Introdução
As dermatofitoses são infeções comuns causadas por fungos invasores de tecidos queratinizados, tais como a pele, unhas e pelo. Quando atinge o cabelo e pele do couro cabeludo, passa a ser designada de tinea capitis. Esta última ocorre geralmente em crianças pré-púberes, sendo considerada rara nos adultos, particularmente se imunocompetentes.1-4 Num estudo retrospetivo realizado num hospital terciário de Portugal, dos 860 casos confirmados de tinea capitis ao longo de 11 anos, apenas 15 (1,5%) ocorreram em adultos, com um número elevado a ocorrer em mulheres e imunocomprometidos.2 A prevalência desta patologia em adultos é, no entanto, altamente variável entre países, tal como demonstrado em estudos semelhantes na Coreia (44,3%),3 Teerão (20,6%),5 Espanha (11,4%),6 China (9,04%)7 e Egipto (4,2%).8
Os géneros fúngicos mais comummente responsáveis pelo surgimento da tinea capitis são o Trichophyton e o Microsporum. A sua apresentação clínica pode ser muito variável, com o padrão mais grave a corresponder ao quérion. Neste, ocorre uma resposta imunológica intensa à infeção, com consequente reação inflamatória exuberante (típica das estirpes zoofílicas) e que resulta numa massa dolorosa, com libertação de conteúdo purulento dos folículos, podendo ser autolimitada ou estender-se a grande parte do couro cabeludo. A associação com linfadenopatia é frequente. Um quérion persistente poderá acarretar uma alopecia cicatricial irreversível.1,2 Esta apresentação de tinea capitis é incomum, sendo que, em Portugal, apenas se encontra referência a um caso de tinea capitis com reação inflamatória exuberante numa mulher de 92 anos.9
Apesar de nos adultos o tratamento da tinea capitis não estar bem estabelecido, está preconizado o uso de antifúngicos orais, em particular a terbinafina e o itraconazol, com a maioria dos casos a apresentar uma resposta favorável. Os antifúngicos tópicos, por não conseguirem uma penetração adequada no folículo capilar, não devem ser utilizados isoladamente, mas sim como adjuvantes à terapêutica sistémica.1-3,5,8
Caso clínico
Doente do sexo feminino, 72 anos, caucasiana, cognitivamente íntegra e independente nas atividades da vida diária, com bom estado geral. Como antecedentes pessoais de destacar: hipertensão arterial, dislipidemia, obesidade e valvuloplastia aórtica (em 2019). Medicada cronicamente com candesartan/hidroclorotiazida 8/12,5 mg, amlodipina 5 mg, bisoprolol 2,5 mg, rosuvastatina 10 mg e pantoprazol 20 mg.
Referenciada ao serviço de urgência após consulta no centro de saúde, por lesões pustulosas e exsudativas e crostas na região fronto-parietal bilateral do couro cabeludo, com duas semanas de evolução. A doente referia dor e prurido associados e negava história de febre, outros sintomas sistémicos ou conviventes com lesões semelhantes. Colocado como diagnóstico provável uma infeção bacteriana do couro cabeludo, pelo que iniciou tratamento com amoxicilina/ácido clavulânico 875/125 mg, ácido fusídico tópico e bilastina oral. Por agravamento da lesão, foi novamente observada em contexto de urgência 7 dias depois, com escalada da terapêutica para doxiciclina 100 mg, que suspendeu após 2 dias por intolerância gástrica. Iniciou ciprofloxacina 500 mg, que efetuou também durante 2 dias, tendo o contínuo agravamento da lesão justificado nova ida ao serviço de urgência, desta vez com observação pela especialidade de Dermatovenereologia.
Neste contexto, no exame objetivo foi possível verificar a presença de uma placa mole no vértex do couro cabeludo, com cerca de 20 cm, e associada a edema, eritema, pústulas, áreas de flutuação e alopecia perilesional (Fig. 1). Adicionalmente, apresentava gânglios palpáveis, dolorosos, na região cervical posterior. Perante este conjunto de alterações, assumiu-se como diagnóstico mais provável um quérion, hipótese apoiada ainda pela confirmação por parte da doente de contacto próximo com coelhos e cães no domicílio. Procedeu-se à colheita de uma amostra para exame cultural micológico. Foi iniciado tratamento empírico com terbinafina oral 250 mg, nitrato de sertaconazol em creme (1 vez por dia), cetoconazol champô (1 vez por dia) e valerato de difluocortolona 1 mg/g + nitrato de isoconazol 10 mg/g em creme (2 vezes por dia, 1 semana).
Procedeu-se à reavaliação da doente cerca de 2 meses depois, tendo-se verificado uma melhoria franca da lesão com a terapêutica instituída. Apresentava ainda pequena zona de exsudado purulento, pelo que cumpriu mais 1 semana de terbinafina oral 250 mg, mantendo adicionalmente o nitrato de sertaconazol creme e o cetoconazol champô. O exame cultural da lesão confirmou o diagnóstico, com evidência de crescimento de Tricophyton mentagrophytes.
A avaliação final da doente ocorreu 3 meses após o início dos sintomas, com resolução praticamente total da lesão (Fig. 2). Tendo em conta o contexto, orientou-se a avaliação de possível imunossupressão subjacente.
Discussão
Tal como vários estudos têm vindo a demonstrar, a tinea capitis tem-se tornado uma entidade que deve ser considerada perante lesões do couro cabeludo em adultos, particularmente na ausência de resposta ao tratamento inicialmente introduzido. De facto, a sua apresentação atípica em adultos faz com que muitas vezes o diagnóstico seja tardio, tendo em conta outras possibilidades mais comuns como dermatite seborreica, psoríase, lúpus discoide e líquen.1,5
Certos grupos parecem particularmente propensos ao desenvolvimento desta dermatofitose, nomeadamente mulheres na pós-menopausa (provavelmente no contexto de alterações hormonais que diminuem o efeito protetor do sebo) e indivíduos imunocomprometidos. A alteração do sistema imunitário perante doenças cada vez mais prevalentes, como a diabetes e as neoplasias, ou a utilização de fármacos imunossupressores como os corticoides, ganham particular relevo neste contexto.3,4) Existem, ainda assim, casos descritos em doentes imunocompetentes, pelo que o nível de suspeição tem de ser ainda mais elevado.6,7
O caso apresentado demonstra, assim, o grande desafio do diagnóstico de um quérion numa mulher idosa, servindo como alerta para esta possível etiologia perante lesões pustulosas do couro cabeludo e/ou alopecia nesta faixa etária.