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Revista Lusófona de Estudos Culturais (RLEC)/Lusophone Journal of Cultural Studies (LJCS)

versão impressa ISSN 2184-0458versão On-line ISSN 2183-0886

RLEC/LJCS vol.8 no.1 Braga jun. 2021  Epub 01-Maio-2023

https://doi.org/10.21814/rlec.3209 

Artigo Temático

Espaço Inventário, Espaço Inventado

Frederico Augusto Vianna de Assis Pessoa1 
http://orcid.org/0000-0002-2856-6132

1Departamento de Comunicação Social, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil


Resumo

Este artigo aborda a experiência de construção de territórios de escuta na cidade de Belmonte (Brasil), e discute como a escuta pode ser uma forma de conhecimento do mundo que parte do sensorial e nele mergulha intensamente, para trazer à tona insights que podem nortear compreensões sobre um objeto em diversos aspectos, no caso da cidade, desde sua estrutura urbana até as relações entre pessoas que a habitam. O texto propõe um ensaio em que os diários de viagem dialogam com a abertura para as sensações provocadas pelas paisagens sonoras e suas características reticulares onde o afeto, a convivência, as diferenças, as relações entre seres humanos e não-humanos, as geografias do poder econômico, as diferentes subjetividades, e a multiplicidade que caracteriza uma cidade se manifestam. O texto parte do princípio de que escutar é estar atento ao movimento dinâmico do mundo e à efemeridade dos acontecimentos e entrelaçamentos que nele ocorrem para traduzir o que nos afeta em palavras. Embora se centre em uma abordagem pela escuta, o ensaio reflete sobre a impossibilidade de separação entre os sentidos na percepção e sua atuação contínua nas relações seres humanos-mundo, constituindo não só subjetividades e idiossincrasias individuais, mas também perspectivas compartilháveis sobre o ser e estar no espaço comum.

Palavras-chave: cartografia sonora; cidade; escuta; etnografia sonora; sensório

Abstract

This article addresses the engendering of listening territories in the town of Belmonte (Brazil) and discusses how listening can be about a way of knowing the world which starts in the senses and dives into it deeply and intensely to bring to light insights that can guide our perceptions of an object in various aspects. Regarding a city, those aspects can go from its urban structure to the relationships between people who inhabit it. The text proposes an essay in which travelogues engage in dialogue with the openness to the sensations caused by the soundscapes and their reticular characteristics where affection, coexistence, differences, the relations between human and non-human beings, the geographies of economic power, different subjectivities and the multiplicity that characterises a city are manifested. It presupposes that to listen is to be attentive to the dynamic movement of the world and the ephemerality of the events and interweav ings that occur in it to translate what affects us into words. Although the essay focuses on an approach to listening, it acknowledges the impossibility of separating the five senses in perception and their continuous action in the relations between human beings and the world, thus forming not only individual subjectivities and idiosyncrasies, but also shareable perspectives on being and acting in the shared space.

Keywords: city; listening; sound cartography; sound ethnography; sensory

Assim começa o espaço, somente com palavras, com signos traçados sobre a página branca. Descrever o espaço: nomeá-lo, traçá-lo, como os desenhistas de portulanos que saturavam as costas com nomes de portos, nomes de cabos, nomes de enseadas, até que a terra só se separava do mar por uma linha contínua de texto. (Perec, 1974/2001, p. 33)

Este texto poderia começar assim: ao andarmos pelas ruas de Belmonte, não podemos deixar de observar a maravilhosa arquitetura do início do século XX, nos casarios que coloram a avenida Dom Pedro II de ponta a ponta. Pessoas nas portas das casas observam o passar lento do tempo enquanto crianças brincam nas calçadas e bicicletas trafegam ao sabor do vento. A cidade teve sua fase áurea, no final do século XIX, devido à grande produção de cacau, naquele momento sua principal commodity e sustento de seus habitantes. Uma de suas principais avenidas, a Rio Mar, atravessa a cidade transversalmente, aproximando as duas fontes de água que definem os modos de vida dos que a habitam - o rio Jequitinhonha e o oceano Atlântico.

Em uma conexão com os inúmeros relatos de viagem de séculos passados, poderíamos começar com este diário de viagem sobre Belmonte, cidade localizada no sul da Bahia, onde passei 20 dias com o intuito de deixar uma metrópole e me refugiar da covid-19, com minha família, em um local em que a natureza se manifestasse de forma mais próxima e intensa. Resido em uma cidade com 2.500.000 de pessoas, Belo Horizonte, distante do mar, onde a natureza se restringe aos parques delimitados dentro do espaço urbano e poucas árvores que ainda sobrevivem à ânsia destruidora do “progresso” que marca seu percurso desde sua fundação, há cerca de 120 anos. Toda cidade con ta com uma paisagem sonora1 (Schafer, 1977/2001) múltipla e diversa, mas há aspectos que se tornam quase onipresentes, como o rumor do trânsito em Belo Horizonte.

Belmonte possui cerca de 25.000 habitantes e não tem prédios, no sentido atual, exceto o Fórum, que se destaca com sua arquitetura disruptiva em relação ao casario antigo que o circunda. É uma cidade litorânea, próxima a Santa Cruz de Cabrália, que foi fundada, como município, em 1764 e, embora tenha tido um período áureo devido à produção do cacau, como dissemos, manteve as dimensões e ritmos de vila, ou talvez os tenha retomado em algum momento de sua história e se acostumado a eles. À distância, os sons do mar seriam, para um estrangeiro desavisado como eu, os sons essenciais de Belmonte.

Há muito as grandes cidades nos têm mostrado as facetas negativas das formas de vida que temos construído nelas, seja por escolhas individuais, seja por escolhas do poder público em ações de reconfiguração ou manutenção do espaço comum que não atendem a demandas básicas de convivência e compartilhamento a que uma cidade deveria atender2. Com o advento da pandemia resultante da covid-19 e o imperativo de permanecermos em isolamento, a cidade se tornou ainda mais inóspita. A necessidade de deixar as metrópoles em busca de cidades menores ou áreas mais próximas da natureza se tornou premente para muitos. Me incluo dentre os que não puderam permanecer em uma outra localidade durante a pandemia, mas que buscaram, de todas as formas, uma saída temporária que permitisse viver, mesmo que por pouco tempo, outros modos de vida.

Deixando para trás os sons intensos das locomotivas da empresa Vale que transitam dia e noite sob as janelas de meu apartamento, bem como o rumor contínuo dos veículos que cresce exponencialmente na cidade, partimos, eu e minha família, para Belmonte, cidade que não conhecíamos e que encontraríamos com ouvidos frescos para as sonoridades que a constituem. Assim, a partir de minha vivência como artista sonoro e pesquisador, gostaria de abordar, neste ensaio, nossa viagem a Belmonte e o desenho de um mapa sonoro da cidade que pude construir através de minha escuta estrangeira - um território de escuta3 que fui aos poucos habitando enquanto ali permanecemos.

Por uma Escrita que tem Como “Método” a Escuta

Como traduzir a escuta em palavras? Como transformar a experiência localizada no tempo e no espaço, irrepetível, multifacetada e subjetiva em texto? Ciente de que a forma escrita não é capaz de apreender o fenômeno efêmero, fugidio e fluido que são os sons, o ensaio que se segue busca, através da tessitura das palavras e frases, com seus ritmos, cadências, tons e articulações sonoras, roçar e fazer vibrar nossos ouvidos -afinal, as palavras são também sons. Escutar é estar imerso no mundo como ser sensiente, e não há como falar da escuta sem tentar recuperar essa imersão (Feld, 2017; Schulze, 2018; Voegelin, 2010). Portanto, buscamos trazer a intricada multiplicidade do mundo com suas cores, formas, cheiros, movimentos e sabores, sua diversidade sensorial irre- dutível, sendo a escuta nosso fio condutor.

A tentativa de aproximação com a literatura se torna parte da metodologia do ensaio, como forma de abarcar a vida e nosso estar no mundo, um modo que é sobretudo estético, já que a literatura é um outro modo de usar as palavras. Busca-se um diálogo entre a construção literária e sensorial e a reflexão racional sobre o que a experiência do mundo, mediada pela escuta, nos traz sobre uma cidade.

Este texto se estrutura de forma a tentar mapear o itinerário das sensações e pensa- mentos que compõe um território de escuta e procura deslindar os fios e as tramas que envolvem sua construção. Um território de escuta é a articulação de uma multiplicidade de sensações, experiências, memórias, saberes e sentidos que atravessam aquele que escuta - um lugar epistemológico que se habita com os ouvidos, mas que os ultrapassa. Este lugar que constituímos a partir de nossas percepções, de nossa reflexão, de nossas histórias e vivências anteriores, bem como dos diversos atravessamentos por que somos tomados neste processo de abrir os ouvidos para o mundo, reflete todo um percurso pessoal e se mostra em constante transformação, sob a ação dessas mesmas forças.

Cada seção deste ensaio aborda aspectos dos atravessamentos provocados pela escuta da cidade brasileira de Belmonte durante nossa viagem: a natureza/o fazer humano; o comum/o privado; a política/a subjetividade; o distanciamento/a imersão; o movimento/o estático. Embora apontemos aqui esta série de pares para ilustrar o percurso, não os pensamos como dicotomias, mas como uma mescla, em que estes elementos - e outros tantos a eles conexos - se diluem, se integram em uma tessitura que, ao final, apresenta micro-leituras de aspectos da vida comum em uma cidade que deixam transparecer sonoramente a complexidade destas relações.

Natura Naturans Natura Naturata

Às vezes, numa manhã de verão, após o banho de praxe, do amanhecer ao entardecer sentava-me na ensolarada soleira, absorto num devaneio, em meio aos pinheiros, nogueiras e sumagres, em completa solidão e serenidade, enquanto os pássaros ao redor cantavam ou esvoaçavam silenciosos através da casa. (Thoureau, 1854/2007, p. 47)

A viagem a Belmonte iniciava-se como uma busca pela proximidade com a natureza e o abandono, mesmo que temporário, da vida enclausurada dentro de um apartamento em uma cidade. Embora fôssemos estrangeiros e, de certa forma, turistas, fica ríamos em uma casa emprestada, com um amplo jardim e muitas plantas: manga rosa, manga ubá, manga espada, pitanga, biri biri, coco, mangaba, bromélias, hibiscos, várias plantas ornamentais. Assim, não estaríamos presos ao circuito turístico propriamente dito e poderíamos construir uma relação mais próxima, ao menos esperávamos, com o lugar que visitávamos.

Logo na primeira manhã, ainda muito cedo, pudemos ouvir uma infinidade de cantos de pássaros que estabeleciam seus diálogos nas árvores do jardim, e vinham comer frutas que ali havia. Suas asas, com diferentes conformações, tamanhos e cores, produziam sons que se integravam aos cantos e as suas partidas e pousos nas árvores. Bem-te-vis, quero-queros, cardeais, rolinhas, beija-flores, anus e mais outras tantas espécies eram frequentes naquele espaço. Havia uma interação complexa entre os sons de cada linhagem que pareciam se completar em uma composição contrapontística com múltiplas linhas melódicas, ritmos e timbres diversos. Ao longo do dia, pude ouvir sua presença mais esparsa, através dos cantos emitidos aqui e ali no jardim. Além dos pássaros, outros sons foram aos poucos imiscuindo-se nessa paisagem sonora, ampliando a complexidade timbrística que vibrava naquele espaço. Moscas, mosquitos, pernilon gos, diferentes tipos de abelhas, vespas, besouros, grilos e cigarras. Gatos - silenciosos a maior parte do tempo -, e morcegos durante a noite.

Os sons nos envolvem, nos tocam, nos fazem vibrar juntamente com eles, nos afetam, provocam sensações e sentimentos e nos fazem pensar. Ao escutarmos as sonoridades do mundo tecemos redes de sentido que nos abarcam. Nessa experiência, estão incluídas sensações, emoções, memória, imaginação, razão, percepção estética, espaço, coletividade e linguagem:

ouvimos através de nossos músculos, nervos e tendões. Nosso corpo-caixa, estirado fortemente, é coberto, da cabeça aos pés, por um tímpano. (…) Mergulhado, afogado, submerso, jogado de um lado para o outro, perdido em infinitas repercussões e reverberações e entendendo-as através do corpo. (Serres, 2008, p. 141)

Mas os animais não eram os únicos a emitir sons no jardim. Havia a sonoridade constante do vento nas diferentes folhas de árvores e arbustos. Sua intensidade maior era percebida após o pôr do sol, começando como uma brisa que balançava sutilmente as folhas, até chegar, em alguns dias, a um vento forte que ampliava a diversidade de sons que sua fricção com as plantas produzia. O vento provocava a queda de frutas maduras, principalmente mangas e mangabas. A queda de cada manga era precedida do rompimento do galho em que estava, com um estalo agudo, e logo em seguida se ouvia seu baque no chão - cada baque parecia único, distinto sonoramente: havia o material sobre o qual caiam - areia, terra, grama, cimento, madeira, raízes de outras árvores, folhas secas-, seu peso, e se estavam inteiras ou parcialmente comidas pelos pássaros. O farfalhar, o crepitar, o estalar, o trinar, o chilrear, o arrulhar, o pipilar, o gorjear, o ciciar, o estrilar, o piar, o estalido, o baque, o zumbido, o rumor, o murmúrio. Essa sublime polifonia ressoava em nossos corpos e fazia-nos sentirmos em co-habitação com os seres não-humanos de uma forma que nossa cidade, Belo Horizonte, não permitia.

Passávamos horas no jardim, fazendo nossas refeições em uma mesa de madeira improvisada, sob uma mangueira, conversando, balançando na rede que se pendurava entre duas árvores, brincando com nosso filho de 6 anos que explorava cada canto e descobria ínfimos eventos e seus micro-sons: as moscas-de-fruta, formigas, besouros e outros insetos que consumiam em frenesi as frutas caídas, os caracóis “gigantes” que saíam com o crepúsculo e se espalhavam pelo quintal em movimentos lentos, os morcegos que ora voavam rentes a nossas cabeças e ora sumiam na noite para além dos muros, com seus sutis e curtos ruídos de localização, as lagartas verdes que se deslocavam rapidamente e se camuflavam junto aos biri biris. Havia vida, havia sons e havia silêncio4.

A sonoridade materializava ali, naquele espaço, uma experiência antecipada de imersão e de contato com outros seres, de abertura e de amplidão em que coubessem inúmeras formas de existência, e a sinalização de um modo de vida urbano em que não nos sentíamos tão distantes de outros ecossistemas. Se afirmava sonoramente a necessidade de transformar nosso entorno urbano de origem - a metrópole - de maneira a permitir que nossos corpos venham a se sentir em sintonia com o que nos envolve, reduzindo o distanciamento e a mediação. Como nos diz Ailton Krenak (2019): “fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra” (p. 14).

Ao mesmo tempo, a consciência de estarmos em um jardim nos questionava a ideia de natureza que vibrava em nossos corpos-tímpano. O jardim é a figura por excelência da natureza construída pela técnica e tecnologia humanas, parte da concepção da ideia de paisagem (Cauquelin, 2000/2007), da moldura que circunda e define o espaço a ser percebido onde se pode cultivar e administrar, gerir a natureza - e com isso, par te de suas sonoridades. Uma natureza inventada (von Hardenberg, 2013), que permite a imersão e a convivência com seres de outras espécies e filos, com a tranquilidade de se estar duplamente em casa. Os sons-da-cidade, embora de baixa intensidade em sua maioria e parcialmente bloqueados pelas árvores e outras plantas do próprio jardim, nos chegavam esporadicamente e nos territorializavam em Belmonte: motocicletas nas ruas do entorno, sons de passos no beco, vozes que caminhavam nas proximidades, entre outros ruídos que nos retiravam da experiência idílica e nos aterravam.

Para meu olhar estrangeiro, havia duas avenidas principais em Belmonte que estavam conectadas à geografia encontrada pelos que ali se instalaram há mais de 300 anos: a avenida Beira Rio e a avenida Rio Mar. A primeira trafegava ao longo do Rio Jequitinhonha e a segunda conectava a primeira à praia. A cidade, com suas casas, comércio, pessoas, bicicletas e praças, se concentra próxima ao rio - acesso fluvial que provavelmente facilitou o movimento inicial de pessoas e materiais para o vilarejo e dele para outros locais. Logo compreendemos que o pôr do sol acontecia na beira do Jequitinhonha, e passámos diversos fins de tarde ouvindo os barcos trafegarem pelo rio e os pássaros ocuparem as árvores próximas com sua melodias, enquanto o céu ficava vermelho e a noite chegava.

Os motores movimentavam pequenas embarcações que levavam turistas que queriam conhecer o rio, os manguezais e fazer a travessia para a cidade vizinha, Canavieiras. A avenida tinha um canteiro central, com árvores, bancos e mesas, onde as pessoas podiam ficar enquanto acompanhavam o movimento lento descendente do sol e o transversal dos barcos. Havia automóveis que trafegavam preguiçosamente, com casais ou famílias que acompanhavam a natureza através da moldura da janela, em movimento: “um dos efeitos das tecnologias de mobilidade é transformar a natureza da visão [criando] um panorama em passagem rápida, uma sensação de pressa multidimensional e a interconexão fluida de lugares, pessoas e possibilidades” (Urry, 2001, p. 4). Essas tecnologias são também formas de isolamento sonoro (Labelle, 2010), compostas por mate- riais acústicos e acrescidas de benesses que permitem a exclusão dos sons do mundo externo e a criação de uma cápsula acústica que atravessa o espaço como se nele não estivesse. No caso dos turistas em Belmonte, quase sempre havia abertura para uma curta parada e um rápido flash, mas, provavelmente, nenhuma pausa para a escuta...

Na avenida Beira Rio manifestava-se novamente a interação dominadora homem/ natureza na busca de domesticação e reconstrução do espaço para torná-lo humano e prover o deleite ao transeunte - local ou estrangeiro -, mas mesclando, mesmo que desavisadamente, os sons do mundo contemporâneo urbano, em escala reduzida em relação às metrópoles, aos sons dos seres não-humanos que já habitavam o lugar antes de sua chegada e os que passaram a habitá-lo a partir de sua intervenção.

Ao seguirmos a avenida Rio Mar chegamos à Praia do Mar Moreno. Não há “barracas” em Belmonte, apenas um bar no final da avenida. Na areia, há ruínas de casas que foram parcialmente levadas pelo mar, assim como casas que provavelmente terão o mesmo destino daqui a uma década. Do bar, no final do dia e durante os fins de semana, vem uma trilha sonora constante e intensa -noutros dias e horários não há música. Caminhando-se 50 m para a direita ou para a esquerda, os sons do bar vão se apagando e os do mar crescem e dominam a paisagem sonora. As ondas quebram forte na parte da tarde, com estrondos repetidos, cíclicos. As espumas crepitam se esticando pela areia que aos poucos vai sendo invadida até que quase toda a faixa seja tomada pela água quando o sol está se pondo. Vendo os caranguejos maria-farinha quase podemos ouvir os sons de suas patas velozes em fuga na areia, assim como o dos tatuís sumindo em seus buracos no ritmo dos ciclos das ondas. Nossos pés afundam na areia fofa e seca e ora na areia molhada pelo mar, sonorizando nossos passos com sua fricção contra os grãos duros. Pisamos em conchas espalhadas nas bordas da areia molhada e algumas se quebram sob nossos pés, com um estalido característico. O vento balança folhas de coqueiro e suas vibrações agudas participam da composição da paisagem sonora praiana que ouvimos. Entrar no mar é mergulhar em variações de tons que diferenciam este ambiente da terra firme. As ondas se formando com seu grunhido único, a espuma ao quebrar das ondas com seu chiado crescente e que se torna mais e mais agudo até desaparecer, em um filtro temporal e natural de frequências. O mergulho que isola os sons externos e nos cerca em um vibrar de águas, onde os sons de nossos corpos se destacam e nos despertam para seu clamor contínuo. Uma espécie de retorno momen tâneo à origem quando boiávamos encapsulados no útero e os diversos timbres que nos chegavam eram filtrados e os sons de nossos corpos se mesclavam aos de outros seres num mundo ainda sem diferenciação entre o interior e o exterior em um ritmo fluido e sem pausas.

Escutar é um modo de se aproximar do mundo, uma busca de compreensão a partir do que se ouve e à procura de constituir uma relação com o percebido que ressalta a consciência de estarmos sempre no mundo, em convivência com os fenômenos. Não é apenas um modo de recepção, mas um método de exploração em que o que escutamos é descoberto, não apenas recebido (Voegelin, 2010). Em nossa cultura, o aspecto visual da experiência vem sendo enfatizado há muitos séculos e é reforçado na linguagem, com metáforas visuais que penetram diversos campos de saberes, ou no próprio pensamento conceitual e na valorização do olhar em detrimento das outras formas de percepção, cultivando certo visualismo (Ihde, 2007) que tem dominado nossas afetações pelas coisas do mundo e os sentidos que construímos a partir dessas afetações.

Deslocar a percepção em direção à escuta é uma forma de ampliar nosso modo de receber as coisas do mundo e pensar sobre elas (a escuta não exclui a visualidade, nem qualquer outro sentido, já que a eles se soma no todo que é nossa percepção, mesmo que não tenhamos consciência disso). Feld (2017) propõe um deslocamento epistemológico através do conceito de acustemologia:

a acustemologia (…) questiona como a fisicalidade do som está tão instantaneamente e forçosamente presente na experiência e em quem experiencia, nos objetos da interpretação e nas interpretações. (...) Envolve a acústica no plano do audível - akoustos - para inquirir o sonoro como simultaneamente social e material, um nexo experiencial de sensações sônicas. (p. 84)

O fluxo da escuta, em seu contínuo desenrolar e em suas características rítmicas e temporais, solicita uma outra escrita, também aberta e fluida, que dê conta do movimento das sensações, para além do movimento do pensamento - e abra espaço para a pessoalidade das percepções -, neste caso em particular, sob a forma de um diário de viagem acustemológico: “o centro de qualquer escrita, pesquisa ou teorização sobre o som (é) desvelar o impacto sensorial e imaginário de um specimen de organização sonora - em uma situação característica, culturalmente e historicamente contextualizada” (Schulze, 2019, p. 12).

O jardim, o rio e a praia são três formas de encontro entre a natureza e o urbano na cidade brasileira de Belmonte, as quais se manifestam fortemente através dos sons que as constituem. Estas formas e suas sonoridades se destacaram para minha percepção e vivência estrangeiras e me remeteram aos jardins, aos rios e aos parques em minha cidade natal que, por não ser litorânea, não conta com o mar e as praias. Cada um destes três lugares revela um modo de articulação entre o humano e o natural e também um modo de uso e distribuição do espaço urbano.

Os jardins, além de serem espaços construídos onde a natureza inventada habita, são espaços que demarcam estratos sociais específicos. Pertencem a casas antigas, cujos lotes ocupam meio quarteirão ou mais, talvez com cerca de 1.000 m2. No centro histórico, várias casas semelhantes pontuavam as avenidas antigas. Propriedades particulares reformadas, identificadas com placas de tombamento, cujos jardins estão protegidos por muros altos. Os lotes amplos e as casas do início do século XX denotam uma origem no ciclo do cacau, no final do século XIX, quando a cidade floresceu, mas que se mantêm, sempre renovados, na estrutura da desigualdade social hodierna - com os ciclos financeiros e mercadológicos. Convivendo com estes lotes amplos e casas espaçosas, há inúmeras construções pequenas, apertadas tanto nas bordas do centro histórico quanto nas áreas mais distantes da cidade, onde boa parte da população reside, sem acesso a natureza privada e à paisagem sonora que os jardins fornecem:

o capitalismo diferencia (…) convertendo o princípio da opção de mercado num mecanismo para diferenciação grupal. (…) As divisões como aquelas entre cidades e subúrbios, entre regiões (...) são produzidas ativamente por meio dos poderes diferenciadores da acumulação do capital e das estruturas de mercado. (Harvey, 2001/2005, p. 208)

A avenida à beira do Rio Jequitinhonha se revelou ao meu entendimento como um espaço voltado para os turistas, originários das proximidades ou de cidades distantes. O desenho do espaço era o das vistas, com uma mureta ao longo de toda a margem do rio, bem como canteiro com bancos de madeira e mesas, para a apreciação da paisagem e, em nosso caso, para a escuta dos diversos sons que a constituíam. A avenida estava quase o tempo todo vazia, com poucos carros transitando por sua extensão e registrando em fotografias a vista: o turista “consome o exotismo, a areia, o mar, e as paisagens (…) mas ele se sente em casa mesmo quando está noutro lugar (…) e se organiza para reduzir os outros a uma imagem (Augé, 2007/2010, pp. 74-75).

A praia nos pareceu o local da natureza democrática, aberta à população local, aos possíveis turistas, às famílias de classe alta ou baixa. A maior parte do tempo, as praias estavam vazias durante o período em que estivemos ali, exceto pelos fins de semana e feriados. Nestes dias, famílias, jovens, crianças, casais de todas as idades, ocupavam a praia democraticamente, trazendo seus jogos, brinquedos, suas comidas, suas cadeiras, pequenos aparelhos de difusão sonora (celulares, caixas de som) e os sons de seus corpos, suas vozes. A ausência de barracas comerciais ampliava a mistura e fortalecia uma ocupação igualitária do espaço.

Assim, observa-se que os espaços sonoros são constituídos através da interação entre elementos díspares e, a partir de uma escuta sensível, podem nos permitir uma compreensão sobre as ações e relações estabelecidas entre seres humanos e com seres não-humanos, formas de organização social, distribuição de riqueza e estrutura urbana, bem como o ritmo e a disposição espacial destas articulações. Nossa percepção, desde que aberta ao que nos chega, é inundada pelas diferentes sonoridades que compõem os espaços pelos quais circulamos e a partir deste sensório, construímos sentidos que articulam o percebido a nossos momentos individuais, históricos, sociais e culturais - constituímos territórios de escuta. Denomino esta dimensão sonora do mundo, bem como o modo com que nos afeta e o que produzimos a partir de sua afetação, de território de escuta - este implica a atuação do sujeito, de seu corpo e pensamento na constituição de sua escuta do mundo e com isso, a abertura para compreender o que o cerca a partir destas afetações e de seus atravessamentos múltiplos: conceituais, históricos, políticos e afetivos.

Comunidade Acústica

Diariamente, entre 7 e 8 horas da manhã, podíamos ouvir o vendedor de peixe circulando pela cidade, ao longe, ora à direita da casa, ora à esquerda, até que ia se aproximando e o escutávamos novamente enquanto o víamos passar pelo beco, ao lado do trecho do jardim que “habitávamos” por mais tempo durante o dia. Seu canto era sempre “olha o peixe”, com um prolongamento enfático do ditongo, e algumas vezes acrescido da indicação das espécies pescadas, com boa intensidade, para que o som chegasse antes de ele alcançar quem o escutava. Como se movia de bicicleta, seu deslocamento sonoro era particularmente interessante: o ouvíamos desenhar o espaço de nosso entorno, marcando pontos de seu trajeto com seu canto, em movimentos rápidos que nos pareciam erráticos, labirínticos, mas talvez atendessem a alguma lógica que desconhecíamos.

Uma comunidade acústica (Truax, 1984) se define pelos sons que se espalham através de sua localização geográfica e são compartilhados pela escuta dos seus habitantes, sons que compõem uma paisagem sonora que caracteriza, mesmo que parcial- mente, aspectos da vida em comum para aquele grupo específico. Poderíamos dizer que se formam a partir de territórios de escuta compartilhados, acrescentando o aspecto subjetivo da percepção sonora e de atribuição de sentido na comunidade através de trocas sobre a experiência. Truax (1984) não delimita dimensões para uma comunidade acústica, dando uma elasticidade ao conceito que permite abordar desde um único espaço, como uma casa, até toda uma comunidade que é articulada por formas eletroacústicas de comunicação: “nossa definição de comunidade acústica significa que os sinais acústicos e deixas (sonoras) constantemente mantêm a comunidade em contato com o que acontece no dia a dia em seu interior” (p. 58).

Em certas horas e dias podíamos escutar a música que vinha de áreas vizinhas e ao caminhar pelas ruas nos deparávamos com formas compartilhadas de escuta musical que percebemos ser uma constante na cidade. Pessoas se sentavam na porta de suas casas, ao lado de caixas de som amplificadas, cuja extensão elétrica se estendia através da porta de entrada, e ouviam música em alto volume, sentados em cadeiras dispostas ao sol e compartilhando a escuta enquanto bebiam. A conversa era limitada pela intensidade da música, que não só alegrava os que ali estavam sentados, mas invadia as casas de todo um quarteirão à sua volta. O estilo principal que se ouvia nas ruas era o Arrocha, privilegiando compositores e compositoras baianos. Ao caminharmos por algumas vias, muitas vezes nossos ouvidos eram induzidos a realizar mashups curiosos das músicas que emanavam do entorno e se sobrepunham momentaneamente em sua disputa pelo espaço acústico.

As escolhas que fazemos de como nos manifestarmos sonoramente demarcam modos de nos expressarmos e de reivindicarmos o espaço comum. Os sons ampliam nosso território, expandem o espaço que nossos corpos ocupam e nos colocam em diálogo e/ou disputa com outros corpos, revelando a difusão pelas ondas sonoras do aspecto político de nossa existência. Muitas vezes a potência do som se associa ao poder e ao domínio do território, uma vez que “os sons mais intensos sempre estiveram associados às mais poderosas forças do mundo, seja no aspecto físico ou político do poder” (Truax, 1984, p. 113). Por outro lado, nossos sons são também marcas que deixamos no espaço compartilhado da comunidade acústica, marcas que nos afirmam como indivíduos dentro do grupo.

No final da avenida D. Pedro II, na beira do rio Jequitinhonha, localizava-se o Mercado Municipal. Imagino que em outros tempos foi um local movimentado e com suas bancas ocupadas. No entanto, atualmente, o mercado fica fechado e várias de suas bancas internas estão vazias e abandonadas, como se podia ver através das grades. Do lado de fora, voltado para uma pequena praça gramada, havia um bar no mercado. Diariamente as mesas na calçada ficavam ocupadas por homens bebendo e ouvindo as músicas que saiam das caixas de som do bar e preenchiam a praça em frente. As canções quase sempre falavam da mulher amada, da dor de cotovelo, dos homens traídos, do amor perdido, curiosamente trazendo a presença feminina para aquele ambiente de homens, mas um feminino circunscrito pelo afeto masculino… Próximo ao mercado há um pequeno trapiche oficialmente destinado aos pesqueiros, como identifica a placa à sua frente, onde barcos que fazem o transporte para Canavieiras e passeios pelo rio atracam. Imagino que os homens que passavam seus dias no bar, aguardavam visitantes para navegarem seus barcos e, enquanto isso não acontecia, passavam as tardes desocupadas ondulando ao som da música alta do bar e dos afetos que ela evocava.

A cidade é dividida em duas partes pela avenida 23 de Maio, continuação da BA 001 e porta de entrada de Belmonte. Para o noroeste, a parte histórica da cidade, para sudeste, a mais atual. Nesta avenida encontra-se quase todo o comércio: supermercados, açougues, padarias, lojas de roupa, de bicicleta, distribuidores de bebida, supermercados, hortifrutis, e outros tantos fornecedores de mercadorias. Caminhar por esta avenida é ter contato com o fluxo diário do movimento da cidade: inúmeras bicicletas estacionadas beirando as calçadas, pessoas circulando e dentro das lojas, carros, caminhões de entrega, triciclos disputam o espaço disponível. Aqui se espelha, em uma escala reduzida, a balbúrdia multisensorial das metrópoles, com suas marcas facilmente exportáveis: o excesso de placas, anúncios, faixas e sinais visuais, os roncos, estalidos, guinchos e rumores dos motores, o odor característico dos gases oriundos do petróleo, a textura, a impermeabilidade e o calor do asfalto sob os pés - esta é a única via asfal tada da cidade -, características da estrutura urbana que se dissolvem na rede global, onde os espaços se tornam cada vez mais homogêneos (Harvey, 2001/2005).

Escutar aspectos da comunidade - que incluem partilha, expressão de subjetividade no espaço comum, trocas, conexões afetivas e rupturas - permite-nos alcançar um entendimento sobre os modos de convivência e de compartilhamento do espaço da cidade. Dentre eles encontramos os que fazem parte da constituição das peculiaridades que diferenciam uma cidade de outra e, ao mesmo tempo, aspectos que as aproximam. A vida em comum não se faz apenas pelas ações que implicam uma atuação efetiva sobre o espaço compartilhado, mas também pelas escolhas sonoras que fazemos ao habitá-lo.

A Ágora

Bares salpicam a avenida Rio Mar, numa média de um por quadra, variando a oferta - lanches, almoço, ou só bebidas. Diariamente, em suas calçadas, as pessoas se encontravam para conversar, em duplas, trios ou círculos que aos poucos iam se animando e com isso elevando a potência sonora das “aglomerações”. Os bares se tornaram o espaço do encontro diário da cidade - ao menos para minha percepção estrangeira - onde as vozes se sobrepõem, se contrapõem, se articulam ritmicamente, dançam espacialmente e compõem harmonias e dissonâncias. Em muitos deles não havia música, principalmente durante o dia. Alguns, como o localizado no final da avenida, na beira da praia, provinham trilhas sonoras para os encontros somente ao cair da tarde. Os sons das vozes reverberam nas paredes das áreas construídas, amplificam seu volume e refletem em todas as direções, engolfando o entorno com suas vibrações a partir daquela arquitetura aural (Blesser & Salter, 2007). Para além da linguagem, do sentido construído (mais, ou menos) logicamente, do argumento e da persuasão, da informação e da solicitação, da palavra de ordem, dos jargões, das gírias, dos regionalismos, da gramática, das expressões coloquiais, abrigam-se o riso, as risadas, os murmú rios, o gaguejar, os gritos de dor, de raiva, de prazer, de alívio, as interjeições, o choro, o assobio, o ranger dos dentes, o estalar da língua: “antes de fazer sentido, a linguagem produz ruído. (…) Quem quer que fale está também cantando sob as palavras faladas, está pulsando em ritmo sob a canção, está mergulhando no ruído de fundo sob o ritmo” (Serres, 2008, p. 120). Nos bares, se desfazem as amarras e se desarticula a racionalida de do discurso, permitindo que os sons mais diversos, “adequados” ou não, possam ser emitidos sem bloqueio, seja por bocas masculinas, seja por femininas...

Na região do centro histórico, onde estávamos, havia ao menos quatro praças, todas com coretos, bancos, iluminação e sinais de uma manutenção cuidadosa. Curiosamente, todas estavam sempre vazias. Não havia pessoas nas praças, conversando, observando os passantes, apreciando o tempo. Nem mesmo crianças se apropriavam destes espaços, deixando-os continuamente sem vida, conformações arquitetônicas sem a presença humana que as completa e dá sentido. O silêncio se alojava nestes locais, à espera do visitante desavisado, prestes a envolvê-lo e solicitar sua quietude para ouvir o vento e os sons do passado que poderiam ser despertados pela memória e pela imaginação.

Ao mesmo tempo, a algumas quadras da região, na beira do rio, a praça da Igreja Matriz, era ocupada pelos jovens jogando futebol, um ou outro atleta amador praticando jogging, bicicletas circulando e encontros no bar no centro da praça. Ali a possibilidade de ocupações múltiplas do espaço público se materializava na profusão sonora. Não havia uma interação entre os grupos, nem havia um assunto a ser discutido e decidido em assembleia, mas as ações marcavam uma reivindicação tácita do direito à cidade através do lazer e da multiplicidade das emissões sonoras.

Como aprendemos com Lefebvre (2000), o desenho da estrutura urbana pode favorecer modos de ocupação do espaço e estes modos se revelarão através das sonoridades díspares que se coadunam em uma harmonia de diferenças (ou dissonâncias) que são características da realização da socialidade: “forma urbana - mentalmente: simultaneidade (de eventos, percepções, e elementos de um todo no ‘real’). Socialmente: o encontro e a concentração do que existe em volta, no ambiente (…) e consequentemente, sociedade urbana como um local privilegiado da socialidade” (pp. 137-138).

Na avenida Rio Mar, no canteiro central em frente a um posto de gasolina de mesmo nome, havia dois bancos - um de concreto e um de madeira. Ficavam frente a frente, mas distantes cerca de 5 a 6 metros. Sempre havia pessoas conversando em volta dos bancos, principalmente pelas manhãs. As discussões abordavam inúmeros temas: as últimas notícias, o futebol, o trabalho, o clima, o governo, entre outros. Embora não fosse um círculo de discussão e decisão oficial sobre a vida coletiva, mas de trocas que marcam a sociabilidade urbana e a manutenção dos vínculos em meio aos fluxos normalmente rígidos do trabalho, havia espaço para conselhos e exortações. Eram vozes masculinas, com variações de timbre e entonação, ritmo, amplitude e cadência, algumas com marcas da idade, outras com falhas biológicas, mas todas com sotaque semelhante e reforçando, mesmo que inconscientemente, a manutenção do discurso autorizado e da amizade entre homens que consolida a construção do gênero no espaço público.

Anne Carson (1995), em seu texto “The Gender of Sound” (O Gênero do Som), aborda questões histórico-culturais sobre a construção do silenciamento do som das vozes femininas bem como do uso da voz pelas mulheres a partir de perspectivas masculinas de culturas antigas (e atuais). As mulheres, além de terem vozes agudas (irritantes, na perspectiva analisada), não seriam capazes de exercer o controle racional da fala através da sophrosyne, falando mais do que deveriam e sobre o que não deveriam e, por isso, não seriam aptas às discussões racionais dos espaços políticos e decisórios emi nentemente masculinos - cuja voz grave e discurso controlado e equilibrado seriam os marcos da atitude correta na vida pública. A autora aborda outras questões que fazem parte da construção do silenciamento e da desqualificação patriarcal da voz e da fala femininas e sua conexão com a sexualidade, as quais reforçam sua retirada do espaço de compartilhamento. Ao escutar as vozes masculinas em discussão no espaço público em Belmonte e ao não escutar as femininas neste micro-universo ressoava o pensamento de Carson em meus ouvidos.

Os sons podem ser considerados violentos, invasivos, excludentes, disruptivos e, ao mesmo tempo, afetivos, acolhedores, conciliadores. A disputa pela cidade também se realiza através da ocupação sonora dos espaços - os sons podem ser em si mesmos políticos. A escuta nos permite constatar sua potência na construção de alianças, demarcação de territórios, criação e manutenção de hegemonias, domínio e afirmação. Assim, a tessitura paulatina de um território de escuta é um procedimento, além de ser um processo, de desvelamento de aspectos do mundo que se expressam através dos sons e que provocam o pensamento ao fazer vibrarem os ouvidos.

On the Road

Belmonte é uma cidade plana, com poucos carros, pequena, com um sistema viário simples e geométrico - poucas avenidas, ruas medianamente largas, e travessas perpendiculares, estreitas. O principal meio de transporte na cidade é a bicicleta - sonho dos centros urbanos e das soluções de transporte ecológico. Inúmeras circulam pelas ruas, em uma miríade de cores, embora com estilos semelhantes - não há necessidade de mountain bikes, bicicletas dobráveis ou retrôs, nem tão pouco de marchas. Basta uma bicicleta simples, com garupa e, às vezes, com um cesto na frente. Logo nos deparamos com duas bicicletas na casa em que estávamos e passámos a realizar passeios diários. Belmonte nos mostra que “a vida das pessoas não é assim tão compartimentalizada - geralmente, o lugar em que se vive, se trabalha e se diverte está a uma pedalada de distância” (Byrne, 2009/2011, p. 8).

As bicicletas não só facilitaram nossa circulação pelas ruas, mas abriram outras portas para perceber, sentir e pensar sobre a cidade em que estávamos. O deslocamento trazia os ruídos das bicicletas, as conversas e as vozes entrecortados pela mobilidade errática de cada ciclista, os sons das ruas em movimentos espaciais: aproximando-se, em crescendos, distanciando-se, em diminuendos, a ampliação de nosso território de escuta e a descoberta de novos sons e novas formas de apreciação dinâmica dessas sonoridades. A bicicleta não realiza um corte entre as pessoas e os espaços, como os carros e seu isolamento acústico fazem. Ela permite que estejamos ainda imersos no mundo enquanto em movimento - a tatilidade das texturas, as cores, as formas, os cheiros e os sons nos alcançam e nos envolvem em todo o percurso: “em uma bicicleta há mais trocas e mais correspondência. Deslizamos sub-repticiamente por outra geografia, eminente e literalmente poética” (Augé, 2008/2009, p. 66).

Aos poucos fomos desenhando novos trajetos em nossas bicicletas, descobrindo caminhos, travessas, becos e vielas, de pedra ou de terra, que nos abriam o espaço de Belmonte sob novas conformações e provocavam novas percepções da cidade. Descobrimos, em um dos passeios, o Aeroporto Municipal de Belmonte Roberto Cunha. Não havia nenhum dos sons que esperaríamos ouvir próximo a um aeroporto. A pista, ao fundo e à esquerda, sendo lentamente ocupada pela vegetação. Os insetos e pássaros que habitavam o mato e as árvores em volta, junto com o vento que balançava as folhas e um ou outro passante pela rua compunham a paisagem sonora daquele não-lugar (Augé, 1997).

A poucas pedaladas dali, em direção ao centro, na mesma avenida, havia um brejo. Logo que nos aproximámos pudemos ouvir uma infinidade de coaxados agudos de suas rãs. O pipocar dos coaxados e sua característica particular os tornavam um concerto a céu aberto, com uma incrível espacialização das “vozes” das rãs que se escondiam sob os capins altos e se opunha sonoramente a ideia de urbanização que seu vizinho, o aeroporto, emanava.

A mobilidade da bicicleta nos permitia circular por boa parte da cidade, experimentando espaços díspares e os respectivos sons dos modos de vida que ali se desenrola vam. O mercado municipal, a beira do rio, as praças, a igreja, as avenidas e travessas, os silêncios e sons abundantes, as vozes e os cantos, os ruídos e os diálogos, a música no ar e no corpo, uma diversidade de espaços que transformamos aos poucos em nosso território - e em nosso território de escuta.

O modo como nos deslocamos e transitamos pelas cidades são definidores do modo como as escutamos e, assim, ao menos parcialmente, dos modos como participamos da vida em comum e de como a entendemos. Se tivéssemos optado pela circulação de carro, limitado nossos trajetos em idas e vindas às praias e a restaurantes, como o tradicional turista, teríamos nos isolado dos ritmos e fluxos que constituem a cidade e nossa compreensão sobre ela poderia vir a ser extremamente superficial e limitada. Os deslocamentos a pé e de bicicleta permitiram que ouvíssemos a cidade e nos deixássemos ser arrebatados pela multiplicidade de aspectos que se manifestavam através do som. Assim, delineamos uma perspectiva sobre Belmonte a partir da costura dos fragmentos sonoros que escutamos ao longo de nossa permanência e, através desta escuta, dos diversos sentidos que se expressam nas sonoridades cotidianas de uma cidade - lentamente, articulando sensações e pensamento, e permitindo que os sons fossem o ponto de partida para a estruturação de nossa compreensão sobre Belmonte.

Lento Retorno

“A partir de que momento um lugar passa a ser verdadeiramente de uma pessoa?”, pergunta Perec (1974/2001, p. 48). Meu filho de 6 anos me diz que morou em todos os lugares que visitou em viagem: “quando a gente morou” na Serra do Cipó, em Cumuruxatiba, em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Tiradentes, em Ouro Preto, em Itatiaia, em Rio Piracicaba, em Catas Altas, em Cocais, em Belmonte, em Mariana...

Quando o olhar, o ouvido, o nariz, a boca e o corpo estrangeiros deixam de ser estrangeiros? Habitar se conecta e se submete unicamente ao tempo? Ou dirá respeito ao modo de estarmos, vivermos, sermos afetados e afetarmos um local? Talvez tenhamos habitado Belmonte e feito dela nosso território, e não somente visitado a cidade, ou talvez este seja apenas o nosso desejo… “As cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que as suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas, e que todas as coisas escondam uma outra coisa” (Calvino, 1972/1990, p. 25).

Um território de escuta é também um mapa sonoro e este é, ao menos em parte, poético. Com isso, sempre provisório, efêmero, pessoal. Com palavras tentamos descrever este mapa provisório, fugidio nas sensações e na memória, que aponta para as conexões e fluxos envolvidos nos territórios de escuta que articulamos durante nossa permanência em Belmonte e reflete o percurso de constituição desta escuta pessoal e idiossincrática. Como nos diz Schulze (2018), a partir de

aspectos pessoais, biográficos e culturais localizados no tempo e no espaço, assim como especificidades em suas inclinações historicamente construídas, preferências e gostos, um certo alien desenvolverá uma idiossincrasia ao longo do tempo. Idiossincrasias são sintomas da existência: são assinaturas da vida. (…) Os traços sonoros desta idiossincrasia sensorial são sempre específicos em sua interminável variação, suas quase inimagináveis mudanças, desvios e piruetas erráticas. (pp. 116-117)

Os mapas e cartografias são um conjunto de marcos que se abrem para a possibilidade de desenho de novos percursos em linhas de fuga que podem resultar em novos mapas (Deleuze & Guattari, 1980/2000). A escuta é uma experiência multifacetada e, embora possamos categorizá-la para tentarmos compreendê-la, suas camadas constitutivas simultâneas são sempre múltiplas. Nossa escuta de Belmonte ressoou para nós diversos aspectos dos modos de vida que ali se dão: natureza, urbanismo, história, po lítica, lazer, estrutura social, entre outros temas e relações. Mas, trata-se de uma escuta, entre tantas possíveis.

Este território de escuta revela a importância da abertura dos ouvidos como forma de pesquisa, entrada e compreensão das relações sociais e da estruturação urbana que as manifesta. Não se trata apenas de deixar-se levar pelos sons, embora isso seja necessário neste procedimento. Trata-se de se abrir para o sensório e deixar que as sensações guiem o pensamento e este possa articular o vivido ao refletido e ao entendimento. Não se trata de colocar os ouvidos no lugar dos olhos - uma escuta no lugar de uma obser vação, de uma mirada -, mas, como tentamos indicar neste ensaio, de abrir os ouvidos para as provocações do mundo em situação e somar o que capta a escuta ao que o corpo, como um todo, percebe e pensa.

Retornar “lentamente” de Belmonte para Belo Horizonte, em uma viagem dividida em 2 dias de percurso, com cerca de 8 horas cada, em um não-lugar de onde ouvimos somente os roncos de motores e o vento pelas frestas abertas das janelas do carro, com pausas em locais de trânsito onde as refeições são práticas e rápidas, hospedagem em não-lugares que se assemelham a inúmeros outros com seu isolamento dos sons externos, ruído dos ares condicionados, diálogos informativos e simpáticos dentro da poli- dez necessária à relação de consumo, é um retorno lento a outros aspectos do mundo e da escuta e suas articulações. Um retorno ao amortecimento do sensório que a estrutura turística, se assim podemos chamá-la, garante ao viajante - a homogeneidade e a minimização da diferença e, com isso, a redução da provocação que vem da experiência.

Ao mesmo tempo, a constituição de nossos territórios de escuta em Belmonte impacta diretamente em nossa percepção de Belo Horizonte e de suas sonoridades. Voltamos sempre com outros ouvidos e com outra escuta:

a contínua mudança dinâmica dos sons (é) característica da maioria das paisagens sonoras. (…) este fato por si só demanda uma abertura e uma flexibilidade contínua de nós mesmos em nossa percepção aural (...). O que permanece estável e não sujeito às mudanças é nossa entrega e comprometimento com a escuta. (Westerkamp, 2019, p. 46)

Referências

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1O conceito de paisagem sonora (soundscape) foi consagrado pelo compositor e educador canadense Raymund Murray Schafer, em seu livro Soundscape: Our Sonic Environment and the Tuning of the World, publicado pela primeira vez em 1977 (Schafer, 1977/2001). A paisagem sonora seria um dado conjunto de sons que se manifestam em um certo local e, pode- ríamos acrescentar, em um determinado momento de escuta.

2Entrariam aqui questões de distribuição de renda, transporte público, manutenção de áreas verdes, cuidados com rios (despoluição e acesso), devolução das ruas aos pedestres, dentre outras tantas que não é o caso abordar neste momento.

3Este conceito foi desenvolvido em minhas pesquisas sobre o som (Pessoa, 2017) e será abordado mais a frente.

4O silêncio é sempre uma experiência contingencial, onde a interrupção de emissões sonoras em um contexto ou a redução de sons de súbito, nos lançam momentaneamente em um hiato onde outros sons surgem, sutis ou intensos, mais ou menos perceptíveis - não há silêncio sem sons, como nos dizia Cage (1973): “há sempre algo para se ver, algo para se ouvir. De fato, por mais que tentemos fazer silêncio, não conseguimos” (p. 8).

Recebido: 30 de Janeiro de 2021; Aceito: 26 de Março de 2021

Frederico Augusto Vianna de Assis Pessoa é mestre e doutor em artes/tecnologia da imagem pela Universidade Federal de Minas Gerais, com bolsa da Fundação de Am- paro à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), e artista sonoro. É integrante do “ESCUTAS: Grupo de Pesquisa e Estudos em Sonoridades, Comunicação, Textualidades e Sociabilidade”. Email: fpessoa@ufmg.br Morada: Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil

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