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Vista. Revista de Cultura Visual

versão On-line ISSN 2184-1284

Vista  no.9 Braga jun. 2022  Epub 01-Maio-2023

https://doi.org/10.21814/vista.4014 

Secção Temática. Artigos

Quebrando Limites: O Jornal de Borda Além das Fronteiras da Arte

Fernanda Grigolin, concetualização, metodologia, redação do rascunho original
http://orcid.org/0000-0003-4305-6912

Mirna Wabi-Sabi, metodologia, redação do rascunho original, redação - revisão & edição
http://orcid.org/0000-0003-0955-2429

1 Pós-Graduação de Cultura Visual e Arte Latino-Americana, Universidade Católica de Pernambuco, Recife, Brazil

2 Plataforma9p9, Brazil


Resumo:

As publicações dos artistas são frequentemente utilizadas em estudos de arte contemporânea nas discussões sobre publicações impressas. No entanto, estas publicações vão para além das suas nomenclaturas e do seu lugar nas instituições de arte. As fronteiras das artes visuais estão cada vez mais difusas, e as discussões sobre as obras de arte tornam-se mais potentes quando vistas dentro do espectro mais amplo da cultura visual. A estética tem o poder de produzir conhecimento e de estabelecer relações com as formas de viver e de estar no mundo e através da história. As publicações, como tal, são lugares sociais que podem mediar as relações entre as pessoas, especialmente quando envolvem questões como o feminismo, o capitalismo e a descolonização. O Jornal de Borda, jornal de cultura visual anarquista que circulou na América Latina em português e espanhol entre 2015 e 2021, é um exemplo de expressão artística em publicação impressa. Estabelece estrategicamente o nome de corpos dissidentes — referidos como "corpas" — no contexto da arte dentro da cultura visual; estabelece as relações entre estes corpos e o anarquismo dentro do contexto latino-americano; e a estética relaciona-se diretamente com outros jornais do século passado, tais como A Plebe, honrando a história e, simultaneamente, fazendo história.

Keywords: visual culture; art; life; anarchism; printed publication

Abstract:

Artists' publications are often used in contemporary art studies in discussions about the printed page. However, these publications go beyond their nomenclatures and place in art institutions. The boundaries of visual arts are increasingly blurred, and discussions of works of art become more potent when viewed within the broader spectrum of visual culture. Aesthetics have the power to produce knowledge and establish relations with ways of living and being in the world and throughout history. Publications, as such, are social places that can mediate these relationships between people, especially when it involves issues like feminism, capitalism, and decoloniality. The Jornal de Borda — an anarchist visual culture newspaper circulated in Latin America in Portuguese and Spanish between 2015 and 2021 — is an example of artistic expression through printing. It strategizes the name of dissenting bodies — referred to as “corpas — in the context of art within visual culture; it establishes relations between these bodies and anarchism within the Latin American context; and the aesthetic relates directly to other newspapers from the last century, such as A Plebe, honoring history as it makes history.

Palavras-chave: cultura visual; arte; vida; anarquismo; publicação impressa

Introdução

As publicações impressas são elementos da cultura visual, e a sua relação com as narrativas históricas e contemporâneas, bem como o seu valor estético são socialmente construídos. Os meios impressos e a sua produção, edição, circulação e pesquisa resultam das escolhas dos editores e estão relacionados com o seu contexto social, cultural e histórico. Este artigo visa aprofundar a discussão sobre a importância de publicar com "corpa"1. "Corpo" é um substantivo masculino, por isso "corpa" é a feminização desta palavra para inverter a prática de perceber o corpo masculino como a experiência humana padrão e central na produção intelectual. O termo refere-se a todos os corpos dissidentes — não apenas ao feminino — que não se encaixam no patriarcado capitalista branco (b. hooks, 2015). Referir-se aos corpos dissidentes como "corpa" é destacar o âmbito do conceito abstrato de interseccionalidade, físico ou visceral. Aqui, a fisicalidade do corpo dissidente rasgado pelo paradigma político denunciado pelo pensamento interseccional é abordada pela subversão artística da cultura visual através da forma física da página impressa.

O Jornal de Borda reivindica uma história muito interessante de publicações latino-americanas. Este funcionou durante 6 anos, teve 10 edições, foi lançado no Brasil, Uruguai, México e Argentina, e foi ainda distribuído em Portugal, Chile e Peru. As Edições 1 e 2 foram publicadas em 2015, Edição 3 em 2016, 4 em 2017, 5 em 2018, 6 e 8 em 2019, e 10 em 2021. Todas tinham 5.000 exemplares distribuídos por toda a América Latina. Na Edição 7, a partir de 2019, eram 200 exemplares e, na Edição 9, de 2021, 100. Ao longo destes anos, cerca de 200 pessoas contribuíram a partir de vários locais da América. A Plebe, um jornal anarquista fundado em 1917, tinha uma tiragem de 10.000 exemplares por edição e foi uma grande inspiração para os criadores do Jornal de Borda. A par das expressões artísticas dos participantes, havia também o desejo de prestar homenagem ao legado dos movimentos anarquistas internacionais através da impressão — para manter viva a tradição face a crises políticas persistentes.

Ao discutir o Jornal de Borda, mais especificamente a sua última edição, O Borda, são reveladas ferramentas inovadoras de publicação e estética para além das nomeadas pela história da arte e pelo seu mercado, apresentando-se como contribuições anarquistas para a cultura visual da publicação. A proposta do seu estudo visual dentro e a partir do sul global (Lozano de la Pola, 2019) enfrenta um duplo desafio: revelar, ou tornar visível, o lugar de enunciação do olhar hegemónico e compreender os seus mecanismos de produção do racismo epistémico através da visualidade e as suas reivindicações universalistas, ao mesmo tempo que se apresenta a produção dos "outros".

Para aqueles que trabalham com material impresso em países como o Brasil, contar a história das publicações latino-americanas numa perspetiva descolonial é necessário porque a realidade colonial é inescapável em todos os domínios da nossa existência ao longo da história. Como forma capitalista de gerir o gosto, o que se deve ver, ler e ter, o mercado é uma extensão da relação latina com o colonialismo — uma imposição de valores e de visualidades ocidentais. A arte e as publicações precisam de um carácter subversivo para escapar à mercantilização do gosto. Contar esta história para além das artes visuais, para além do mercado, e a partir de uma perspetiva anarquista contribui para a crítica social das publicações como instrumentos políticos expressivos face ao neocolonialismo e à sua faceta capitalista.

As Publicações de Artistas de Cima a Baixo

Os livros e as publicações são essenciais para os artistas. Com o advento do livro de artista e do catálogo da exposição, a página impressa tornou-se num espaço de exposição intemporal valorizado pelo mercado da arte e por aqueles que investigam e fazem curadoria de arte. A história das publicações de arte e das exposições impressas no Brasil insere-se numa história que tem a arte americana e europeia como marcos de referência (Silveira, 2001). É por isso que Ed Ruscha é relevante para esta conversa — as ferramentas que o justificam como autor de livros de artista icónicos foram utilizadas por anarquistas e modernistas no Brasil e na América Latina, no início dos anos 1900. A natureza subversiva e provocadora da sua obra impressa, o seu ultrapassar de limites artísticos e o status quo só arbitrariamente podem ser descritos como revolucionários.

Testar os limites do que define a arte não é apenas um processo artístico mas um processo político. O conceito académico de livro de artista pode e deve ser alargado para permanecer consistente com a visão do mesmo. Além disso, se o processo de categorização académica não acomoda o reino da publicação política, apaga um universo de arte que sofreu censura política e se envolveu politicamente durante os grandes acontecimentos históricos. Afinal, a cultura visual é a expressão coletiva de um povo e procura não impor limites ao que constitui a expressão visual (Grigolin, 2015). Desta forma, um livro é uma publicação, tal como qualquer outra página impressa tornada pública. Outros formatos de publicação como jornais e panfletos — ou qualquer ferramenta utilizada para tornar públicas as páginas impressas — são relevantes para a discussão sobre os livros de artista.

Os principais instrumentos de publicação que definem o livro de artista são: é feito por um artista; é uma forma de arte; e não depende de um espaço institucional para ser exposto (pode ser numa parede, numa mala, ou numa biblioteca; Brogowski, 2011). Há um argumento a ser feito sobre o que o livro de artista não é: a exigência de códigos de barras da indústria do livro do século XXI e a possibilidade de impressão a pedido são a antítese do livro de artista (embora ambas possam, por sua vez, ser apropriadas como ferramentas artísticas). Como forma de arte, o objeto do livro pode ser tanto uma peça única como uma peça produzida em massa porque a sua qualidade de produção em massa pode, paradoxalmente, melhorar as suas características únicas. Na arte, vimos este paradoxo nas cobiçadas peças de Andy Warhol ou Banksy. Na publicação, podemos ver isto no exemplo do livro de arte de Fabiana Faleiros, cuja grande mas limitada edição é impressa com uma capa branca simples. A artista escreve à mão "MasturBar" na capa de cada exemplar como assinatura, autógrafo e título (Faleiros, 2016).

A estratégia de circulação desenvolvida também faz de um livro um livro de artista. Pode estar numa livraria ou biblioteca e pode questionar o formato de um livro ao trazer outras formas de impressão para circulação. Por exemplo, pode ter um envelope como capa, pode ser pequeno como um zine (Grigolin, 2020) ou dialogar com outros formatos de publicação como um jornal (Jornal de Borda). Portanto, o termo publicação artística é adequado, uma vez que inclui o livro e outros formatos impressos.

Twenty-Six Gasoline Stations, do artista americano Edward Ruscha, é considerado um marco nesta forma de produzir arte; é um livro de 1963 que explora o design gráfico, edição, tipografia, e outros elementos das escolhas do artista. Segundo o historiador de arte Mark Rawlinson (2013), a obra de Ruscha questiona um conjunto particular de problemas relacionados com a conceção, produção e distribuição da arte. O desafio é a possibilidade de ter uma ideia, embarcar numa viagem para a executar, depois tê-la documentada, publicada, e enviada para a sua própria viagem através de territórios e tempo — apenas para que talvez seja vista como estúpida para onde quer que vá. Porquê fazê-lo? Porquê fazer arte e imortalizar essa arte sob a forma de um livro?

Portanto, os historiadores de arte tendem a considerar o livro de artista como o momento em que a produção, edição e circulação de um projeto artístico se torna parte da própria arte, como uma estratégia política e estética/concetual. Entre as várias possibilidades do livro de artista, Drucker (2004) destaca o seu potencial para abordar várias experiências individuais e, como tal, exprime várias abordagens ativistas no sentido de combater a opressão e a injustiça. Neste sentido, a arte é uma estratégia política e vice-versa.

A arte em forma de livro tem uma vocação pública. O chamamento deriva do verbo latino vocare, que significa "chamar". O "chamamento" do livro é público. Brogowski (2011) assinala o papel subversivo do livro: simboliza a revogação artística da obra de arte como um objeto-fetiche, causando uma crise no sistema institucional. Certamente, a subversão incluída nos livros está ligada ao seu carácter público. Além disso, a natureza politicamente subversiva dos livros de artista existia mesmo antes deste se ter tornado uma categoria nas instituições de arte.

No Brasil e na América Latina, a história das publicações (Silveira, 2001) está relacionada com iniciativas coletivas de movimentos literários e artísticos, em vez de subscrever a visão de um artista genial e solitário que produz obras impressas. Revistas brasileiras como a Revista de Antropofagia dos anos 1920 e Homem do Povo dos anos 1930 foram criadas por modernistas para serem um produto literário que se cruzasse com outras artes (e pode ser visto como intermédia). O modernismo brasileiro pode ser visto como um projeto estético que produziu conhecimento e estabeleceu relações com formas de vida e de estar no mundo que ultrapassaram o domínio da arte e do indivíduo que a produziu.

Outros exemplos de publicações de artistas intermédia da América Latina incluem as revistas Klaxon, do Brasil, Avance, de Cuba, e Horizonte, do México. O poeta Guilherme de Almeida desenhou a capa da Klaxon, publicada de maio de 1922 a janeiro de 1923. Em Cuba, a Revista de Avance apresentou obras experimentais surpreendentes da ilha nos anos 1920, tais como as do poeta premiado Regino Pedroso. A revista Horizonte, publicada entre 1926 e 1927 no México, abordou preocupações sociais e políticas. Estava ligada ao movimento interdisciplinar designado "estridentismo", um grupo que contava com a adesão de Tina Modotti, uma revolucionária fotógrafa italiana que contribuiu significativamente para a "renascença Mexicana" (M. Hooks, 2017). Todas estas publicações são anteriores ao trabalho de Rusha e utilizam ferramentas artísticas semelhantes, exceto na sua característica de coletividade.

Outra observação pertinente ao olhar para publicações latino-americanas e brasileiras é que, nos anos 1960, a história do livro de artista é inseparável da contestação e luta contra a ditadura brasileira (Freire, 2009). Nos anos 1960 e 1970, os artistas produziram coletivamente revistas de natureza artesanal, que, muitas vezes, faziam circular pelo correio através de uma rede marginalizada na América do Sul, como foi o caso da edição da revista Vigo Diagonal Cero, uma revista fundada em La Plata, Argentina.

As revistas têm sido importantes na história da arte brasileira para documentar e divulgar ideias politicamente subversivas, contornando a censura ditatorial com ferramentas visuais e artísticas (Freire, 2009). A Revista Arteria, uma revista de Omar Khouri e Paulo Miranda que ainda está a ser publicada no Brasil, foi lançada em 1975. Nas suas 4 décadas, documentou movimentos de arte e poesia que floresceram numa paisagem árida, sofrendo severa censura e repressão até ao novo milénio com novas ferramentas e expressões tecnológicas.

No mesmo ano em que a Arteria foi lançada, no meio da agitação política na América Latina que levou muitos ao exílio, o artista concetual mexicano Ulises Carrión abriu a livraria Other Books and So em Amesterdão, um espaço alternativo, uma mistura de livraria especializada em livros de artistas e obras políticas. As obras de países da América Latina foram reunidas pela primeira vez, conduzindo a mais encontros e colaborações. Publicações de argentinos (Leon Ferrari e Leandro Katz), brasileiros (Regina Silveira, Vera Chaves Barcellos, Julio Plaza, Paulo Bruscky, Haroldo e Augusto de Campos) e mexicanos (Magali Lara, Mónica Mayer e Araceli Zúñiga) fizeram parte da iniciativa de Carrión.

A criação de livrarias e espaços onde se reúnem revistas e livros cria um ambiente para a circulação de ideias. Quando estas não são possíveis devido à instabilidade política e à repressão, a distribuição independente, o trabalho em rede e o apoio a uma causa a nível continental são ferramentas valiosas. Estas são estratégias públicas, bem como formas de arte, executadas coletivamente e em formato impresso.

A Cultura Visual e as Publicações Independentes

Respeitar a abordagem linear eurocêntrica da história e ligar a cultura visual apenas à história da arte é como viajar e regressar sempre ao mesmo ponto de referência, talvez como as estações de serviço de Ruscha. De acordo com certos estudos de cultura visual (Azoulay, 2015), a imagem é a fonte de conhecimentos especiais e a sua discussão não termina com a imagem, nem é circunscrita pela mesma. Em vez disso, a imagem é o ponto de partida de uma viagem, cujo percurso — de declarações ramificadas a partir da imagem — nunca é conhecido antecipadamente ou pré-determinado.

Desde os anos 80 do século passado, e mais especificamente a partir dos anos 2000, os estudos visuais, ancorados na transdisciplinaridade, desafiaram o paradigma da arte e os seus locais exclusivos de leitura visual (Mirzoeff, 1999). Muito mais do que olhar para livros ou publicações como objetos, é necessário considerá-los como um processo e um propósito. Os estudos visuais são um instrumento de análise das publicações porque são verbais, táteis e visuais e porque são elementos que vão muito além do enquadramento da história da arte.

A expansão dos estudos de cultura visual coincidiu com o surgimento/ampliação da circulação de fanzines, que estavam ligados à cultura punk e à cultura "faça você mesmo" (do-it-yourself [DIY]). O punk esteve, desde o seu início, na intersecção da música, da estética e da política — oposto ao regime dominante que permeava domínios significativos da experiência humana. Esta oposição, ou dissidência, estava relacionada com as corpas latino-americanas e brotou das experiências interseccionais de corpos marginalizados nos Estados Unidos e na Europa. A raça e a classe estavam na raiz do punk rock, movida por uma classe trabalhadora branca enraivecida em contacto direto com o povo negro e a cultura negra nos Estados Unidos e no Reino Unido (Ensminger, 2010).

Como uma faceta do movimento punk, a cultura DIY abordou especificamente a questão do consumo massivo daquilo que era dominante e de como isso levou a uma forma generalizada de homogeneização da expressão humana, que incluiu a arte. Perturbar a homogeneização da expressão humana é uma expressão de dissidência, expressa na fisicalidade da subcultura punk — uma corpa.

A produção industrializada em massa é uma ferramenta para o máximo lucro dentro de um sistema capitalista em expansão; portanto, a sua antítese seria a auto-produção de bens. DIY é uma forma de arte e uma declaração política porque, no capitalismo tardio, é impossível viver a 100% fora deste sistema industrial atual. Portanto, a conversa sobre este sistema acontece como uma representação abstrata, provocação, e praxis. Por conseguinte, o zine no quadro da cultura DIY é a antítese do livro bestseller produzido em massa. Estes não são objetos utópicos feitos à mão a 100%. Estas publicações podem ser criadas em casa, sem maquinaria de qualidade industrial. Assim, não se destinam a ser idênticas, rentáveis, ou impressas e distribuídas à escala corporativa. Por outras palavras, não são livros que se pensa que irão vender. São o livro que se deseja ler.

Com práticas de publicação em espaços e livrarias independentes, como a Banca Tijuana (em São Paulo desde 2007) e a Printed Matter (em Nova Iorque desde 1976), esta cultura foi posteriormente lida como um processo que culminou no que é atualmente denominado "publicação independente". O adjetivo "independente" já não atribui uma característica anti-capitalista a estas publicações. Estabelece uma nomenclatura, que ainda é plural e engloba iniciativas artesanais e aqueles que querem entrar ou criar um mercado. No entanto, a publicação independente pode ser uma forma de arte que atravessa e transcende as disciplinas da arte, história e política.

Os livros e publicações podem depender da produção capitalista, mas a sua criação passo a passo (Benjamin, 2005) pode ajudar-nos a desmistificar o processo de produção de modo a torná-lo mais compreensível e acessível às mais variadas corpas. A divisão do trabalho foi discutida na imprensa ao longo de grande parte do século XIX e ainda hoje é uma discussão relevante. No livro What Is Art (O Que É Arte), Tolstoy (1897) afirma que

os trabalhadores produzem comida para si próprios e também comida que a classe culta aceita e consome, mas os artistas parecem produzir com demasiada frequência a sua comida espiritual apenas para os cultos — de qualquer forma, uma parte particularmente pequena parece chegar aos trabalhadores do país que trabalham para fornecer a comida que alimenta o corpo! (para. 8)

Esta abordagem anti-capitalista em relação à arte e à publicação, eliminando as fronteiras entre as classes e o seu trabalho, é ainda salientada por Lucy Parsons, que convida os seus leitores a que façam do texto o que escolherem (Parsons, 1905a). Essa liberdade só existirá quando "o trabalho já não estiver à venda" (Parsons, 1905b, para. 3). Ao suprimir a distinção entre produção e autoria, eliminamos (na medida das nossas capacidades) a divisão capitalista do trabalho. Portanto, a publicação anarquista artística é um legado, um recurso valioso transmitido através de gerações, para a abordagem de persistentes questões socioeconómicas globais.

Seguir cada passo na criação de um livro pode também ajudar-nos a pensar no livro de uma forma artesanal e a partir do conhecimento situado (Haraway, 1988). É particularmente importante considerar numa publicação o conhecimento situado porque demonstra a responsabilidade política do conteúdo ao evitar a perpetuação de pontos de vista hegemónicos. Ao reconhecer as perceções do autor como permeadas pelos seus contextos geográficos e históricos individuais, o leitor é valorizado por ter a sua própria perspetiva. No Brasil, temos um conceito político semelhante chamado "lugar de fala", o lugar do discurso. Significa conhecer a relação entre o que se diz/os pontos de vista que se tem, e quem se é/como o corpo existe neste mundo — especificamente quando se trata de género, sexualidade e raça.

Existem livros e publicações independentes quando alguém, uma corpa, os concebe e constrói pensando na ampla circulação através de editoras, transnacionalmente e pessoalmente. A edição independente vai além do sistema capitalista, favorecendo trocas íntimas sobre a lógica das livrarias corporativas. Uma publicação de livros completamente independente, ou uma empresa editora completamente independente, não existe num sistema capitalista. Estar 100% fora deste sistema é impossível, pelo que o adjetivo "independente" não pode ser visto em termos absolutos.

Pensar independentemente sobre um livro ou publicação como uma ferramenta educacional em conteúdo, formato e experiência editorial permite construir uma rede de afetos latino-americanos. Na América Latina, a teoria do afeto é uma doutrina que estabelece laços familiares para além do domínio da biologia. Esta doutrina estende-se no domínio do ativismo político para significar camaradagem entre aqueles que podem ser rejeitados pelas suas famílias biológicas e enfrentar uma hostilidade brutal na sociedade2.

Para editores e artistas independentes, estas redes de afeto são um lugar de apoio e proteção em casos de severa repressão política. Não são exclusivas de pessoas que têm o mesmo nicho de atividade, círculo de amigos ou identidade. Ao descentralizar a cadeia de produção, misturando os campos de atividade e os seus nichos, e construindo um conhecimento inabalável, transdisciplinar e impresso, é possível dar vida ao seu potencial político.

O Jornal de Borda e o Anarquismo

As relações políticas e subversivas das publicações raramente são abordadas no discurso académico sobre o livro de artista, muito menos nos mercados artísticos e editoriais. O Brasil, país onde a tipografia foi introduzida em 1808 com a chegada da família real portuguesa e a criação da imprensa real, pode dar-nos respostas cativantes sobre como as publicações — jornais e brochuras — estabeleceram laços de produção, edição e circulação, mesmo antes da existência de um mercado editorial. Isto porque olhar para as publicações antes da existência do mercado editorial, implementado no Brasil em 1922, é compreender o início da produção impressa no Brasil.

A nossa impressão e principal local de impressão — a tipografia — foram desenvolvidos tardiamente em comparação com outros países da América, mas perduram apesar dos desafios colocados pela cultura do marketing e da publicidade. As publicações produzidas em massa utilizando tipos móveis foram o primeiro procedimento mecânico de ensino, aprendizagem e leitura de amplo espectro. No Brasil, este tipo de tipografia foi estabelecido 300 anos após a sua criação no México, e o seu processo de consolidação demorou ainda mais tempo. A nível do público, a relação com as publicações desenvolveu-se desde o fim do império brasileiro até ao início da república.

Neste período de transição do império para a república, nas décadas de 1880 e 1990, a criação de publicações teve ligações significativas com o movimento anarquista. O anarquismo era um movimento particularmente proeminente na sociedade, e o desconforto com a natureza arbitrária do poder monárquico tinha culminado no discurso público. Por conseguinte, esta ideologia crítica foi também proeminente na criação e construção de publicações. Na cidade de São Paulo, os primeiros jornais anarquistas do Brasil tinham um alcance semelhante ao das grandes formas não políticas de expressão impressa contemporânea. Para além do reforço das redes sociais, as características do próprio anarquismo, como a ajuda mútua e a solidariedade, permearam a prática editorial no espaço público através da leitura generalizada.

De acordo com Vera Chalmers (2018), a produção editorial anarquista tem tido a transnacionalidade como prática constante e um fluxo editorial descontínuo e descentralizado. Ao contrário dos jornais que são sedimentados numa cidade ou região de um país, muitas vezes até com o nome da sua localização no seu título (por exemplo, The New York Times, The Washington Post), os jornais anarquistas têm editores que podem iniciar a produção de um jornal num país, interrompê-la e continuar noutro local. Vários fatores sociais e práticas militantes podem levar uma publicação a mover-se, tais como a falta de fundos e a ação policial política (Chalmers, 2018). Estes jornais não estão limitados por fronteiras estatais e existem onde as pessoas os imaginam.

A publicação Jornal de Borda apresentou-se pela primeira vez como um jornal anarquista após a Edição 4, dentro da linguagem anarquista, da ética e da investigação estética. Na sua criação, em março de 2015, foi dito ser um jornal ligado ao feminismo autónomo latino-americano, um ramo do feminismo que é anti-sistema e procura agir independentemente das instituições governamentais. Foi lançado pela pequena editora Tenda de Livros, numa "Feira Plana", um evento para editoras independentes. A ideia era criar uma revista de arte contemporânea com a participação de brasileiros e de outros latino-americanos. Na altura, O Borda ainda tinha um lugar: o do livro de artista, e baseava-se no pensamento impresso do artista concetual mexicano Ulisses Carrión. Na sua obra clássica "El Arte Nuevo de Hacer Libros" (A Nova Arte de Fazer Livros), Carrión (1975) questiona o livro como um objeto literário ligado a um nome, um autor, aquele mencionado na capa. Isso inspirou o Jornal de Borda a ser pensado em coletividade.

O Jornal de Borda nasceu a partir da perspetiva de pensar a narrativa sequencialmente e o espaço da página a imprimir, dando ao texto e à imagem o mesmo peso. Ao fazê-lo, a estética conservadora e moderna justapõe-se, como mostra a Figura 1 — um formato conservador de jornal com um quadrado preto, um símbolo da arte moderna e abstrata3. Embora o nome completo fosse Jornal de Borda, o periódico foi chamado pelo seu diminutivo O Borda, usado em duas edições: a sétima e o 10.ª. O Borda (sem "Jornal de" e com a inclusão do artigo definido masculino "o") refere-se aos periódicos anarquistas do século passado, como A Plebe e A Lanterna, que tiveram os seus nomes pensados com um artigo definido e um substantivo, mas com a estranheza de um desacordo de género, uma vez que o correto seria "A Borda". No entanto, a alcunha era sempre masculina devido à palavra masculina para jornal.

Fonte. Tenda de Livros (por Fernanda Grigolin)

Figura 1 Cópia física do Jornal de Borda, Edição 2 (2015). Capa do artista Fabio Morais 

A Figura 2 mostra as páginas do meio da 10.ª edição como se a estivéssemos a ler aberta. O meio apresenta texto sobre o chauvinismo no anarquismo, escrito coletivamente por militantes anarquistas. Embora o formato à primeira vista pareça convencional, é dissidente em termos de conteúdo e detalhe. Por exemplo, embora as colunas possam parecer vulgares, um olhar mais atento mostra que o alinhamento não é. O "a" é uma peça do habitual "drop cap", enquanto letra decorativa, mas acaba por assumir o significado de um símbolo do anarquismo. Há citações de mulheres anarquistas como Margarita Ortega Valdés (mexicana), Juana Rouco Buela (argentina) e Petronila Infantes (boliviana). O desenho das páginas — os títulos e a sua tipografia — conduz o olhar do leitor à volta da página. As relações entre conteúdo, formato, participantes e visualidade são tão importantes como as disciplinas da publicação, que é o epítome da transdisciplinaridade na impressão.

Fonte. Tenda de Livros (por Fernanda Grigolin)

Figura 2 Páginas 2 e 3 de O Borda (2021) 

O Borda e as Suas Edições

O Borda é um jornal anarquista do século XXI inspirado no conteúdo e formato encontrado no jornal A Plebe (Figure 3), 100 anos antes. O estudo e a pesquisa das linhas e das colunas ativam uma leitura contemporânea de um jornal da cultura impressa anarquista do passado.

Fonte. Tenda de Livros (por Fernanda Grigolin)

Figura 3 Mulher a segurar uma edição de A Plebe, em 2017 

A Plebe foi uma publicação periódica anarquista publicada no Brasil durante 34 anos (entre 1917 e 1951), tendo como diretor principal Edgard Leuenroth. Nasceu num formato bastante grande, 53,5 × 37 cm (fechado) em quatro páginas (uma folha dobrada), tendo um tamanho inferior ao de um jornal institucional daquela época, ou seja, O Estado de S. Paulo do mesmo período geral (63 × 45 cm).

Sobrepondo as capas das edições de 1917 de A Plebe e de 2021 de O Borda (Figura 4), pode-se notar a referência formal tanto das publicações periódicas como das suas colunas. Vale a pena mencionar que, em 2017, a citada edição de A Plebe já tinha aparecido na Edição 4 de O Borda, cujo tema era arquivo, memória e poder.

Fonte. Tenda de Livros (por Fernanda Grigolin)

Figura 4 Sobreposição de A Plebe, de 1917, com o de O Borda, de 2021 

Uma homenagem intersecular aos antecessores deste movimento ideológico tem um propósito artístico e político. Embora vivamos num novo paradigma tecnológico, muitas das questões sociais que surgiram na viragem do século passado ainda persistem. Não só mudámos de século, mas também de milénio. O facto de ainda enfrentarmos questões de racismo, sexismo, pobreza e práticas industriais devastadoras persiste e é exacerbado na nova era, os anos 2000, que têm sido frequentemente retratados como um farol de avanço e de desenvolvimento por empresários contemporâneos e defensores do liberalismo (a doutrina sociopolítica por detrás do sistema económico atual). Como sociedade, não só não resolvemos os problemas como criámos novos, o mais notório é o iminente colapso climático. Por conseguinte, uma homenagem visual aos antepassados militantes é uma oferta artística que energiza uma resistência política que continua a avançar.

A sexta edição de A Plebe (de 1917) é um lugar de expressão; está relacionada com uma comunidade em ação que tem um objetivo comum: o direito à vida. É também um lugar de registo da memória, uma vez que cabe aos trabalhadores contar a sua própria história, seja através de texto, a sua organização espacial numa página tipográfica, ou acrescentando um elemento crucial: uma fotografia tirada numa greve, um símbolo de urgência e, portanto, colocada na primeira página. Uma fotografia "prova", ou pelo menos costumava provar, a existência de um evento e as ações de milhares de pessoas, enfim, provar que aconteceu. Na era das notícias falsas e das deepfakes, tornou-se absolutamente claro que os avanços tecnológicos, tais como mais e melhores câmaras digitais, não conduziram a uma distribuição mais ampla da verdade. Assim, ainda não é suficiente dizer que houve uma multidão ou mostrar visualmente o aspeto da multidão que acompanhou o enterro do camarada Martínez, quando parou na rua 15 de Novembro.

O formato impresso foi uma prática eficaz para divulgar informação sobre os eventos e a sua magnitude ao maior número de pessoas possível. Após a sua impressão, o jornal foi um local para a circulação de ideias e um poderoso instrumento de propaganda anarquista entre as pessoas de São Paulo e os seus camaradas de outras cidades ou países.

Abaixo (Figura 5), os seguintes textos estão centrados: "A Plebe" (em itálico, aludindo ao movimento); "Prenuncio de uma era nova" (em maiúsculas e outro tipo de letra); "O proletariado em revolta affirma o seu direito á vida" (noutro tipo de letra e com tamanho maior, também em maiúsculas, com uma linha tripla). Também centradas com o uso de duas linhas consecutivas estão as seguintes frases, que poderíamos dizer que estão em primeiro lugar: "Colossal movimento de protesto - A imponente gréve geral paralysou toda a vida da cidade - A plebe faminta praticou a expropriação - Os cerberos dos ladrões do povo deram largas á sua furia vandalica - Assassinatos, espancamentos, assaltos a associações e a domicílios - estiveram na ordem do dia - Os obreiros, apesar de tudo, conseguiram a sua primeira victoria - E' preciso, porem, estar álerta, para não serem victimas de uma torpe traição".

Fonte. Arquivos públicos do estado de São Paulo

Figura 5 Jornal A Plebe, Ano 1, Número 6; 21 de Julho de 1917  

A Plebe é um local tanto de registo como de expressão, e não está apenas ligado a notícias e factos. A sua proposta e as suas possibilidades impressas são de uso diário por uma comunidade em ação. Para o último Jornal de Borda, O Borda (Figura 6), os temas foram a arte e o anarquismo para invocar a ação na comunidade, como outrora fizeram outras publicações desta natureza. O novo logótipo, desenhado por Laura Daviña, é um híbrido do logótipo original do Jornal de Borda, desenvolvido por Lila Botter, com o logótipo A Plebe. Daviña também desenvolveu o desenho gráfico para a edição, que é um diálogo com o passado através de ferramentas visuais, éticas, estéticas e de impressão. Os textos foram feitos utilizando tipografias de A Plebe ou outras concebidas por Daviña, tais como a fonte Luce Fabbri. O formato incomum acrescentou ritmo ao texto em colunas e a espacialidade na utilização de espaços vazios.

Fonte. Tenda de Livros (por Fernanda Grigolin)

Figura 6 Capa de O Borda, de 2021. Os textos da primeira página são sobre corpos dissidentes, especialmente corpos trans, por Mogli Saura; a expropriação por Aline Ludmila. Há uma imagem de Maria Antônia Soares num discurso de 1 de Maio de 1915 

O periódico foi criado com base no tamanho e formato de A Plebe para honrar, referir, e demonstrar apaixonadamente que, através da publicação, podemos retomar a narrativa das nossas próprias vidas e ocupar um espaço sistematicamente negado às corpas na corrente dominante — para expropriar, no sentido anarquista da palavra (Bayer, 2015). Nas palavras de Aline Ludmila (2021), impressas em O Borda: "a expropriação como poder ( ... ) é expressa em paixões políticas, em gestos de recusa, em cuidados, boicotes, ocupações, aspirações, e ARTE" (p. 1). Os temas foram expropriação, morte da genialidade, criação artística, teatro, corpas insurgentes, mulheres anarquistas e chauvinismo dentro do anarquismo.

O último O Borda é um local de abrigo para textos e visualidades que convergiram durante os diálogos e foram depois organizados em páginas. O tema das corpas e a sua sobrevivência foi discutido por Mogli Saura, Adriana Varella, e Bruna Kury (Figura 7). As corpas, expressão feminina do corpo físico e/ou intelectual, são marginalizadas numa miríade de formas e, em alguns casos, brutalizadas e mortas. Através da arte, estes colaboradores reclamaram um lugar que os corpos trans, gordos, incapacitados, pobres, negros, queer, deslocados e dissidentes possam ocupar em segurança, para sobreviver a um sistema hostil, para revoltar-se e para encontrar afeto.

Fonte. Tenda de Livros (por Fernanda Grigolin)

Figura 7 Capa posterior de O Borda (2021), obra visual de Bruna Kury (canto superior direito) 

O Arquivo Edgard Leuenroth e Cedinci foram importantes fontes de pesquisa para as edições do Jornal de Borda. A Plebe (de 1917), O Nosso Jornal (de 1923, dirigido pelo Grupo de Emancipação Feminina) e Nuestra Tribuna (de 1922, dirigido por Juana Rouco Buela) tiveram edições inseridas no Jornal de Borda — foram reproduzidas no tamanho do jornal da época, só que não com a mesma técnica de impressão. O A Plebe era tipográfico e a edição de 2017 era uma versão digitalizada e reproduzida com a utilização de uma impressora moderna.

A prática editorial do jornal Nuestra Tribuna é um exemplo de edição transnacional. Nasceu em Necochea em Agosto de 1922 e encerrou em Buenos Aires em julho de 1925. Buela foi uma editora e pensadora transnacional de páginas impressas que olhou para o processo e projeto e viu uma vocação pública no jornal. Viajou por toda a Argentina no início dos anos 1920 para compreender as necessidades das mulheres anarquistas, lançando posteriormente o Nuestra Tribuna. O jornal (Figura 8) tinha quatro páginas, e cada página foi dividida em cinco colunas. Era quinzenal e tinha uma circulação de aproximadamente 2.500 exemplares.

Fonte. Arquivo Edgard Leuenroth, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas

Figura 8 Edição original de Nuestra Tribuna 

O periódico, nascido do processo de escuta das necessidades das mulheres e de intensa divulgação antes da impressão, começa com 1.000 mulheres como assinantes. No editorial da primeira edição, Nuestra Tribuna afirma que quer alcançar e agir em conjunto com o movimento anarquista dos países vizinhos, citando a Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Peru. O jornal deu prioridade aos artigos escritos por mulheres, tais como as anarquistas Soledad Gustavo, Teresa Claramunt, Federica Montseny, María Magón e Maria Antônia Soares, preferindo não ter pseudónimos como assinaturas.

Pensar em publicações anarquistas coletivas é pensar em Juana Rouco Buela. A sua forma de abrir sulcos e plantar sementes impressas permite-nos encontrar as suas palavras e ensinamentos ao lado de outras mulheres que editaram e escreveram para o jornal. Em suma, Juana Rouco é um antepassado de uma prática editorial sobrevivente.

A Plebe e Nuestra Tribuna são publicações periódicas que inspiraram as últimas edições de O Borda porque o seu objetivo foi sempre o de procurar artistas que vão para além do que é formalmente considerado arte e anarquistas que vão para além das agendas hegemónicas. A separação entre arte e vida, arte e política, serve apenas o mercado e a sua estratégia de circulação baseada na distribuição para venda e lucro. Na produção editorial, as comunidades editoriais com um objetivo político implementam soluções (artísticas) inovadoras relacionadas com a circulação. Além disso, a publicação como forma de resistência e de sobrevivência gera geralmente um vínculo coletivo e transfronteiriço, referido como afetos latino-americanos. Portanto, a publicação é uma forma de resistência e sobrevivência relacionada com a revolta, pois quando a arte não está associada à revolta é uma serva e cúmplice do capitalismo, um instrumento de ordem sem ligações à liberdade (Pelloutier, 1896).

A Opinião Daqueles Que o Construíram: Como É Visto O Borda

Com quem é que O Borda quer colaborar? Esta questão sempre foi importante em cada edição, de forma a que os colaboradores do jornal pudessem resumir o diálogo sobre a publicação. Brasileiros, mexicanos e chilenos constituíram a maioria dos colaboradores da última edição, que foi aquela na qual os processos de decisão de produção, edição, e circulação foram discutidos durante os encontros.

Em outubro de 2021, um formulário foi enviado por correio eletrónico aos participantes. Os colaboradores foram Aline Ludmila, Bruna Kury, Fabio Morais, Fausto Gracia, Ingrid Ladeira, Janayna Victória Araujo, Karina Francis Urban, Larissa Guedes Tokunaga, Lucia Parra, Mane Adaro, Mogli Saura, Renato Mendes e Weverton da Silva. Em excertos de algumas das suas respostas, é possível ver o que a produção de O Borda significa para os participantes enquanto artistas (na Secção 1) e enquanto ativistas políticos (Secção 2). A Secção 3 mostra o que a publicação considerando a corpa significa para aqueles que se identificam como tal.

Secção 1

  • Como artista, Larissa Tokunaga considera O Borda uma exposição coletiva: "é uma costura artesanal de gestos criativos que passam pela corporeidade e imanência. O fabrico artístico está na própria conceção da editora. ( ... ) O conteúdo e o formato são tão inextricáveis que o Jornal de Borda transborda os enquadramentos de uma obra de arte convencional. A visualidade é um gesto político que comunica em sintonia com os textos".

  • Fabio Morais descreve-o como um processo artístico ainda mais fluido: "de facto, vejo o Jornal de Borda como uma ação editorial aberta à contingência, que não tem problemas em mudar o seu foco, formato, agenda, etc. Dependendo do contexto e do ambiente, os objetivos editoriais mudam ou precisam de mudar. Assim, por vezes, podia vê-lo como uma exposição, por vezes como um jornal de artista, como uma plataforma estética e militante, como uma plataforma de investigação e de recuperação histórica no diálogo com questões do presente, etc., algo mais sobre 'estar num lugar' do que sobre 'ser algo'".

  • Fausto Gracia liga a diversidade geográfica da publicação à sua fluidez artística: "gosto muito da participação de artistas latino-americanos. Conecta processos e experiências para além das fronteiras geográficas".

Secção 2

  • Ingrid Ladeira concorda: "creio que o Jornal de Borda vai muito além de um jornal de artista; é uma expressão coletiva (de diferentes grupos e agentes) que reúne uma série de interesses e lutas".

  • Weverton da Silva, escritor, destaca a natureza anarquista da publicação: "a principal razão que me levou para O Borda foi precisamente o facto de se tratar de uma publicação artística e anarquista. Esta relação parecia absolutamente frutífera, embora eu não pudesse imaginar os caminhos que seriam seguidos. Ao tentar aprender mais sobre O Borda, percebi que as suas fronteiras atravessavam as artes escritas e visuais, a militância política, os campos da sexualidade e a história das mulheres anarquistas na América Latina, entre outros temas dissidentes. Assim, mais do que a simples informação diária de periódicos comuns, O Borda é um diálogo entre o ativismo político e a criação artística".

  • Lucia Parra, investigadora e membro do Centro de Cultura Social em São Paulo, descreve a natureza não classificável da publicação como um instrumento para amplificar as vozes marginalizadas: "não conheço nenhum outro jornal como o Jornal de Borda, por isso por vezes penso que não é classificável. E é precisamente com corpas dissidentes que pretende suscitar esta discussão nas suas edições".

  • Tokunaga vê O Borda como: "um manifesto queer/cuír que vai contra os padrões editoriais hegemónicos atuais. Isso implica trazer corpas dissidentes e mãos para fazer circular outras ideias".

Secção 3

  • Saura expande o que significa publicar com corpas: "penso que estar com corpas dissidentes requer intersecções e localizações muito específicas e um envolvimento que vise as perspetivas dissidentes, a partir das suas margens e questões existenciais. 'Dissidência' é muitas coisas; que dissidência? Onde? Quando?".

  • Gracia partilha a mesma opinião: "O Borda acompanha processos muito atuais sobre as diferentes formas de trânsito de corpas dissidentes. Faz parte da sua própria procura para sair dos discursos hegemónicos".

  • Bruna Kury diz: "há uma tentativa particularmente importante destas abordagens, que também não é assim tão simples. Mas a procura de estar próximo de outras corporalidades dissidentes é crucial na luta. A minha sugestão é pensar numa publicação para/com pessoas com deficiência".

Estes testemunhos revelam a relação entre a publicação com corpa e o poder político do afeto latino-americano. Identificar-se como corpa, tanto no corpo físico como intelectual, é acolher-se apesar das diferenças, unindo-se sobre a experiência partilhada de sentir-se repelido por um paradigma global que brutaliza a dissidência. Como tal, não há fronteiras entre o visual e a expressão textual, o domínio político e pessoal, ou a arte que está pendurada na parede e que enche as nossas mãos. O jornal viaja não só pelo tempo, mas também por países, disciplinas, e vidas.

Conclusão: A Sobrevivência das Corpas e os Seus Gestos de Revolta

O aparecimento de um jornal é um propósito que requer muito trabalho. No entanto, como tinha pensado nisso durante muitos anos, durante as minhas viagens pelo campo, falei com camaradas sobre a intenção e a necessidade de um jornal anarquista feminino. (Buela, 1964, p. 101)

O Borda cumpriu o seu papel durante os seus 6 anos de existência, fazendo parte desta prática sobrevivente, mas algumas das suas questões editoriais permanecem em aberto: como pensar na circulação de uma publicação impressa para além de espaços como as livrarias e as galerias?; como é publicar no Brasil e na América Latina com os corpos que escrevem e produzem arte?; deve haver uma inclusão na história linear da arte para se ser um artista?; deve haver uma discussão sobre a história europeia para se tornar anarquista?

Criar um jornal é ainda uma prática exigente, na qual texto, edição, layout e sequenciamento de páginas devem ser considerados. Uma publicação vai muito além da justaposição de informação; há um pensamento impresso. A criação de publicações independentes não é escrutinada pelo mercado da arte nem pelo mercado editorial. Como tal, as publicações estão ligadas à vocação pública de edição e circulação de ideias através de redes transnacionais.

As redes transnacionais criadas no passado estão relacionadas com as atuais práticas de sobrevivência. Ver que estas publicações existiram nos anos 1800 e princípios dos anos 1900 é compreender o papel crucial que o anarquismo teve na prática impressa, no pensamento editorial, na edição artesanal e nas publicações de artistas em geral. Os jornais mencionados neste artigo representam como a arte pode ser um instrumento político contra a repressão estatal e como a política pode ser um instrumento artístico para encontrar propósitos e estratégias de divulgação inovadores, apesar das instituições de arte (eurocêntricas) rígidas ou exclusivas .

O valor artístico da estética é uma construção social num tempo e num lugar. Portanto, o carácter subversivo das publicações escapará sempre à mercantilização do gosto e aos limites das disciplinas académicas. Ao discutir a descolonização e a linearidade da história eurocêntrica, expropriamos narrativas materiais, intelectuais e artísticas que permeiam todos os aspetos da nossa vida — todos materializados pela publicação do artista. As narrativas hegemónicas podem ser degradantes e brutais para os povos marginalizados. A publicação com a corpa, uma expressão de revolta e afetos, tem o potencial de restaurar a dignidade. Este processo não pode ser reduzido nem à arte nem à política. É magistralmente ambos.

A publicação com a corpa é fundamental para a cultura visual. Deixar os corpos dissidentes fora da narrativa em torno das publicações dos artistas perpetua valores hegemónicos que marginalizam as pessoas através de "sistemas de dominação interligados" (M. Hooks, 2015, p. 21), nomeadamente o colonialismo, o capitalismo, o chauvinismo, entre outros. Talvez a apresentação de uma nova narrativa — de arte dialogante, anarquismo e páginas impressas — não só nos ensine sobre práticas anarquistas, mas também alargue as nossas perspetivas através de uma leitura diversificada e verdadeira da cultura visual e, por associação, da humanidade.

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Notas

1"Corpo" vem do latim "corpus". Pode significar tanto o corpo físico de um ser animal vivo como a coleção de obras escritas de um indivíduo, ideia ou instituição.

2Como o termo "lugar de fala", a teoria do afeto e a ideia de redes de afeto na América Latina não se desenvolveram nos contextos institucionais ou académicos. Assim, pode ser difícil, se não impossível, citar um pensador que tenha cunhado o termo. Alguns académicos têm abordado estes termos, mas eles existem, acima de tudo, de forma mutável na cultura popular.

3Referindo-se à pintura de Kazimir Malevich, Black Square (Quadro Preto), 1915, mas com o subtítulo "Goddard despede-se da linguagem".

Recebido: 04 de Abril de 2022; Revisado: 02 de Maio de 2022; Aceito: 02 de Maio de 2022

Tradução: Marisa Mourão

Fernanda Grigolin é uma artista transdisciplinar, editora e investigadora doutorada em artes visuais na Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil. Trabalha há 20 anos com publicações, desde produção, edição, circulação à investigação. Tem conduzido os projetos Tenda de Livros desde 2014 e Jornal de Borda, de 2015 a 2021. Recebeu os seguintes prémios: Funarte Marc Ferrez de Fotografia (2012), Proac Livro do Artista (2014), Proac Publicações (2015), e Proac Artes Visuais (2016). Fernanda publicou cinco livros de artista e escreveu Sou Aquela Mulher do Canto Esquerdo do Quadro. Email: fernanda.grigolin@unicap.br. Morada: R. do Príncipe, 526 - Boa Vista, Recife - PE - 50050-900

Mirna Wabi-Sabi é escritora, editora, tradutora, e editora em Niterói, Brasil. É fundadora da iniciativa Plataforma9 e autora do livro de bolso bilingue Anarcho-Transcriação (Anarco-Transcriação). É investigadora independente. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0955-2429. Email: mirnawabisabi@gmail.com. Morada: Rua Augusto Vieira 2, Niterói - RJ - 24342240

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