1. Introdução
O tema das invasões biológicas vem ganhando importância científica diante das recorrentes introduções de espécies exóticas, em curso no Brasil e no mundo. Tal problema é considerado a terceira maior causa da perda de biodiversidade no planeta (International Union for Conservation of Nature, 2012). Além disso, os impactos relacionados com as invasões biológicas, embora percebidos primariamente como ecológicos, desdobram-se em prejuízos sobre a economia e sociedade (IUCN Species Survival Commission, 2000), por exemplo, quando pensamos em impactos diretos a culturas extrativistas baseadas na relação imediata com a natureza ou em situações relacionadas com a saúde pública, como no caso do caramujo africano no Brasil. Entretanto, como a sociedade pode participar amplamente, desde o envolvimento no empreendimento científico em contextos afetados por bio invasores à busca ativa por políticas públicas, deste tema?
Em busca de exemplos de envolvimento público nesta questão, olhamos para o caso da invasão biológica na costa brasileira de duas espécies de coral-sol nativas do Oceano Pacífico: Tubastraea tagusensis e Tubastraea coccinea (Oigman-Pszczol et al., 2017). Enquanto invasor biológico, o coral-sol tem grande impacto sobre as comunidades humanas locais, bem como, em última instância, sobre consumidores de recursos marinhos nos centros urbanos, principalmente devido à velocidade do seu crescimento, proliferação e impactos na cadeia alimentar (De Paula et al., 2014). Outros estudos mostram que é uma ameaça a espécies endêmicas do Brasil como o coral-cérebro (Mussismilia hispida; Creed, 2006).
O Projeto Coral-Sol (PCS), ancorado pela organização não governamental Instituto Brasileiro de Biodiversidade, é uma iniciativa socioambiental para o enfrentamento do problema das invasões biológicas. Sua construção se dá a partir de pesquisas científicas intensivas sobre a biologia, ecologia e possíveis impactos do coral-sol, realizadas no Brasil principalmente por pesquisadores das universidades do estado do Rio de Janeiro (em especial da Universidade Estadual do Rio de Janeiro). Seu principal local de pesquisas é a Baía de Ilha Grande, localizada no Sul Fluminense, onde a presença e os impactos do coral são visíveis.
Em uma proposta que aproxima a população local e as dimensões científicas - coleta e interpretação de dados, aplicação de resultados, debates em esferas institucionais como o Ministério do Meio Ambiente - na Ilha Grande, o PCS e os moradores locais, em íntima relação com pesquisadores, realizaram uma atividade chamada por eles de “catação”, que corresponde ao manejo do coral-sol do ambiente. A participação dos moradores da Ilha Grande nas atividades de manejo do coral invasor representa um processo de imersão em um empreendimento científico, social e ambiental em sua própria realidade, o que pode representar, segundo Gohn (2014), uma possibilidade de aprender no “mundo da própria vida”, ou seja, em seu cotidiano.
Segundo Gohn (2014), “o meio sociocultural onde se vive e a classe social a que pertence faz parte da construção de cultura dos indivíduos” (p. 39). Vê-se, assim, a educação em ambientes não escolarizados como espaço e processo de participação coletiva, compartilhamento de experiências, elaboração de conhecimentos e, sobretudo, exercício político (entendido principalmente pela relação com o outro) associado ao ideal da democracia participativa. Neste ponto, é impossível desvincular as ideias supracitadas de formas participativas e emancipadoras para a construção coletiva de uma cultura científica multidimensional, não apenas centrada nos processos internos do que seria uma investigação, mas em todo aparato histórico e cultural que situa qualquer empreendimento científico, bem como na circulação e apropriação de seu conhecimento.
Considerando que a atividade de manejo promovida pelo PCS pôde se consolidar enquanto um processo educativo não escolarizado dentro de um contexto sociocultural onde a cultura científica emerge como um de seus elementos constituintes, é possível entender como o conhecimento sobre o problema ambiental da invasão biológica é apropriado e compartilhado a partir da participação nas práticas desenvolvidas dentro de um universo sociocientífico. Para tal, levantamos o questionamento, aqui investigado, de que a prática de manejo é constituinte de processos sociais e situados de aprendizagem, como colocado pela perspectiva teórica da aprendizagem situada (Lave & Wenger, 1991).
Lave e Wenger (1991) localizam sua perspectiva analítica da aprendizagem na tradição marxista. Para a autora e o autor, a aprendizagem é parte integral de uma prática social e, por isto, não pode ser interpretada como um processo linear e individual. Sob este olhar, fez-se necessário o diálogo com o entendimento explicitamente marxista da filosofia da práxis, que tem como premissa a relação dialética entre seres humanos e a realidade objetiva. Nesta perspectiva, o mundo é objeto a ser transformado a partir da ação consciente, em uma unidade entre teoria e prática (Konder, 2018).
A investigação da prática do manejo do coral-sol (ou catação) nos traz importantes paralelos e conexões com a educação popular e libertadora de Paulo Freire, bem como sua síntese sobre a ideia marxista de práxis atrelada ao universo educativo. Freire (2018) contribui com significativas reflexões a respeito da importância de uma educação não bancária, participativa e que prioriza o respeito ao contexto cultural e histórico dos sujeitos em um processo de síntese cultural - aqui entendida pelas relações entre conhecimentos do viver na ilha e participar do manejo enquanto parte do empreendimento científico - e o diálogo contínuo entre educadores e aprendizes para a tomada de consciência crítica sobre a realidade.
Assim, pretendemos compreender as dinâmicas de aprendizagem e potenciais transformativos em situações de educação não formal que considerem a participação popular junto a pesquisadores para a restauração ambiental, aprendizagem e práxis como dimensões da cultura científica. Neste universo, nossos objetivos de pesquisa são: (a) compreender o processo de aprendizagem sobre as invasões biológicas, sistematizando as dimensões desta questão socioambiental trazidas por participantes da prática de manejo; (b) conduzir, a partir das reflexões sobre aprendizagem, um processo de síntese subsidiado por aportes marxistas e freirianos representados nos conceitos de conscientização e práxis; e (c) trazer subsídios para a ampliação de debates sobre a participação social em questões de ciência.
2. Aporte Teórico
2.1. Aprendizagem Situada
A aprendizagem situada surge na antropologia a partir dos trabalhos etnográficos desenvolvidos em diferentes contextos histórico-culturais. Diferente de outras visões sobre a aprendizagem, principalmente as cognitivistas pautadas no indivíduo, estes trabalhos buscaram entender a aprendizagem na sociabilidade dos sujeitos. Jean Lave (1996) considera em sua obra que os processos de aprendizagem que envolvem a constituição e desenvolvimento dos aprendizes são complexos e englobam o aprendiz situado no tempo e no espaço. Consequentemente, as “teorias da atividade situada não separam ação, pensamento, sentimento, valor e suas formas histórico-culturais coletivas da atividade localizada, interessada, conflituosa e significativa” (Lave, 1993, p. 7).
Tomamos como exemplo a pesquisa de Lave com alfaiates e seus aprendizes de um povo chamado Van e Gola, na Libéria, feita na década de 1970 (Lave, 1996; Lave & Wenger, 1991). Nesta perspectiva, Lave (1996) observou que aquilo aprendido não era simplesmente um corpo de técnicas isoladas que davam forma a uma roupa, mas sim uma série de práticas, valores sociais e culturais inerentes à história desta prática estruturante de uma comunidade de aprendizagem, incluindo construir a própria vida, crescer, se tornar um mestre alfaiate, reconhecer o respeito e a verdade em ser um alfaiate.
É a prática social que sustenta a comunidade de aprendizagem em sua estrutura histórico-cultural, mas também a modifica. Sendo assim, a aprendizagem manifesta-se como a mudança de participação na e pela prática dentro desta comunidade, o que não envolve apenas o ganho de habilidades motoras ou mentais individuais, mas também a compreensão dos múltiplos significados da participação e de pertencimento. Logo, o aprendiz apropria-se, ao mesmo tempo que é parte, da construção de um vasto repertório cultural que envolve conhecimentos, habilidades específicas e questões sociopolíticas contextualizadas. Aqui, falamos de um repertório pertencente, mas também constituinte de cultura científica, pelo qual conhecimentos compartilhados pela equipe do PCS se balanceiam com saberes próprios e promovem novas formas de participação e aprendizagem que moldam a relação ciência e sociedade.
2.2. Práxis e Consciência
Para Marx (1890/1980), o homem1 transforma sua história e se faz sujeito ao criar condições necessárias para existir socialmente e assim está “atuando sobre a natureza externa e a modificando, ao mesmo tempo em que modifica sua própria natureza” (p. 202). Em outras palavras, faz-se sujeito em um processo de humanização, como considera Leontiev (2004), que permite ao homem escrever sua história e cultura. Essa transformação só é possível pela mediação da atividade prática, melhor representada por Marx (1890/1980) na forma do conceito de trabalho em geral, ou seja, atividade humana voltada a um fim, objetiva.
Entretanto, no ato de transformar o objeto, é necessário tomar consciência de sua utilidade, pensar em sua constituição e buscar o seu fim a partir da realidade existente. Vásquez (2007), nesta perspectiva, nos traz uma importante análise sobre a consciência comum humana e sobre como esta acaba por transformar o humano em “homem prático”. A consciência comum, como o autor relata, é aquela que limita o homem a uma atividade prática irreflexiva, pela qual as ações cotidianas não estão fundadas em pensamentos complexos e objetivam nada além do que a reprodução utilitária do que o mundo lhe exige.
Assim, o conceito de atividade teórica surge junto ao conceito de atividade prática, enquanto determinantes da ação humana quando nos referimos à unidade transformadora da práxis. A atividade teórica se distingue da atividade prática por tomar como objeto, matéria-prima, elementos do plano psíquico e subjetivo como percepções, sensações, conceitos, teorias, hipóteses que são transformadas no plano ideal (Vásquez, 2007). Sendo assim, “o fim imediato da atividade teórica é elaborar ou transformar idealmente - e não realmente - essa matéria-prima, para obter, como produtos, teorias que expliquem uma realidade presente, ou modelos que prefigurem idealmente uma realidade futura” (Vásquez, 2007, p. 233).
Vásquez (2007) coloca que “hoje mais do que nunca, os homens precisam esclarecer teoricamente sua prática social e regular conscientemente suas ações como sujeitos da história” (p. 57). Este processo relaciona-se com a conscientização em Freire. Segundo Freire (1980), em um primeiro momento, a realidade não se dá como objeto cognoscível por sua consciência crítica. Na espontaneidade das relações entre homem e mundo, a posição natural não é a crítica, mas sim uma posição ingênua. O processo de ascensão ao que chama de consciência máxima possível implica a superação das situações-limite, da esfera espontânea de apreensão da realidade “para chegarmos a uma esfera crítica na qual a realidade se dá como objeto cognoscível e na qual o homem assume uma posição epistemológica” (Freire, 1980, p. 26). Quanto mais nos conscientizamos, mais entramos na essência fenomênica do objeto e mais nos instrumentalizamos para a transformação da realidade, ou seja, este processo não existe fora da práxis (Freire, 1980).
3. A Possibilidade Teórico-Metodológica do Materialismo Histórico-Dialético
Os processos de aprendizagem e tomada de consciência foram investigados a partir de sua consideração como objeto determinado por uma série de questões essenciais integradoras que permitiram sua existência enquanto realidade concreta. Assim, não pode ser investigado somente a partir do empírico e findar-se em abstrações/generalizações que não retornam em diálogo com o mundo real. Compreendemos a nossa investigação como um percurso que parte da realidade concreta, é mediada pelo abstrato e retorna ao concreto pensado, ou seja, “o concreto aparece no pensamento como o processo de síntese, como resultado, não como ponto de partida” (Marx, 1859/2008, p. 258).
O fenômeno social, enquanto realidade concreta, é dialético, tensionado por elementos pertencentes à sua essência. O caminho da aparência até à essência (que revela o concreto no pensamento) torna-se, em si, a construção da práxis elementar da pesquisa. Sobre este caminho, Gimenes (2016) coloca que
a essência de um objeto não se manifesta de imediato ao humano. Por isso, a pesquisa é uma possibilidade de compreensão entre a representação e a realidade, é um processo de reprodução, no pensamento, da estrutura dinâmica de seu objeto. (p. 85)
Este processo de superação, entretanto, é possível pela identificação e abstração dos elementos conectivos que estão no corpo do objeto e configuram as suas características dinâmicas. Neste momento buscou-se o olhar para as mediações e contradições (Netto, 2011) enquanto pontos fundamentais para a análise da totalidade da prática de manejo/catação, enquanto local de aprendizagem e tomada de consciência.
4. A Prática de Manejo do Coral-Sol: A Catação
A Vila do Abraão, localizada no município de Angra dos Reis, Rio de Janeiro, foi o palco para a atuação do PCS. Creed et al. (2017) trazem uma lista de razões que fundamentam o surgimento das atividades de manejo na Vila do Abraão: grande quantidade de populações do coral em regiões da Baía de Ilha Grande próximas à vila, disponibilidade de moradores que têm afinidade o suficiente com o mar para participar das atividades e forte influência do turismo e consequente alto fluxo de visitantes.
Administrada pelo PCS dentro da Instituto Brasileiro de Biodiversidade, a catação é a parte do manejo que envolveu essencialmente a participação dos moradores entre os anos de 2006 e 2012. Ao pensar na origem da catação do coral, também é preciso destacar que esta prática nasceu de uma iniciativa socioambiental de uma organização não governamental em parceria com pesquisadores e moradores em 2006 e que teve sua interrupção, devido ao fim do patrocínio antes dado pela Petrobras Ambiental, em 2013. Portanto, o olhar desta pesquisa está direcionado em um momento precoce desta prática que poderia ter se desenvolvido ao longo dos anos posteriores se não existissem questões externas (mas estruturantes), como viabilidade econômica.
Esta atividade era realizada periodicamente com a organização de membros do PCS que determinavam onde e quando o manejo seria realizado a partir de dados sobre a ocorrência do coral. A metodologia até hoje empregada em outras ações de manejo para o Brasil é a remoção manual das colônias do coral com o uso de talhadeiras. Em duplas, os catadores mergulhavam (mergulho livre) com uma caixa vazada e faziam o trabalho. Ao fim, as colônias eram sacrificadas e todo o trabalho contabilizado e avaliado.
5. Os Catadores e Entrevistas
Os catadores de coral estão aqui considerados como coordenadores ou novatos. Os catadores coordenadores começaram as atividades em conjunto com a construção do PCS em 2006. Já a partir de 2009, o número de catadores aumentou e circulou em torno de 20, muitos destes com participação limitada ou sazonal. As suas idades, incluindo coordenadores (quatro pessoas ao longo do tempo) e novatos, variaram entre 20 e 48 anos, apenas metade tinha ensino médio completo e 86% possuíam residência própria (Creed et al., 2017). A maior parte dos catadores, cerca de 70%, recebia menos de um salário mínimo e 79% não tinham emprego fixo (Creed et al., 2017).
No ano de 2016, por intermediação de um membro do PCS morador da Ilha Grande e que manteve relações de amizade com alguns dos antigos catadores, cinco destes foram localizados e contactados por telefone e se dispuseram a participar de entrevistas presenciais semiestruturadas, sendo dois coordenadores e três catadores novatos. É importante ressaltar que outros catadores foram localizados, entretanto alguns fatores como timidez e o cotidiano de trabalho na ilha acabaram por influenciar na possibilidade de realização das entrevistas, visto que foram feitas presencialmente em duas viagens para Ilha Grande com tempo e recursos limitados. Podemos citar, como exemplo, um catador localizado e que se dispôs a participar, entretanto operava um serviço de “táxi boat” (táxi marítimo), o que impossibilitava uma agenda fixa. Logo, entrevistas deveriam ocorrer nos momentos de descanso/noturnos o que também dificultou sua realização, pois compreendemos que no mundo do trabalho tal como o conhecemos a folga tem valor inestimável. Soma-se a estas constatações, outro fator limitante que é a instabilidade de rede de celular e internet na ilha, o que naturalmente dificultava tanto a comunicação por telefone quanto a possibilidade de entrevistas remotas.
Foram entrevistados com total respeito a suas dinâmicas e cotidianos pessoais, os catadores coordenadores C1 e C2 e os novatos C3, C4 e C5. Todos são maiores de 18 anos e concordaram em participar da pesquisa através do termo de consentimento livre esclarecido. Ressaltamos que nas transcrições decidimos manter com o máximo de fidelidade as expressões de linguagem próprias, sem adequações e correções neste sentido. Assim foram mantidas na escrita palavras faladas como “pra”, “tava”, “tô”.
6. Alguns Elementos de Contexto Pelas Vozes da Ilha
Para Lave (1993), as contradições estruturais são fundamentais para estabelecer as relações entre os significados, as ações dos sujeitos e os seus contextos. Portanto, consideramos preciso entender o contexto no qual se dá a participação na prática, pois é somente nas relações dialéticas que modulam que há possibilidade de qualquer aprendizagem. O modo de vida em Ilha Grande e o envolvimento dos moradores com questões ambientais, sociais, econômicas e políticas são alguns dos principais aspectos do contexto no qual a prática de manejo/catação se desenvolve. Da mesma forma, os processos históricos de gênese do PCS e a própria presença do coral e de outros invasores biológicos também se concretizam na realidade.
Na ilha, a principal atividade econômica é o turismo, sendo que a maioria dos catadores vivia e vive, de alguma forma, desta atividade. As funções desenvolvidas pelos catadores mais comuns são: zeladores, funcionários de pousadas, mergulhadores e guias turísticos. Ainda sobre o modo de vida dos catadores é importante destacar suas histórias enquanto moradores de um lugar de beleza ímpar. A relação com o mar surge como um elemento cultural que permeia a prática, trazendo unidade entre o contexto e a catação;
mas como na ilha, por ser ilha, os moradores e os caiçaras, já tem uma intimidade muito grande com o mar, até muito surpreendente, muito acima do que você aparentemente pode imaginar. Nascido na ilha, andando de canoa pra cá, pra lá, brincando na praia no rio. (C1)
No trecho seguinte, na fala do catador C5, podemos conhecer também a relação com o mar e a percepção de mudança do ambiente depois da chegada do invasor biológico: “até mesmo porque quando a gente começou a mergulhar na época de criança tinha pouco, a quantidade era menor, mas já tinha bastante” (C5). A Ilha Grande já era um ambiente modificado por invasores biológicos, portanto, faz parte do contexto a vivência da população caiçara com estas espécies. Em grande parte dos casos, espécies invasoras não são reconhecidas como um problema e sua presença é tomada como natural. A fala seguinte exemplifica este aspecto:
o caiçara que nasce aqui, a jaqueira tá aqui desde o descobrimento do Brasil. Aí quando você chega você já tem uma bioinvasão, já tem bambu pra todo o lado então o cara já nasce olhando isso de uma forma que ele considera, que ele não considera isso uma bioinvasão. (C1)
Outro aspecto importante é levantado pelo catador/coordenador C2 quando se refere à complexidade dos processos de desapropriação e à dificuldade em se comunicar com os catadores novatos com uma linguagem que se aproxime da cotidianidade destes sujeitos:
a Ilha Grande vive um processo de exclusão dessas pessoas, todo mundo que vem com preparo, com um olhar muito mais competente pra montar negócios, pra cuidar do lugar, pra crescer economicamente aqui, que as pessoas daqui não têm, elas foram ficando excluídas, e eu acho que quando chega um projeto que não consegue falar a língua do morador essa distância só é reforçada. (C2)
No trecho acima, o catador/coordenador C2 se refere aos termos científicos empregados por pesquisadores visitantes, acabando por revelar uma contradição referente à construção da prática dentro do contexto: o científico e o popular. Se o processo de aprendizagem se integra a um contexto, ele precisa estar atrelado à realidade histórico-cultural dos participantes. De certa maneira, a prática de catação torna-se uma forma de aproximação entre conceitos e a realidade, o que pode moldar o processo de aprendizagem.
Partindo do pressuposto que as “pessoas, ações, e o mundo estão implicados em todos os pensamentos, expressões, conhecimento e aprendizagem” (Lave & Wenger, 1991, p. 52), fez-se necessária a breve construção do contexto aqui apresentado. Ademais, a realidade da Ilha Grande não se limita aos aspectos levantados e seus tensionamentos são diversos, portanto este desenho a várias mãos foi necessário para compreender os processos de aprendizagem e tomada de consciência que serão a seguir apresentados.
7. Reflexões Sobre Aprendizagem Situada e Práxis na Catação do Coral-Sol
Para Marx e Engels (1932/2009), “a produção das ideias, das representações, da consciência está em princípio diretamente entrelaçada com a atividade material e o intercâmbio material dos homens, linguagem da vida real” (p. 31). Nestes pressupostos, “não se pode entender o que as pessoas sentem e pensam sem saber como elas vivem e o que fazem” (Konder, 2018 p. 129). Quando os catadores se reconhecem como tais, carregam sua história e a cultura local que é inseparável de uma prática social. A catação não existe sem o mergulho e sem o barco, mais do que isso, não existe sem moradores da ilha imersos em uma realidade insular própria, intersubjetiva e de, como se refere Freire (2013), “saberes fundantes” (p. 12). Aqui, reforçamos o caráter situado da aprendizagem e da tomada de consciência sobre diversas questões das invasões biológicas.
8. Mediações das Dimensões da Aprendizagem Sobre Invasões Biológicas
A seguir, trabalhamos sobre dimensões criadas a partir da análise das entrevistas em conjunto com o entendimento da existência de uma contradição que historicamente dicotomiza, a partir de filtros como da neutralidade científica, os conhecimentos das ciências naturais e aspectos sociais e políticos. Assumimos esta distinção como dimensões mediadoras para compreensão de quais são as questões próprias das invasões biológicas (biológicas, sociais, políticas) que foram reveladas nas entrevistas. Entretanto, é importante frisar que no percurso da análise esta distinção encontra-se superada na própria fala dos catadores. Esta superação será melhor explicitada em nossa síntese dos processos de tomada de consciência e práxis.
8.1. Aprendizagem de Aspectos Biológicos e Ecológicos
Meireles et al. (2015), a partir da aplicação de questionários e entrevistas na Ilha Grande, apontam que a maior parte da população que participou da pesquisa (60%, n = 125) já havia avistado alguma espécie exótica invasora, 43,2% ouviram falar do coral-sol e 40% sabiam reconhecer algum tipo de problema/conceito relacionado às invasões biológicas. Estes dados nos apontam que existe um elevado grau de conhecimento empírico quando se trata de invasões biológicas na Ilha.
A participação em estratégias de manejo pode aproximar as pessoas de aspectos constituintes da realidade ambiental em que vivem, como a própria elaboração conceitual de aspectos biológicos e ecológicos. Nos trechos a seguir, o catador/coordenador C1 traz sua compreensão sobre competição biológica e invasões biológicas:
você começa a fazer a relação com os outros animais, o sagui aqui é uma invasão que não tem predador e como um coral-sol, cada ano que passa ele vai aumentando. ( ... ) Então a mesma coisa no mar, entendeu? A mesma coisa com o coral-sol. ( ... ) O próprio coral-cérebro que é um cara impactado diretamente pelo coral-sol. A velocidade dele é muito menor de procriação do que o coral-sol, isso eles perceberam lá, entendeu? (C1)
Também podemos perceber que há um movimento do geral para o particular (Davidov, 1999) quando C1 traz exemplo de outra invasão biológica na ilha, o sagui. Meireles et al. (2015) observam que o problema do “sagui que ataca passarinhos” (p. 328) é bem popularizado na ilha.
Quando nos voltamos para as falas dos catadores novatos, também podemos observar no seu próprio modo de expressão o conhecimento dos problemas e de procedimentos ecológicos relacionados às invasões: “o coral-sol, qual o prejuízo que ele traria para o nosso lugar porque onde ele estava ele se alastrava então outros seres vivos não ficavam morriam não tinha espaço de crescer ali” (C4);
tava na cara que eles estavam ocupando lugares que tiravam, eles empurravam o coral-cérebro pra um lado e vai matando aos poucos o coral-cérebro. Certos tipos de corais eles vão tomando espaço do coral nativo, entendeu? Então essa é a ideia da invasão no caso, de um ser que veio de outro país, mas que não é daqui e começa a comer até as próprias comidas da fauna e da flora daqui, eles estavam tirando, né? (C3)
A visualização do problema, a partir do contato com o coral, foi um aspecto muito importante para a compreensão das questões biológicas e ecológicas relacionadas às invasões. A própria atividade de catação trazia cuidados que envolviam conceitos que foram sendo apropriados pelos catadores, como o método de sacrifício das colônias e o cuidado na hora de remoção para não liberar mais larvas no ambiente:
a gente tem umas instruções de como era o coral-sol, de como teria que ser tirado pra eles não se multiplicarem mais, então tinha todo um cuidado na hora de retirar esse coral-sol pra não incentivar a procriação ao invés de controlar ( … ) a gente ia com a talhadeira e tirava de um por um assim pra não, porque quanto menos adrenalina, menos esporos eles soltam. (C3)
O trecho da fala da C3 nos revela a importância da unidade entre teoria e prática na catação do coral-sol. Para que o manejo seja desenvolvido de forma adequada é preciso conhecer configurações centrais da biologia do coral, o que esteve presente nas entrevistas de todos os catadores.
Por fim, a prática da catação também possibilitou uma descodificação da biodiversidade, principalmente com a vida subaquática anteriormente pouco percebida pelos catadores, apesar de serem exímios mergulhadores:
tipo, eu no meu caso aprendi mais em relação à espécie. Conheci muitas espécies ali que eu não conhecia, que a gente era muito curioso e perguntava “o que era aquilo ali”, porque a gente não tinha essa visão lá debaixo, né? Porque quando a gente mergulhava, ia só no coral-sol, depois que a gente foi ter a visão de outras espécies ali. (C5)
Vemos indícios do conhecimento sobre o seu próprio local sendo estabelecido, reforçando-se a ideia de reaproximação com o ambiente. É improvável pensar em um caráter transformador do ser humano sem este conhecer de sua própria realidade, e aqui este fato aplica-se à própria biodiversidade. O homem modifica a natureza conhecendo-a, desvinculando-se dela enquanto parte meramente funcional, desta forma se humaniza, produz história e cultura (Leontiev, 2004).
8.2. Aprendizagem de Aspectos Socioambientais e Políticos
Os processos de tomada de consciência estão mais evidentes quando pensamos na construção de aprendizagens de aspectos socioambientais e políticos. As manifestações socioambientais das invasões biológicas apareceram principalmente nos sentidos dados pelos catadores para a atividade de catação. O principal sentido atribuído é o controle e/ ou erradicação do coral porque este é de alguma maneira ruim para a ilha. Esta forte relação com a ilha coloca em evidência a determinação do contexto dos catadores. Segundo Lave e Wenger (1991), “um currículo de aprendizagem é essencialmente situado. Ele não é alguma coisa que possa ser considerada em isolado, manipulado em termos didáticos arbitrários, ou analisado à parte de relações sociais” (p. 97). Ainda sobre este ponto, a partir de sua leitura da ação dialógica de Paulo Freire, Andreola (1993) coloca que “o conhecimento engloba a totalidade da experiência humana. O ponto de partida é a experiência concreta do indivíduo, em seu grupo ou sua comunidade. Esta experiência se expressa através do universo verbal e do universo temático do grupo” (p. 33).
A partir destas considerações podemos adentrar nas formas de conhecimento partilhadas pelos catadores quando nos referimos às questões que transpassam uma visão reducionista das próprias ciências naturais. Um aspecto importante sobre o manejo que surge nas falas do catador/coordenador C1 e da catadora C3 é a abordagem estética do coral-sol. Esta abordagem é algo que deve ser levado em consideração quando pensamos na invasão biológica como uma questão socioambiental porque revela contradições éticas e econômicas relacionadas à presença de uma espécie de grande apelo visual:
com certeza todos nós trabalhávamos no momento de retirada com o sentimento ( ... ) porque dá dó de tirar, porque ele é bonito, mas o sentimento é além daquele ato mau que você tá fazendo, porque é um organismo vivo, de qualquer maneira você tá eliminando um ser, um organismo, mas o sentimento maior era de você dar oportunidade para aqueles outros organismos que estavam sendo prejudicados com a presença dominante daquele outro organismo que é o coral-sol, entendeu? (C1)
No trecho seguinte, a abordagem estética do coral-sol volta a aparecer, agora na fala da catadora C3. Esta parece ser uma questão importante para a compreensão da dimensão socioambiental do tema, pois está também relacionada a atividades econômicas e sentimentos:
os turistas no caso, na Lagoa Azul ou Lagoa Verde, a gente era proibido quase de tirar os coral-sol lá. Porque os turistas gostam de ver o paredão infestado de coral-sol, e o coral-sol é lindo. ( ... ) O turista acha lindo, só que o turista não sabe até que ponto aquilo ali pode tá prejudicando ali o meio ambiente da Ilha, entendeu? O turista não tem consciência disso. Só quem vai ter consciência disso, a princípio, são os caiçaras para poder passar isso pros turistas, porque no caso os turistas querem fotografar, tirar fotos de coisas lindas e bonitas, mas eles não têm consciência disso. E isso teria que haver uma maior educação ambiental, um projeto de educação ambiental maior até nas partes de informação ao turista. (C3)
Podemos reconhecer, a partir das importantes leituras de C1 e C3, que a questão das invasões biológicas está envolta por problemáticas sociais de igual complexidade que foram apreendidas, a partir de um nítido processo de desenvolvimento crítico. Se olharmos pelo prisma da metodologia de Freire (2018), podemos conceber as invasões biológicas como o tema gerador, aquele que no percurso dialógico e intersubjetivo é capaz de construir novas concepções que estão ramificadas na complexidade histórica onde educandos estão imersos.
Esta associação nos aproxima da práxis enquanto manifestação política do materialismo histórico-dialético. Assim, o conhecimento compartilhado nos direciona às contradições que carecem da ação para serem superadas. O catador/coordenador C1 nos apresenta o tensionamento ético entre “fazer o mal” e “fazer o bem”, bem como naquilo posto por C3, a contradição estética representada pela beleza do coral. Ambos são propositivos, apontam o que seria necessário: projetos e educação ambiental.
Outro aspecto importante que emerge das entrevistas é a consciência dos catadores sobre a importância do controle, mais do que erradicação do coral-sol, demonstrando um olhar amplo sobre o problema imposto. O catador C4 traz sua contribuição sobre este ponto: “o que hoje pra gente, depois que a gente passou a compreender que tava sendo impossível pela quantidade” (C4). Ainda dentro deste aspecto, C3 compartilha, novamente evidenciando a importância da ação a partir de suas reflexões:
bom, eu acho que o ser humano e a sociedade em geral podiam sempre se unir mais, se engajar pra ter mais vários projetos como o coral-sol, porque são projetos importantes que regulam a diversidade da natureza, né? Numa ilha ou em qualquer lugar que seja, na ilha principalmente, porque a gente tá aqui isolado no meio do mar, então tanto o coral-sol como
até os miquinhos, eu acho que todos os aspectos de uma espécie invasora a gente pode ter uma solução pra essa invasão, que não seja nem erradicar totalmente, mas pelo menos fazer um controle dessa invasão, entendeu? (C3)
O papel dos catadores enquanto amplificadores do tema também surge nas entrevistas:
eu trabalhei como guia de turismo por muito tempo, eu sempre achei que é um tema que deveria estar incluído em qualquer atividade, qual fosse o perfil do turista que eu tava acompanhando. Eu sempre tocava nesse tema, assim e uma coisa muito presente na ilha. Você tem muitas espécies invasoras presentes aqui, quer dizer tem algumas, mas algumas muito evidentes. (C2)
Aqui, podemos pensar nas perspectivas de diálogo de Freire (2018), nas quais se aprende e educa coletivamente, não de A para B, nem de B para A, mas de A com B. Todos os catadores falam sobre os diálogos dentro da ilha, sobre as heranças da catação, da importância em se comunicar com turistas. Esta característica é peculiar à prática ao mesmo tempo que é libertadora pois constrói pensamentos atentos, observadores, críticos.
Por fim, aspectos políticos/burocráticos sobre as invasões biológicas também aparecem na fala do catador/coordenador C1. Sua participação central certamente promoveu um maior envolvimento com outras instâncias do PCS, o que o fez acompanhar e perceber dimensões políticas que também estão relacionadas com a materialização do problema das invasões biológicas. Neste caso, a própria responsabilização pela introdução é posta em jogo, assim como a responsabilidade no controle de invasores e papel do governo:
eu acho que podia a empresa ser obrigada a dar um bojo do seu lucro, da sua implantação, ser obrigada a reverter alguma parte disso. Uma compensação tem tantas aí pra mitigar esses problemas, né? Mas a gente não vê politicamente ninguém empenhado. Foi uma dificuldade louca pra gente conseguir uma licença do IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), para poder retirar o coral, para poder usar o esqueleto como um produto. É uma complicação na própria lei, ela foi feita de uma maneira que favorece esse tipo de coisa, esses impactos, mas não favorece a mitigação desses impactos. (C1)
A figura central do catador/coordenador C1 carrega consigo toda esta carga histórica e cultural construída também por sua experiência na prática. Podemos observar em sua fala uma síntese das potencialidades deste tipo de iniciativa socioambiental quando nos referimos à construção de trajetórias de aprendizagem, processos de tomada de consciência e práxis. As implicações destes dois últimos conceitos serão melhor discutidas no próximo tópico.
9. Síntese: Consciência e Práxis
A seguir, sintetizamos as dimensões apresentadas anteriormente, assumindo nossos referenciais de práxis e tomada de consciência (conscientização em Freire). Assim, podemos observar, a partir dos dados, que há um direcionamento para uma superação da dicotomia biológico versus social. Em geral, não se apresentaram de forma polarizada os saberes científicos próprios da biologia e as demais questões sociais e políticas levantadas, característica importante para compreender as articulações entre a tomada de consciência crítica pela apropriação teórica e ação sobre a realidade. Neste caminho, defendemos que o olhar para questões científicas deve estar pautado na relação integral entre sujeitos e mundo. Gramsci (1975/1999), em Cadernos do Cárcere, discorre sobre questões das ciências naturais, apontado que a filosofia da práxis não opera para estabelecer, por exemplo, a estrutura ou propriedades de um material, conhecidos objetos das ciências exatas e da tecnologia, mas sim investigando as forças materiais de produção e as relações sociais expressivas de determinados momentos históricos.
Ao olhar de forma integral para as manifestações conscientes sobre invasões biológicas que investigamos a partir da prática de catação, retornamos para Freire (2018) que coloca: “se o momento já é o da ação, esta se fará autêntica práxis se o saber dela resultante se faz objeto da reflexão crítica. É neste sentido que a práxis constitui a razão da nova consciência oprimida” (p. 73). Podemos agora olhar para as palavras dos catadores C1 e C5:
assim, quando você vê um caiçara, o cara não fez faculdade de nada. Ele trabalha ali no trabalho que ele aprendeu de herança de avô pra pai, pra ele, aí ele começa a se envolver com um estudo, um trabalho, um projeto que tem um cunho científico provando a importância de tudo isso. É muito bom porque o cara tem um ganho cultural entendeu? Isso o valoriza como pessoa, assim como aumenta a auto-estima de uma pessoa humilde simples que não teve muito acesso à educação. Isso é uma grandeza do projeto. Então, vê essa realização e essa autoestima do cara aumentada por conta do projeto, foi muito legal, de ele poder sair e guiar uma caminhada e falar pras pessoas da forma dele da maneira humilde dele mas falar pras pessoas, isso é muito bacana. (C1)
Eu tive o conhecimento e hoje eu posso passar pra outra pessoa o que aquela espécie, o que é invasora. Porque que o pessoal quando chega lá e vê aquele jardim debaixo da água pensa: é uma coisa bonita, interessante, não sei o que lá. Mas, não sabe que é espécie invasora, né? Então hoje em dia a gente já passa, ainda mais agora que a maioria dos catadores trabalha com turismo ali, com barco então já passa: ó essa espécie é invasora, faz mal pros outros animais. Então tem essa visão de, passar para. (C5)
Gimenes (2016) coloca que a teoria transforma nossa consciência dos fatos, ideias sobre as coisas, mas não transforma as próprias coisas, enquanto a prática pressupõe a ação efetiva sobre o mundo, transformando-o a partir da articulação entre estes dois elementos. Vásquez (2007) levanta as relações entre atividade cogniscitiva e a atividade teleológica: a primeira tem como resultado o conhecimento sobre determinada coisa, sendo assim restrita à atividade teórica, a segunda trata o conhecimento como atributo adequado a um fim, prático, material e objetivo, já que “não se conhece por se conhecer mas sim a serviço de um fim” (Vásquez, 2007, p. 225). Neste ponto, podemos considerar o conhecimento sobre invasões biológicas integrado à própria metodologia de manejo como elemento teleológico. Dentro da comunidade, estes conhecimentos adequam-se a um fim nítido que é o controle, ou utopicamente, a erradicação do coral-sol.
Quanto a isso, é inerente ao trabalho não alienado, o pertencimento a todo o processo produtivo, no qual se insere a cultura científica, como o conhecimento da prática, o conhecimento sobre a prática, os meios de produção, a força de trabalho e a própria materialização do trabalho na mercadoria (Mészaros, 2016). C1 reforça esta ideia quando cita em dois momentos a importância do contato humano com a questão da invasão do coral-sol: “Projeto Coral-sol que tira, que tem uma ligação com um social, que não tira com um produto químico, você tira com trabalho humano. Essa relação é importante, entendeu?” (C1);
em relação a isso com certeza, é diferente de quando era antes quando você sabe alguma coisa mas não participou de fato de uma ação, de você viu o projeto começar e crescer e você apesar de não sentar no banco da universidade, mas você vai somando conhecimento você vai aprendendo o nome de outros organismos você vai aprendendo como funciona a cadeia, bom isso é um espetáculo, isso é um ganho do projeto. ( ... ) O ganho mesmo é o ganho cultural do negócio, é o que você aprende no envolvimento, daqui, daqueles organismos de como aquilo funciona, isso é o bacana. (C1)
Os dizeres do catador/coordenador C1 novamente nos aproximam da teoria social de aprendizagem de Lave e Wenger (1991). A participação coletiva na prática neste caso torna-se a mediação fundamental para o processo de aprendizagem enquanto construção integral dos catadores, mas também de novas formas de conceber a relação entre ciência e sociedade. Sobre este assunto, estamos de acordo com a visão de Gohn (2006) de que a participação comunitária contribui com a transformação da realidade, possibilitando melhorias ambientais, geração de renda, desenvolvimento local e fortalecimento de organizações sociais. Para a autora, o fomento à participação cidadã possibilita o resgate da autoestima, mas vai além, ao delinear as trajetórias de vida.
A participação sócio-política e comunitária a partir de projetos construídos coletivamente, e que levam a uma intervenção social - por exemplo, numa praça pública, contribuem para a transformação da realidade do público atendido. Levam a melhorias urbanas, a geração de renda para famílias, ao desenvolvimento e formação de cooperativas de artesãos. Os projetos que fomentam a participação cidadã dos jovens contribuem para o resgate da auto-estima, mas podem ir muito além, delineando projetos e trajetórias de vida. (Gohn, 2006, p. 37)
A participação é fundamental para estabelecer a tomada de consciência. Para Freire (1981), a conscientização é um processo de experiência dialética entre a “objetividade e subjetividade, realidade e consciência, prática e teoria” (p. 117). Somando-se a importância de saberes locais, aqui percebemos em C4 movimento dialético entre subjetividade e objetividade, teoria e prática:
eu trabalhava com o mar, ai sempre foi minha área, ai minha experiência de viver com água, com o tempo a gente sabe o lugar que a gente podia ir, ver que o mar já tá batendo então, vamos, e tipo consegui orientar a galera sobre isso troca um pouco de experiência nessa área. (C4)
Pô essa atividade pra mim, como eu te falei, importante porque já era numa área que eu gosto o mar e foi uma aprendizagem, a gente tava entendendo o que que era o coral-sol, qual o prejuízo que ele traria para o nosso lugar porque onde ele estava ele se alastrava então outros seres vivos não ficavam, morriam, não tinha espaço de crescer ali. (C4)
Os dois trechos da entrevista do C4 nos permitem perceber o necessário movimento entre o contexto e saberes e a importância da participação enquanto mediadora entre sujeito e realidade. Esta característica da catação provavelmente fundamentou os processos de aprendizagem associados à tomada consciência que foram aqui desvelados e dialogados com formas essenciais da filosofia da práxis.
10. Conclusão
O processo de aprendizagem sobre as invasões biológicas surge enquanto um fenômeno situado constituído no contexto em que a catação se constrói enquanto parte do empreendimento e local de promoção e construção de cultura científica. Assim, tendo em vista algumas determinações e tensões que entram em campo neste debate, trouxemos as dimensões mediadoras de invasões biológicas que surgiram no processo das entrevistas: biológica/ecológica e socioambiental e política. Na dimensão biológica, questões referentes a biologia do coral-sol, dinâmicas ecológicas e de diversidade biológica foram apresentas de forma conectada aos relatos da catação. O mesmo ocorreu na dimensão socioambiental e política, na qual destacamos a participação social para a superação deste problema e indicativos de fatores econômicos e políticos.
Com as contribuições do pensamento marxista e de Paulo Freire, conseguimos conhecer e discutir as potencialidades de processos de aprendizagem na e pela prática. Os principais contributos deste processo de síntese foram o acesso às evidências de que participação social na prática do manejo permite a construção conceitual sobre invasões biológicas que é manifestada a partir das particularidades da construção histórica e social dos sujeitos escutados (principalmente as dinâmicas locais e linguagem); pauta-se, por vezes, em processos dialógicos; tem uma estrutura não alienante; implica processos de tomada de consciência que permutam a aprendizagem; apresenta aspectos da unidade da práxis e envolve relações afetivas.
Por fim, acreditamos que nossas análises possam se somar a um arcabouço teórico que busca compreender aspectos da relação ciência e sociedade a partir de conexões entre processos cognitivos e sociais da aprendizagem com a ação sobre a realidade. Além disso, contribui para a promoção das dimensões educativas em múltiplas ações socioambientais e de participação social em questões de ciência e tecnologia, muitas delas ainda não entendidas pelo prisma da educação, como é o caso da própria catação do coral-sol. De tal modo, indicamos, a partir de um estudo sobre aprendizagem, a importância da participação em questões que são, comumente, apenas apropriadas por cientistas, entretanto têm profundo impacto social.