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Gazeta Médica

versão impressa ISSN 2183-8135versão On-line ISSN 2184-0628

Gaz Med vol.11 no.1 Queluz mar. 2024  Epub 28-Mar-2024

https://doi.org/10.29315/gm.v1i1.603 

Casos Clínicos

Diarreia Crónica como Apresentação de Infeção por VIH: Um Relato de Caso

Chronic Diarrhoea as a Presentation of HIV Infection: A Case Report

1. USF São Lourenço, ACES do Cávado I, Braga, Portugal.


Resumo

Define-se diarreia crónica predominantemente pela diminuição da consistência das fezes com duração superior a quatro semanas. O diagnóstico diferencial é vasto, incluindo patologias diversas tais como doença celíaca, disfunção tiroideia, doença inflamatória ou neoplásica intestinal, síndrome do intestino irritável, infeções crónicas e imunossupressão. O vírus da imunodeficiência humana (VIH) associa-se comummente a diarreia, tanto na sua apresentação aguda como no decorrer da evolução da doença, devendo ser considerado no diagnóstico diferencial desta entidade clínica.

Reporta-se o caso de um indivíduo do sexo masculino com 59 anos, cujo diagnóstico da infeção por VIH decorreu na sequência da investigação etiológica de uma diarreia crónica nos cuidados de saúde primários. O médico de família deve ter um elevado grau de suspeição nestes casos independentemente da ausência aparente de comportamentos de risco para infeção por VIH.

Palavras-chave: Diarreia/diagnóstico; Diarreia/etiologia; Infeções por VIH/diagnóstico

Abstract

Chronic diarrhoea is predominantly defined by decreased consistency of faeces lasting more than four weeks. The differential diagnosis is vast, including various pathologies such as celiac disease, thyroid dysfunction, inflammatory or neoplastic bowel disease, irritable bowel syndrome, chronic infections and immunosuppression. Human immunodeficiency virus (HIV) is commonly associated with diarrhoea, both in its acute presentation and in the course of the disease and should be considered in the differential diagnosis of this clinical entity.

We report the case of a 59-year-old male whose HIV diagnosis occurred following etiological investigation of chronic diarrhoea in primary health care. The family doctor should have a high degree of suspicion in these cases regardless of the apparent absence of behavioural risk factors for HIV infection.

Keywords: Diarrhea/diagnosis; Diarrhea/etiology; HIV Infections/diagnosis

Introdução

Os distúrbios gastrointestinais representam queixas frequentes na consulta em cuidados de saúde primários, a maioria de curso autolimitado ou como resultado de distúrbios funcionais. Apesar de em menor proporção, o médico de família depara-se não raramente com casos de diarreia prolongada, tendo de estar preparado para iniciar uma marcha diagnóstica para despiste das principais causas subjacentes a esta condição.

Define-se diarreia crónica predominantemente pela diminuição da consistência das fezes, correspondente aos tipos 5 a 7 da escala de Bristol, com duração superior a quatro semanas.1 Apresenta uma prevalência estimada de cerca de 5% da população adulta, (1,2 podendo ser caracterizada mais pormenorizadamente de acordo com a frequência das dejeções, odor e consistência das fezes e associação a outros sintomas, entre os quais urgência defecatória, tenesmo ou incontinência fecal. (3 O diagnóstico diferencial é vasto, incluindo doença inflamatória intestinal, doença celíaca, neoplasias, síndrome do intestino irritável, doenças infeciosas, síndromes de má absorção, hipertiroidismo e imunossupressão. (1,2 Pode ainda apresentar relação de causalidade com a dieta ou com a toma de determinados fármacos. (3 O vírus da imunodeficiência humana (VIH) representa uma das etiologias possíveis da diarreia crónica, devendo ser considerado no diagnóstico diferencial desta entidade clínica e devidamente testado quando clinicamente apropriado. (1,4

Caso Clínico

As autoras descrevem o caso de um indivíduo do sexo masculino, 59 anos, casado, com antecedentes de hipertensão arterial, tabagismo ativo e silicose pulmonar. Apresentava história de transfusão de sangue em 1984 na sequência de cirurgia após trauma do pé esquerdo. Medicado habitualmente com perindopril 5 mg por dia. Sem alergias conhecidas.

Em consulta de vigilância na Unidade de Saúde Familiar, apresentou-se com quadro de dejeções líquidas com duas semanas de evolução, correspondentes ao tipo 7 da escala de Bristol, em pequena quantidade, sem sangue ou muco, associadamente a anorexia. Não conseguia especificar frequência das dejeções, porém à data da observação não apresentava dejeções há cerca de dois dias. Negava dor ou distensão abdominal, náuseas, vómitos, febre ou perda ponderal. Sem viagens recentes ou identificação de contexto epidemiológico suspeito. Negava início recente de nova medicação. Ao exame objetivo, exibia bom estado geral, biótipo magro dentro do seu habitual, mucosas coradas, não evidenciando sinais de desidratação. A auscultação cardíaca e pulmonar não apresentava achados de relevo, enquanto a palpação abdominal era indolor, sem massas ou organomegalias palpáveis, com ruídos hidroaéreos ligeiramente aumentados à auscultação. Tendo em conta o quadro clínico, foi solicitado exame bacteriológico e parasitológico de fezes e efetuada prescrição de probiótico. Em consulta telefónica de reavaliação, cerca de duas semanas depois, o utente referiu normalização do trânsito gastrointestinal, pelo que foi aconselhado a manter vigilância e recorrer novamente se ressurgimento das queixas.

Cerca de dois meses depois, o utente recorreu a consulta aberta na Unidade de Saúde Familiar por recorrência do quadro de dejeções diarreicas (escala de Bristol tipo 7), de duração superior a quatro semanas, incluindo no período noturno, sem resposta a probiótico previamente prescrito. Referia, ainda, perda ponderal de cerca de dois quilogramas durante esse período, sem sintomatologia adicional, e trazia consigo resultado negativo do exame bacteriológico e parasitológico de fezes solicitado. O exame objetivo era sobreponível ao previamente descrito. Neste contexto, prosseguiu-se a investigação etiológica com requisição de exames complementares de diagnóstico para despiste, entre outras causas, de doença celíaca, disfunção tiroideia, doença inflamatória ou neoplásica intestinal, infeções crónicas e imunossupressão. Dos resultados obtidos, destacou-se a positividade dos anticorpos para o VIH, confirmada por western blot, que se revelou positivo para VIH-1. O restante estudo analítico não apresentava alterações relevantes, nomeadamente hemograma completo, função renal, enzimologia hepática, glicose, função tiroideia, estudo da coagulação e rastreio de doença celíaca. Os estudos endoscópicos do tubo digestivo alto e baixo demonstraram gastropatia do antro e sequelas de úlcera duodenal, sem outras alterações significativas. Foi efetuada a respetiva notificação no SINAVE da infeção por VIH e referenciação urgente a consulta de Infeciologia, tendo o doente iniciado posteriormente tratamento com antirretrovíricos. O contexto do contágio permaneceu desconhecido, dado que o doente negou comportamentos de risco.

Discussão

A pandemia global do VIH afeta 38 milhões de pessoas em todo o mundo, tendo sido diagnosticadas 1,5 milhões de novas infeções durante o ano de 2020. (5 Em Portugal, foram notificados 778 novos casos de infeção por VIH relativos ao ano de 2019, 69,3% dos quais em indivíduos do sexo masculino, o que coloca o país com uma das mais elevadas taxas de infeção anual da União Europeia. (6

A infeção primária caracteriza-se por uma síndrome clínica com início duas a quatro semanas após a inoculação do vírus, em paralelo com os níveis elevados de virémia que se verificam previamente à resposta do sistema imune e consequente seroconversão. (7 A infeção aguda é sintomática em 50% a 90% dos casos, (8,9 constituindo uma janela de oportunidade para o diagnóstico. Os sintomas duram habitualmente duas a três semanas, mas podem persistir durante alguns meses. (10 A apresentação clínica é frequentemente descrita como influenza-like ou mononucleose-like, albergando uma constelação de sinais e sintomas variável que pode incluir febre, odinofagia, linfadenopatias, exantema maculopapular inespecífico, mialgias/artralgias, fadiga, cefaleia, anorexia, diarreia, náuseas/vómitos, suores noturnos, perda de peso e úlceras orais/genitais. (7,8 A febre representa o sintoma mais frequente, afetando 80% a 90% dos doentes com infeção primária, (9 enquanto os sintomas gastrointestinais são reportados em até 50% dos casos. (11 Dada a inespecificidade da apresentação clínica, os sinais e sintomas são facilmente enquadrados no contexto de outras infeções víricas, conduzindo a atrasos no diagnóstico. Menos de um quarto dos doentes com sintomas sugestivos de infeção aguda/seroconversão são corretamente diagnosticados ad initium, (12 sendo que doentes diagnosticados tardiamente apresentam um risco de morte cerca de cinco vezes superior comparativamente aos indivíduos diagnosticados precocemente. (13 Adicionalmente à maior morbimortalidade, diagnósticos tardios associam-se a custos mais elevados em saúde e a risco superior de transmissão a terceiros, dado que a infeção primária se associa a níveis mais elevados de virémia. (14 Torna-se, portanto, fundamental considerar um baixo limiar para testagem e efetuar um diagnóstico precoce, com benefícios clínicos individuais e para a saúde pública.

O VIH induz mudanças significativas na estrutura e função imunológica da barreira gastrointestinal. (15 Aquando da infeção aguda, ocorre uma depleção rápida de linfócitos T CD4+ no tecido linfoide intestinal. A depleção de células Th17 propicia a disfunção da barreira imunológica intestinal, potenciando o aumento da translocação de microrganismos. (16 Além disso, o vírus favorece a ocorrência de alterações na microbiota intestinal, induzindo disbiose, o que agrava a disfunção imunitária da mucosa. (15 Várias causas concorrem adicionalmente para a ocorrência de diarreia no doente com VIH, designadamente infeções oportunistas, disfunção pancreática, neoplasias associadas ao VIH e, em última instância, a própria terapêutica antirretrovírica (TARV). (17 A diarreia constitui inclusivamente um dos efeitos adversos mais frequentes destes fármacos. A disfunção do trânsito gastrointestinal potencia a má absorção, perda ponderal e deficiências nutricionais, causando um impacto negativo significativo adicional na qualidade de vida do doente com VIH. (17

Com este trabalho, as autoras visam alertar para a importância de considerar a pesquisa do VIH no estudo etiológico da diarreia crónica, ainda que possa não ser solicitado numa fase inicial, de acordo com as recomendações internacionais sobre o tema. (1 Inclusivamente, a norma da Direção-Geral da Saúde dedicada ao diagnóstico e rastreio laboratorial da infeção por VIH, assinala a diarreia crónica de causa desconhecida como condição em que o teste para o vírus deve ser disponibilizado. (4 Este constitui, apesar de tudo, um diagnóstico incomum no dia-a-dia do médico de família, que deve manter um elevado grau de suspeição nestes casos com vista a um diagnóstico precoce, independentemente da ausência aparente de comportamentos de risco. Além disso, com a sua abordagem holística e orientada para as dimensões biopsicossocial, deve também estar atento ao impacto da doença no doente e na família, desempenhando um papel-chave na quebra da cadeia de transmissão e no acompanhamento da adaptação familiar a esta doença crónica.

Apresentações

Este trabalho foi apresentado sob a forma de comunicação oral no 38º Encontro Nacional de Medicina Geral e Familiar - 2021, sob o título “Quando do estudo de uma diarreia crónica surge um diagnóstico inesperado”.

Referências

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Declaração de Contribuição/Contributorship Statement

JL, RA, BM, AM e FR: Escrita e revisão do artigo. Aprovação da versão final a ser publicada

JL, RA, BM, AM and FR: Writing and article review. Approval of the final version to be published

Responsabilidades Éticas

Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho.

Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo.

Confidencialidade dos Dados: Os autores declaram ter seguido os protocolos da sua instituição acerca da publicação dos dados de doentes.

Consentimento: Consentimento do doente para publicação obtido.

Proveniência e Revisão por Pares: Não comissionado; revisão externa por pares.

Ethical Disclosures

Conflicts of Interest: The authors have no conflicts of interest to declare.

Financing Support: This work has not received any contribution, grant or scholarship.

Confidentiality of Data: The authors declare that they have followed the protocols of their work center on the publication of data from patients.

Patient Consent: Consent for publication was obtained.

Provenance and Peer Review: Not commissioned; externally peer reviewed.

Recebido: 14 de Abril de 2022; Aceito: 31 de Outubro de 2023; : 20 de Dezembro de 2023; Publicado: 28 de Março de 2024

*Autor Correspondente/Corresponding Author: Joana Gonçalves Luís [joanagluis8@gmail.com] ORCID iD: 0000-0003-1487-4131

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