-Barré, uma doença autoimune neurológica que pode ocorrer associada a infecções.
Os relatos científicos relativos ao Brasil situam os primeiros casos do vírus no início de 2015, com a confirmação da sua circulação no país registrada em maio. A doença continuou a ser tratada como benigna até outubro, quando os alertas de aumento de casos de microcefalia levantaram a suspeita da sua relação com o Zika, o que começou a ser discutido nos jornais locais na primeira semana de novembro (Aguiar & Araújo, 2016). Com quase 150 casos suspeitos de microcefalia, o Ministério da Saúde declarou situação de emergência em saúde pública em 11 de novembro (Governo declara emergência em saúde por casos de microcefalia, 2015), para dar maior agilidade às investigações. Ainda em novembro, exames feitos pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e pelo Instituto Evandro Chagas confirmaram a relação entre o vírus Zika e a microcefalia (Ministério da Saúde confirma relação entre microcefalia e o vírus da Zika, 2015). A doença espalhou-se pela América Latina e levou a OMS a decretar situação de emergência de saúde pública de interesse internacional em 1 de fevereiro[2], o que facilitou a mobilização de recursos e conhecimento científico. A partir de março, o Zika começou a perder espaço nos noticiários, em parte pelo avanço do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, em parte pela própria sazonalidade do Aedes aegypti, com a chegada dos meses menos quentes.
A meio ao auge da epidemia, foi preciso resgatar os poucos registos históricos sobre o Zika. Os investigadores procuraram descobrir quando havia sido sua chegada ao Brasil e revisaram surtos antigos, em especial a epidemia ocorrida na Polinésia Francesa, entre 2013 e 2014, com cerca de 30 mil casos (Jouannic, Friszer, Leparc-Goffart, Garel & Eyrolle-Guignot, 2016). Na época, o surto foi visto como uma “dengue suave” que passou sem deixar rastros graves. Após o início da epidemia no Brasil, no entanto, a revisão dos dados da época mostrou a possível associação da infeção por Zika nos primeiros meses da gravidez com o aumento de casos de microcefalia no país.
A associação do vírus às suspeitas de microcefalia fez com que a nova epidemia passasse a ser um acontecimento social importante, reforçando os sentimentos de imprevisibilidade, de insegurança e incerteza, próprios à sociedade de risco (Antunes, Alves, Goveia, Oliveira & Cardoso, 2016). O rumor intensificou-se, assim como os esforços institucionais e científicos para lidar com a crise. Os procedimentos de incentivo à pesquisa foram modificados para agilizar o combate à doença, com a aprovação pela Fundação de Amparo à Pesquisa do estado de São Paulo (Fapesp), ainda em dezembro de 2015, de aditivos para projetos emergenciais relacionadas com o Zika. Outros instâncias de fomento, como a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e o Ministério da Ciência e Tecnologia também agilizaram sos seus procedimentos e, em março de 2016, anunciaram um pacote de investimentos de cerca de R$ 1,2 bilhão[3] para ações em diversas áreas. A OMS, por sua vez, anunciou em fevereiro de 2016 um plano de US$ 56 milhões para combater a epidemia de Zika (OMS lança plano de US$ 56 milhões para combater epidemia de Zika, 2016). A cooperação e associação entre pesquisadores também foi veloz, com o surgimento de iniciativas colaborativas internacionais como o consórcio de pesquisa ZIKAlliance, composto por parceiros de todo o mundo e coordenado pelo Instituto Nacional Francês de Saúde e de Pesquisa Médica (Inserm).
Em outra instância, houve uma convergência de pesquisas para a área e mudanças nas próprias publicações científicas. Uma vez que a falta de informações e dados científicos sobre a doença eram as principais dificuldades a serem enfrentadas, as revistas adotaram medidas para acelerar seu processo de publicação. Cerca de mil artigos sobre a doença foram indexados no PubMed até nos primeiros meses que se seguiram à epidemia e periódicos importantes da área, a revista Memórias do Instituto Oswaldo Cruz e criaram fluxos de trabalho especiais. O objetivo era acelerar o chamado ciclo de avaliação por pares, especificamente para manuscritos submetidos neste tema[4].
Enquanto a comunidade científica debatia, a população e os média tentavam produzir juízos sobre a situação. Com tantas incertezas, o grau de pânico cresceu, assim como a sensação de urgência. Neste cenário, e diante da sensação de aceleração impulsionada pelos média digitais, uma gama de explicações alternativas para o aumento da ocorrência de microcefalia, classificadas como boatos pelas autoridades, ganhou destaque. Em contraponto ao tempo necessário para a produção de estudos científicos e reflexões aprofundadas sobre os múltiplos fatores envolvidos no problema, respostas simplistas e sem qualquer evidência científica se propagaram por diversas plataformas digitais. Além de oferecer soluções aos anseios da população, teorias sobre a aplicação de vacinas de rubéola vencidas e testes com mosquitos modificados/infectados pela bactéria Wolbachia contribuíram para confirmar desconfianças em torno da ciência, reforçando a busca por outras fontes de conhecimento.
Dentre as plataformas digitais nas quais boatos sobre a epidemia circularam intensamente, escolhemos analisar narrativas em vídeo publicadas no YouTube. Líder mundial no consumo de vídeos online, a plataforma foi escolhida pela visibilidade no Brasil. Segundo pesquisa do Google de 2017, 95% dos internautas do país acessam o portal mensalmente e 59% destes concordam que é melhor ficar atualizado pelo YouTube do que vendo notícias (Google & REDS, 2017). Além disso, a relação entre youtubers e sua audiência, caracterizada pela construção de redes de afeto e confiança que envolve microcelebridades da internet (Marwick, 2015), se constitui como um elemento importante para a disseminação de narrativas alternativas sobre o Zika. Considerando os milhares de vídeos publicados sobre o tema na plataforma, utilizamos uma amostra qualitativa do tipo intencional. Neste tipo de seleção, os elementos são escolhidos de acordo com critérios que “derivam do problema de pesquisa, das características do universo observado e das condições e métodos de observação e análise” (Fragoso, Recuero & Amaral, 2011, p. 78).
Desta forma, em primeiro lugar, buscamos vídeos que apresentassem narrativas reconhecidas como boatos, mencionassem especificiamente a epidemia brasileira e tivessem número expressivo de visualizações na plataforma. Utilizamos como segundo critério de seleção um recorte temporal que compreendesse momentos-chave da epidemia, o que nos levou à seleção de três vídeos, denominados “A Verdade Sobre o Zika Virus e a Microcefalia!” , “O Zika Virus nada tem haver com os casos de Microcefalia O governo está mentindo” [sic] e , “A TRAMA DIABÓLICA DO ZIKA VÍRUS” [5]. Duas produções escolhidas foram publicadas no início de dezembro de 2015, pouco tempo após a confirmação oficial do vínculo entre o Zika e a microcefalia; já a terceira foi lançada em fevereiro de 2016, dias após o pronunciamento da OMS caraterizando a epidemia de Zika como emergência de saúde pública de interesse internacional. A partir desta seleção, apresentamos a seguir uma análise sobre os vídeos em questão inspirada pelos preceitos da análise de conteúdo. Segundo a perspetiva de Klaus Krippendorff (1990), tal método é uma importante ferramenta para compreender a frequência pela qual determinados objetos são enquadrados de modos particulares. Conquanto uma análise mais extensa fuja aos objetivos deste artigo, nos voltamos aos vídeos buscando compreender como seus autores buscam legitimar explicações alternativas para a epidemia.
Publicado no canal Liberdade em 5 de dezembro de 2015, o primeiro vídeo, “A Verdade Sobre o Zika Virus e a Microcefalia!” [6], utiliza uma colagem de reportagens produzidas pela Rede Globo para questionar o discurso oficial sobre o Zika. A produção começa com o anúncio da confirmação da relação entre o vírus e o surto de microcefalia no nordeste do país no Jornal Nacional, programa jornalístico de maior audiência do Brasil. Por meio de inserções de texto e truques de edição, como repetir a fala do repórter alertando para uma mobilização nacional contra o mosquito da dengue, o autor questiona a legitimidade da descoberta. Embora não apareça fisicamente, o autor imprime sua voz (e o tom alarmista) ao vídeo, utilizando letras brancas e pretas em caixa alta sobre um fundo preto manchado (remetendo à ideia de contaminação) para questionar por que até 2015 os mosquitos não transmitiam o vírus Zika. Após destacar uma fala do repórter dizendo que o mosquito deveria ser impedido de nascer, o autor volta ao lettering com o seguinte anúncio: “veremos agora uma reportagem exibida pelo jornal nacional em 11/01/2014, a [sic] mais de um ano atrás, tenho a reportagem salva deste dia, em que o governo largou mosquitos da dengue geneticamente modificados por várias partes do Brasil” .
Em seguida, tem início outra reportagem, desta vez sobre uma iniciativa de mosquitos transgênicos na cidade de Juazeiro do Norte. O vídeo é interrompido por uma nova inserção na tela, que afirma: “isso mesmo, vc ouviu bem. mosquitos geneticamente modificados e pagos com dinheiro publico! Estamos pagando para sermos emfectados! Regra de 3, eles criao o problema, apresentao o problema, e agora vem com a solucao!” [sic]. O tom apocalíptico atinge seu máximo na frase que encerra a produção: “apertem os cintos senhoras e senhores! Rumo a I.N.W.O. e a reducao populacional!” [sic].
A utilização de vídeos jornalísticos tem um viés duplo: ao mesmo tempo em que se questiona o Ministério da Saúde, insinua-se que os média compactuariam com mentiras. Ao mesmo tempo, o autor destaca que guardou o vídeo de 2014 da Rede Globo sobre os mosquitos transgênicos, dando a entender que havia sido capaz de prever que o experimento levaria a problemas mais tarde. Desta forma, apresenta-se como uma pessoa prevenida que utiliza racionalmente as informações disponíveis para prever que os riscos que ameaçam o futuro, perspetiva que compartilha com seu público em busca de legitimação.
O segundo vídeo, intitulado “O Zika Virus nada tem haver com os casos de Microcefalia o governo está mentindo” [7] [sic] foi publicado pelo canal Instituto Teológico Gamaliel em 9 de dez de 2015. Com uma narrativa inteiramente voltada para o discurso em primeira pessoa, ele traz um homem identificado como pastor Flávio Nunes olhando direto para a câmera numa gravação aparentemente feita pelo telemóvel. Ao longo de 2m34s, o autor afirma que “não tem como confirmar a veracidade” , mas soube que a microcefalia estaria relacionada com lotes de vacinas contra a rubéola vencidas. O pastor diz ainda que “se isso for verdade” , o governo deveria assumir seus erros e parar de enganar as pessoas. Por fim, deixa no ar a pergunta sobre o grande número de incidências de microcefalia no nordeste, reforçando a possível correlação com vacinas vencidas que teriam sido distribuídas na região.
Curiosamente, a extensa descrição do vídeo começa num tom mais assertivo, com frases como “tudo mentira do governo, eles estão com medo de indenizar todas as famílias que foram afetadas” , “as redes sociais a qualquer momento estouram com essa notícia e nós precisamos ficar em alertar para lutar pelos direitos dessas famílias afetadas” . Apenas no fim o autor escreve que “se isso é realmente verdade não sei mas…” . Tal qual no vídeo anterior, o autor também não utiliza qualquer fonte oficial, o que justifica a própria advertência sobre a impossibilidade de confirmar o caráter verídico da história. Entretanto, no canto do vídeo e na descrição do mesmo o título de pastor aparece em destaque, em uma provável tentativa de reforçar a posição de autoridade do autor e, consequentemente, a possibilidade de que os rumores tenham alguma legitimidade.
O terceiro vídeo, “A TRAMA DIABÓLICA DO ZIKA VÍRUS” [8], também se apoia na religião como um argumento central para legitimar a disseminação de narrativas alternativas sobre a epidemia. Publicado no canal de Jefferson Netto em 4 de fevereiro, o vídeo é uma gravação por celular feita pelo autor enquanto conduzia “no frio dos Estados Unidos” . Além de informar que está em outro país, Netto apresenta-se como doutor a descrição do vídeo informa que o autor é “Psicanalista clínico, com especialização em psicanalise [sic] familiar e didática, e doutor em filosofia da religião” . Além disso, conta que decidiu gravar o vídeo com caráter de urgência, pois tem uma missão “no que diz respeito a questões proféticas” . A partir de uma incumbência divina, o homem diz que vigia o que está a acontecer à sua volta e que tem necessidade de trazer informações sobre coisas que “estão caminhando de uma forma muito rápida” . Em seguida, explica que ouviu uma entrevista alarmante no canal norte-americano InfoWars (apresentado pelo ativista de extrema-direita Alex Jones, cujo conteúdo foi suspenso em agosto de 2018 das plataformas Youtube, Apple, Facebook, Spotify e Twitter) (Ximénez de Sandoval, 2018). O entrevistado, apresentado como doutor Francis Boyle, supostamente especialista em direito internacional formado na Universidade de Harvard e considerado “top nos Estados Unidos” , alertara sobre a relação entre a epidemia e os mosquitos geneticamente modificados.
O autor do vídeo também contrapõe o discurso governamental e mediático à “verdade” revelada pelo norte-americano. “A Rede Globo está chamando de mosquito do bem, mas o doutor Francis adverte que não se sabe as consequências” . Para reforçar a legitimidade de sua fonte, pede que o público pesquise no Google quais são as credenciais de Francis Boyle. Desta forma, implicitamente reitera a responsabilidade individual de cada um em procurar as informações disponíveis para avaliar os riscos de acreditar ou não em discursos oficiais. Como brasileiro que teve a oportunidade de entrar em contato direto com fontes do exterior, Netto apresenta-se como alguém disposto a partilhar o seu privilégio: “provavelmente é a primeira vez que você está ouvindo isso na língua portuguesa. (…) Não confie no que a mídia brasileira e no que o governo brasileiro está [sic] dizendo” . Por outro lado, se o currículo do norte-americano (embora não tenha nenhuma relação pesquisas científicas em saúde) é suficiente para lhe dar credibilidade, o argumento que garante a autoridade de Netto, mais uma vez, é divino. O autor encerra o vídeo reiterando que o que chamou a sua atenção para o assunto foi a Bíblia, mais especificamente nas descrições sobre o apocalipse.
As três narrativas analisadas apresentam algumas caraterísticas em comum. Todas são pautadas, em alguma medida, para a temporalização da eu-pistemologia: diante da falta de evidências concretas para as afirmações apresentadas, apostam nas experiências pessoais (“prever” complicações relativas à manipulação genética de mosquitos, repassar histórias que alguém “ouviu falar” , receber a “iluminação” divina que conduz à verdade) dos seus autores. Além de afirmar que o governo brasileiro mentiu em relação à epidemia, os média “tradicionais” são, com frequência, apontados como agentes na “conspiração” que contribuiu para a situação. Enquanto isso, as plataformas de rede social são assinaladas como espaços em que narrativas supostamente silenciadas por ambas as instâncias encontram espaço como lembra o autor do segundo vídeo, “as redes sociais a qualquer momento estouram com essa notícia” .
Não por acaso, os vídeos são ancorados no mesmo presentismo (Barbosa, 2017) que caracteriza os regimes temporais mediatizados por plataformas digitais. O autor do vídeo 1 recupera vídeos antigos para reconstruir a narrativa presente, manipulando o passado para estabelecer a coerência de sua explicação. Enquanto isso, a ansiedade em relação ao futuro e a necessidade de debater suas ameaças no presente são reforçadas por todas as produções. Termos como “preparem-se” , “a qualquer momento” e “de uma forma muito rápida” enfatizam o caráter de urgência e de imprevisibilidade atrelados à doença. Mais do que buscar uma solução para o problema, os seus autores desejam apontar culpados notadamente o governo brasileiro e os média e valorizar a religião (caso dos vídeos 2 e 3) como rota alternativa de confiabilidade em meio ao caos. Dessa forma, nesse eterno presente (Sodré, 2007) embaralham-se diferentes temporalidades, em especial o tempo da ciência com o das redes sociais e da sociedade mediatizada. Embora a experiência com mosquitos modificados ainda seja recente demais para oferecer resultados do ponto de vista científico, o suposto risco potencial é antecipado e “presentificado” , de certa forma liquefazendo os elos entre os acontecimentos passados e futuros (Bauman, 2007). A narrativa construída está alicerçada no discurso do risco e na temporalidade mítica do apocalipse bíblico, a partir da recuperação de fragmentos específicos da memória rizomática da rede.
Considerações finais
Considerando-se o que assinala Bernardo da Costa (2014), a partir do pensamento de Eduardo Viveiros de Castro (2011), podemos observar que as conceções “imaginárias” também podem gozar de legitimidade, desde que consigam estabelecer suas próprias redes de sustentação, e, talvez ainda mais importante, causar efeitos reais. Tomemos um dos boatos analisados nesse estudo, sobre a distribuição de uma vacina vencida ou estragada contra rubéola. É possível notar que, por mais que as autoridades, embasadas nos rígidos testes de qualidade, destacassem a segurança do imunizante, o boato instigou uma série de ações e provocou efeitos reais. Dessa forma, constitui-se como importante elemento do processo de produção social dos sentidos acerca do episódio (Cardoso, 2012; Rosenberg, 1992). Podemos perceber que, por mais que a ciência e algumas instituições de pesquisa gozem de credibilidade entre a população, outros atores humanos e não-humanos participaram (e participam) da construção social da(s) epidemia(s), como grupos de Whatsapp, canais do Youtube, relatos históricos de epidemias passadas, relatos bíblicos, memórias pessoais sobre a dengue e o A. aegypti, páginas de grupos antivacina, entre outros. Eles levam outros atores à ação, têm efeitos e consequências reais, a despeito do que a ciência contemporânea venha a dizer sobre eles.
Situações críticas como a epidemia de Zika afloram o sentimento ambíguo descrito por Santos (1998) sobre a relação entre a sociedade e a ciência no século XXI. Num contexto de mediatização acelerada e num ambiente comunicacional imediatista, a informação é produzida, circula e é consumida num fluxo ininterrupto que impede a pausa necessária para a reflexão (Barbosa, 2017; Sodré, 2007), criando uma experiência desintegrada do tempo (Bauman, 2007; Maffesoli, 2003). Observamos a facilidade de reconstruir as misérias do passado no presente e de debater projeções de um futuro potencialmente arruinado pela microcefalia. Isso somado ao desalojar dos cientistas de seu papel de portadores de um saber estabelecido, evidencia a participação de diversos atores sociais na instalação do tempo-risco e do tempo-incerteza. De certa forma, os dados científicos perdem protagonismo diante de mitos, crenças medos e experiências (Fairclough, 2001; Pereira et al., 2013) que acionam os múltiplos riscos existentes nessa sociedade acelerada e mediatizada.
A análise do episódio proposta no artigo também mostra que a ciência, pressionada, procurou acelerar seus processos, inventar atalhos para dar respostas mais ágeis, sem abandonar o rigor e a temporalidade necessária para configrar-se ainda como ciência. A doença, porém, propagou-se como fenómeno comunicacional, muito além de sua abrangência biológica e muito mais veloz do que o tempo científico. Os silêncios e incertezas (Orlandi, 2005) que se multiplicavam foram, então, preenchidos por boatos e especulações.
Ao evitar responsabilizar-se pelos conteúdos disseminados pelos seus usuários, o YouTube configura-se como um ator não-humano central para o fortalecimento de um tempo-rede de discursos pautados sobretudo na “eu-pistemologia” (Van Zoonen, 2012) e reforçados pela retórica da experiência (Sacramento & Machado, 2015). Mesmo que não tenham provas que sustentem a disseminação dos boatos que repercutem, os autores dos vídeos analisados neste trabalho recorrem ao repertório pessoal para justificar suas reivindicações da “verdade” sobre o víus Zika em contraponto ao discurso oficial, seja pela sua capacidade de prever os riscos (subitamente urgentes) antes de todos (como pontua o youtuber que se vangloria por ter “guardado” um vídeo sobre mosquitos transgênicos), seja pelo “chamado divino” que receberam para revelar tal “segredo” .
Embora não tenhamos pretendido mapear o processo de construção social do conhecimento que se deu em torno do Zika, buscamos contribuir com observações sobre ao menos uma faceta desse episódio, as tensões oriundas das divergências entre o tempo necessário para o processo de produção de conhecimento científico e as expectativas da população por respostas. Além da influência sobre o episódio da epidemia em si, outro aspecto no chamou a atenção durante a análise dos vídeos escolhidos: a possibilidade que as teorias conspiratórias relacionadas com a saúde, num quadro de instantaniedade temporal absoluta, tenham papel importante no fortalecimento de redes mais amplas vinculadas à extrema-direita, tal qual verificado por Rebecca Lewis (2018) em relatório sobre youtubers de língua inglesa. Trata-se de um desdobramento a ser analisado em trabalhos futuros.
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Nota biográfica
Simone Evangelista Cunha é jornalista pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFF), mestre e doutoranda em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Investigadora do Laboratório de Pesquisa em Culturas Urbanas e Tecnologias da Comunicação (LabCult/UFF) e do Laboratório de Experiências de Engajamento e Transformações da Audiência (LEETA/UFF).
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5457-5737
Email: simone.evangelistacunha@gmail.com
Morada: R. Alexandre Moura, 8 - São Domingos, Niterói RJ, Brasil
Marcelo Garcia é jornalista, mestre em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnologia em Saúde (ICICT/Fiocruz) e investigador do consórcio ZIKAlliance.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6183-2343
Email: marcelo.garcia@icict.fiocruz.br
Morada: Av. Brasil, 4365, Rio de Janeiro - Brazil - 21040900
* Submetido: 02/08/2018
* Aceite: 13/11/2018
A realização desse artigo recebeu apoio do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD, em alemão), com financiamento do Ministério da Educação e Pesquisa da Alemanha através do projeto “Culturas Literárias do Sul Global” .
Notas
[1] A expressão, como explica Latour (2000), é usada em cibernética para representar uma máquina ou um conjunto de comandos complexos, que passam a ser representados por uma caixinha preta, a respeito da qual só é preciso saber o que nela entra e o que dela sai, por mais controvertida que seja sua história ou por mais complexo que seja seu funcionamento. Após a estabilização, o processo social de construção da caixa-preta se torna invisível.
[2] Retirado de http://www.who.int/mediacentre/news/statements/2016/emergency-committee-zika-microcephaly/en/
[3] Governo vai investir R$ 649 mi no enfrentamento a Zika e Aedes aegypti. Retirado de http://www.brasil.gov.br/noticias/saude/2016/03/enfrentamento-do-zika-e-do-aedes-vai-contar-com-r-649-mi-1
[4] Os resultados de todo esse esforço se refletiram na identificação pioneira da relação entre o Zika e a microcefalia foi feita no Brasil, logo no início da epidemia. Em janeiro, a Fiocruz anunciou a criação de um kit diagnóstico de Zika, Chikungunya e dengue, para tentar superar a grande dificuldade de diferenciação entre as três doenças, de sintomatologia semelhante. Mas os esforços aceleração do tempo da ciência têm limite: as pesquisas para criação de uma vacina seguem longe de trazer resultados efetivos, mesmo três anos depois da epidemia.
[5] O uso de letras maiúsculas no título do vídeo obedece à publicação original e foi mantido neste artigo para ressaltar a estratégia de visibilidade utilizada por seu autor. Embora seja uma prática relativamente comum no YouTube, o uso de letras maiúsculas em textos também pode ser compreendido, no contexto de práticas de comunicação digital, como um grito. Neste sentido, reforça o sentido de urgência que seu autor deseja transmitir.
[6] O vídeo está disponível em https://www.youtube.com/watch?v=TkLxhwo44Ag
[7] O vídeo está disponível em https://www.youtube.com/watch?v=pGB7JOMei1U
[8] O vídeo está disponível em https://www.youtube.com/watch?v=uV7FTt2VtIs