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Vista. Revista de Cultura Visual

versão On-line ISSN 2184-1284

Vista  no.10 Braga dez. 2022  Epub 01-Maio-2023

https://doi.org/10.21814/vista.4424 

Secção Temática. Artigos

Lucia Marcucci: Poesia Visual Contra a Violência Social

1Centro de Estudos Comparatistas, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa, Lisbon, Portugal


Resumo:

O artigo oferece uma leitura original de algumas das obras mais famosas de Marcucci entre o início dos anos 60 e o final dos anos 70, escolhidas como exemplos de uma especificidade de género situada da poética da artista. Apesar do distanciamento autodeclarado das posições neofeministas, Marcucci brilha pela originalidade e polémica nos temas e práticas de criação no seu panorama contemporâneo, maioritariamente dominado por artistas masculinos. Por um lado, observamos a atuação artística e cultural de Marcucci numa Itália no meio de um boom económico, mas que ainda sofria com a natureza retrógrada do pensamento fascista ainda desviadamente dominante, em conjunto com o fanatismo da igreja católica, relativamente à emancipação da mulher. Por outro lado, também observamos a singularidade produtiva de Marcucci no contexto da contracultura sua contemporânea, que não se tinha libertado — embora o pregasse — das dinâmicas sexistas de poder. O artigo visa apresentar uma lente feminista (do olhar masculino à auto-objetificação) não como a única e absoluta forma de interpretar os poemas verbo-visuais de Marcucci, mas como útil para destacar as qualidades específicas da investigação e poética de Marcucci. Através da análise de "Il Fidanzato in Fuga" (O Noivo em Fuga; 1964), "Noxin" (1970), "AH!" (1972), "Aa Bb Cc" (1977) e "Culturae" (1978), será feita uma tentativa de oferecer um percurso de investigação viável que não isole a obra de Marcucci da dos seus contemporâneos masculinos, mas que considere a sua especificidade situada como uma posição necessária.

Palavras-chave: Lucia Marcucci; poesia visual; literatura italiana; meios de comunicação de massa; colagem

Abstract

The article offers an original close reading of some of Marcucci's most famous works between the early 60s and late 70s, chosen as examples of a situated gendered specificity of the artist's poetics. Despite the self-declared distance from neo-feminist stances, Marcucci shines for originality and controversy in the themes and practices of creation in her contemporary landscape, mostly dominated by male artists. On the one hand, we observe Marcucci’s artistic and cultural operation in Italy amid an economic boom but still suffered from the retrograde nature of the still deviously dominant fascist thinking, in conjunction with the bigotry of the catholic church, concerning women’s emancipation. On the other hand, we also observe Marcucci’s productive singularity in the context of her contemporary counterculture, which had not freed itself at all — although preaching it — from sexist power dynamics. The article aims to present a feminist lens (from male gaze to self-objectification) not as the absolute and only way of interpreting Marcucci’s verbal-visual poems, but as useful in highlighting the specific qualities of Marcucci’s research and poetics. Through the analysis of “Il Fidanzato in Fuga” (The Runaway Bride; 1964), “Noxin” (1970), “AH!” (1972), “Aa Bb Cc” (1977), and “Culturae” (1978), an attempt will be made to offer a viable course of inquiry that does not isolate Marcucci’s work from that of her male contemporaries but considers its situated specificity as a necessary stand.

Keywords: Lucia Marcucci; visual poetry; Italian literature; mass media; collage

Lucia Marcucci: Poesia Visual Contra a Violência Social

Embora ( ... ) os líderes da neovanguarda italiana fossem na sua maioria alheios ou indiferentes à ideologia do género no seu próprio discurso, tanto os cenários linguísticos como institucionais com os quais trabalharam prefiguraram os dilemas do movimento de mulheres italiano e internacional. (Re, 2004, p. 145)

Este artigo proporciona uma investigação sobre a produção de poesia visual de Lucia Marcucci nos anos 60 e 70 através de uma lente feminista. Apesar do alinhamento não imediatamente intuitivo com os feminismos italianos contemporâneos, o objetivo deste artigo é observar como um aspeto fortemente relacionado com o género do trabalho de Marcucci pode ser valorizado através de ferramentas feministas de investigação. A Constituição da Itália recentemente estabelecida, datada de 1948, estabeleceu o sufrágio universal e a igualdade de género, numa viragem política contra a tendência antifeminista da ditadura fascista. No entanto, o quadro legal do país permaneceu fascista até aos anos 60, tornando a noção de igualdade de género quase impossível de implementar, que também foi fortemente prejudicada pela mentalidade retrógrada geral do país. Esta mentalidade de estereótipos e limitações sexistas tem como cúmplice uma perpetuação de preconceitos tradicionais — declarados como diferenças naturais entre géneros — que ameaçam a emancipação das mulheres.

As mulheres italianas que procuram negociar a sua posição em relação às práticas discursivas hegemónicas dos anos 60 e 70 em Itália (antes do advento de uma teoria feminista plena e autoconsciente) viram-se confrontadas com questões estruturalmente semelhantes às abordadas pela neo vanguarda italiana, e, por mais indiretamente que tenham lucrado e aprendido de várias maneiras com a experiência, com os triunfos e os fracassos da neovanguarda. (Re, 2004, pp. 145–146)

Numa era de conservadorismo político e de grande emancipação cultural, especialmente para as mulheres, Marcucci e alguns outros conseguiram fazer o seu caminho num contexto de contracultura que afirmava estar livre dos sistemas de poder do estado, mas que em vez disso, mais uma vez, reproduzia um desequilíbrio de poder de género.

Por mais cego que o homem neovanguardista pudesse ter sido para a questão do género, o seu trabalho com e sobre a linguagem lançou, no entanto, as bases para uma espécie de crítica que poderia depois ser alargada (com muito desgosto de alguns neovanguardistas) para desmascarar o preconceito masculinista do seu próprio discurso. (Re, 2005, p. 150)

Mais especificamente, o foco será na releitura e reformulação artística da publicidade, a forma de comunicação de massa mais explicitamente construída sobre uma base de sexismo, que persiste ainda hoje.

Através de uma visão geral da construção e restituição da mensagem na prática publicitária que coloca no centro o corpo e o conceito de mulher, será apresentado o caso de Lucia Marcucci como um exemplo brilhante de desconstrução e reapropriação da mensagem de acordo com a mecânica de erros de formatação e ironização da mensagem útil para anular o poder permeativo e insidioso do meio publicitário na vida quotidiana, mas sem a intenção de escarnecer da acessibilidade do próprio meio, mas sim de tornar o trabalho poético visual acessível e intencionalmente da mesma agradabilidade.

Através de uma análise atenta de alguns dos mais famosos painéis poéticos de Marcucci — nomeadamente "Il Fidanzato in Fuga" (O Noivo em Fuga; 1964); "Noxin" (1970); "AH!" (1972); "Aa Bb Cc" (1977), "Culturae" (1978) —, será feita uma tentativa de oferecer um percurso de investigação viável que não isole a obra de Marcucci da dos seus contemporâneos masculinos, mas que considere a sua especificidade situada como uma posição necessária.

Neoavanguardia

=/= Gruppo 63

Os anos 60 — tal como os 70 — foram animados por um profícuo experimentalismo na área artística, particularmente devido aos novos materiais industriais, tecnologias e, sobretudo, à comunicação através dos novos meios de comunicação de massa. Este período de 20 anos foi incisivamente marcado sobretudo por protestos sociais, lutas feministas e o ataque aos sistemas capitalistas e consumistas que, a partir do período pós-Segunda Guerra Mundial, foram vistos — pelos artistas e pelo resto da sociedade — como a principal causa da incessante homologação sociocultural, alienação e subordinação das pessoas ao próprio sistema. Neste clima de duplo estímulo, os artistas-poetas decidiram lutar contra o pensamento dominante e o mercado capitalista irresponsável de formas e maneiras que extrapolavam da realidade explorativa do mundo, envolvendo-se política e artisticamente com os tempos confusos e ignorantes que estavam a viver.

Quando se fala de vanguarda, no caso italiano, a associação do termo à experiência artística do Gruppo 63 é imediata.

As categorias culturais antiquadas já não eram úteis para descrever o contexto neocapitalista que emergiu das ruínas da Segunda Guerra Mundial e tiveram que ser substituídas por novos e mais dinâmicos modos de representação. Nos anos que se seguiram ao período imediato pós-guerra, durante o qual a nação tinha experimentado extrema pobreza e miséria, a Itália sofreu o primeiro grande desenvolvimento industrial da sua história. Entre 1958 e 1963, tornou-se um dos países industrializados mais poderosos da Europa e do mundo. De repente, o país foi capaz de competir, política e economicamente, com o resto do mundo; a produção — e consumo — de bens permanentes como carros, frigoríficos e televisores, alterou dramaticamente a paisagem cultural da Itália contemporânea. (Chirumbolo et al., 2010, p. 7)

No início dos anos 60, na Itália, havia um desejo, se não uma necessidade, de romper com o passado; tanto de um ponto de vista formal, através da revolução das características estilísticas tradicionais, como em termos de conteúdo, em que a ideologia marxista lutou contra a homologação burguesa contemporânea. O ano de 1961 marcou uma viragem literária com a publicação do I Novissimi. Poesie per gli Anni '60 (I Novissimi. Poesia dos Anos 60), que incluía poemas de Elio Pagliarani, Edoardo Sanguineti, Nanni Balestrini, Antonio Porta e Alfredo Giuliani, os poetas que formaram o núcleo do Gruppo 63.

O Gruppo 63 foi criado e perpetuado através de uma série de encontros abertos em que autores e pensadores se reuniam para discutir a organização cultural que melhor responderia às exigências do pensamento radical que promovia. O laboratório desta revolução cultural e linguística foi sobretudo a revista il verri, fundada em 1956 por Luciano Anceschi, onde, juntamente com textos originais, surgiram frequentemente comentários críticos por parte de outros pensadores de renome, tais como Umberto Eco.

O principal objetivo do Gruppo 63 era a libertação da língua da cultura burguesa, através da qual — pondo de lado as reivindicações de racionalidade e mimetismo — uma compreensão mais determinante das relações humanas no contexto do pós-guerra poderia ser alcançada. A formulação, portanto, de uma linguagem que reconduziria os sujeitos à relação, retirando-os da alienação capitalista e, consequentemente, que serviria devidamente o propósito revolucionário.

Devido a esta confiança total na linguagem, apesar da natureza fortemente interartística das reivindicações do movimento, que ao longo dos seus 9 anos de existência tinha promovido amplas colaborações especialmente com a área musical e visual, o próprio conceito de poesia permaneceu fortemente ancorado na apresentação, embora muitas vezes fracionada, do signo linguístico.

O facto do Gruppo 63 e da neovanguarda se terem tornado sinónimos levou ao esbatimento, pelo menos em parte, de experiências igualmente válidas que romperam com o passado. Isto é especialmente verdade para as experiências variadas que se desligaram quase completamente do uso do signo linguístico e se dedicaram mais explicitamente a ultrapassar as fronteiras da linguagem.

Gruppo 70 e os Novos Média

Apesar das várias formas de manipulação textual que marcaram a prolongada pesquisa do Gruppo 63, foi apenas com o advento das práticas de experimentadores, como os filiados ao Gruppo 70, que se conseguiu uma verdadeira rutura da rígida grelha que via o signo poético como uma construção escrita, ouvida, falada e não, em vez disso, vista. Para assinalar mais fortemente uma rutura com o neocapitalismo que estendeu a sua sombra sobre a dinâmica do mercado editorial, a exploração da poesia visual surgiu numa fação ainda mais transgressiva de resistência à homologação burguesa já mencionada.

Poetas tecnológicos que, em 1963, formaram o Gruppo 70, com base em Florença. Este grupo fez uma das ruturas mais radicais com a poesia convencional. Adotou uma variedade de materiais extralinguísticos que pôs em prática um processo de contaminação que deslocou a poesia de um género verbal para uma área semiótica que não podia ser descrita com precisão como literária, uma vez que se apoiava fortemente nas artes visuais. (Picchione, 2004, p. 180)

Embora a característica predominante seja a interação direta entre o texto e a imagem apresentados simultaneamente, as variantes sobre a questão da expressão verbal e visual são numerosas e a produção — a italiana, aliás, particularmente rica — uma das mais variadas e únicas. A associação e o contraste entre palavra e imagem reproduzidas criaram obras de arte sem precedentes e alienantes, que os poetas visuais originaram com a intenção de produzir um choque visual no espectador. Lidando com questões prementes como a guerra, tensões políticas e sociais, e o papel da mulher na sociedade, este novo tipo de produção capturou o interesse e a atenção do público; sendo as peças constituídas por mecanismos e dinâmicas aderentes à era moderna (como a publicidade, tecnologias, banda desenhada e meios de comunicação social), o impacto comunicativo foi direto e eficaz. De acordo com o desejo dos artistas, estas obras definiram uma nova arte de massa verdadeiramente democrática, ao alcance de todos, negando o rótulo enraizado e elitista que a poesia tinha há muito tempo associado a ela.

Os termos adotados para categorizar este corpo de experimentação são numerosos: 'poesia visual' ('poesia visuale'), 'escrita visual' ('scrittura visuale'), 'nova escrita' ('nuova scrittura'), 'poesia verbo-visual' ('poesia verbo-visiva'), 'escrita simbiótica' ('scrittura simbiotica'), entre outros. Contudo, o termo 'poesia visiva' (como já mencionado, surgiu no contexto do Gruppo 70) tornou-se o predominante não só para descrever as obras deste grupo específico, mas também para designar a área geral da prática poética que surgiu após a experiência da poesia concreta. (Picchione, 2004, p. 182)

A riqueza da investigação verbo-visual está profundamente enraizada na firme contestação da instituição cultural: por um lado, devido ao seu modo de composição, que através da incorporação de diferentes práticas e disciplinas artísticas, utilizadas como lentes, para ler estas experiências, leva a uma desestabilização do sistema do género; por outro lado, devido a uma renovação do papel do poeta que, ao assumir uma compreensão do panorama de receção, se esforça por acompanhar o processo total da obra, desde a elaboração até à divulgação, retirando a obra dos mercados estabelecidos e apodrecidos de publicação e arte. O objetivo fundamental que estimula estes novos mecanismos de criação e distribuição é o de recuperar a função social do poeta, reabilitando assim o meio da poesia na sua função de intercetar e interpretar o momento histórico, cultural e social de uma forma crítica, enfrentando a banalização máxima da linguagem e da mensagem.

Não é uma coincidência que os poetas do Gruppo 70 tenham prestado muita atenção às teorias de Marshall McLuhan sobre os meios de comunicação de massa e os seus efeitos na consciência humana. Os poetas visuais tornaram-se plenamente conscientes do facto de que a 'Galáxia Gutenberg', com a sua lógica e estrutura linear, tinha começado a ser empurrada para a periferia pela força imediata e sensorial dos meios de comunicação centrados na imagem. Em muitos casos, esta consciência estava associada à orientação ideológica da contracultura da época, que não tinha renunciado à crença de que as artes podem servir de força contrária a uma cultura de massa alienante, produzindo mensagens de revolta e crítica social. Ao mesmo tempo, ideias subversivas e o ativismo visionário convergiram com teorias de linguística estrutural, semiótica, teoria da informação, e psicologia da gestalt. Ao fazê-lo, assimilaram nas suas práticas poéticas uma consciência crítica dos processos que regulam os vários códigos de comunicação e da forma como estes moldam a perceção de nós próprios e do mundo. (Picchione, 2004, p. 182)

No entanto, a intenção não se reduz a um estratagema para escapar ao controverso debate sobre a crise da linguagem escrita através da justaposição de imagens à mesma. Pelo contrário, a linearidade espacial e temporal do processo de receção de uma obra poética é completamente minada pelas escolhas formais: embora muitas vezes simples, as manchetes dos jornais recortadas para a criação das colagens verbais chegam ao público carregadas de camadas de significado, e a sua interação com imagens igualmente aparentemente simples revela a complicada relação que a humanidade tem com os meios de comunicação e as suas mensagens contextuais.

A copresença de diferentes signos constitui um resultado sinestésico que a semiótica multimédia não ignorou e que também não foi ignorada pelos criadores da poesia visual. A coparticipação do público através da estimulação dos seus diferentes sentidos e a tensão das referências cruzadas entre os diferentes signos pretende ser emblemática de um esforço cognitivo que muitas vezes, devido a uma hipersimplificação da linguagem mediática que procura assimilar a consciência crítica dos indivíduos, é anestesiada. Assim, a multissensorialidade é uma característica essencial do trabalho poético visual que, longe de ser uma opção puramente estética, se desdobra numa contestação contracultural a um nível crítico e histórico.

Estes poetas fazem um uso extensivo de materiais extralinguísticos selecionados a partir de imagens produzidas pelos meios de comunicação social (fotografias comerciais, anúncios, banda desenhada, romances fotográficos, etc.). O seu principal objetivo é estabelecer uma ligação entre a poesia, a tecnologia e os produtos da sociedade de consumo. Como resultado, a poesia passa de uma prática exclusivamente verbal para uma arte geral do signo. Esta poesia exibe um encontro, uma convergência de diferentes códigos de comunicação que, ao interagirem uns com os outros, oferecem novas possibilidades de significação. (Picchione, 2004, p. 185)

Esta nova forma poética assenta numa sinergia comunicativa tão rápida quanto profunda, em que o público é levado a interagir criticamente tanto no momento da receção auditiva, como na reprodução desse mecanismo crítico perante a possibilidade de criar mentalmente tal crítica. Exposto a vários signos, o espectador é chamado a decifrar e reconhecer e a poesia visual assume-se então como um exercício pedagógico quase ginástico, alcançado através do treino muscular crítico; um impulso experiencial do qual Lucia Marcucci, em particular, é uma campeã.

Supervisiva

Lucia Marcucci

"A minha poética consiste, através da palavra e do signo, na reelaboração literária e pictórica, mas sobretudo crítica, dos meios de comunicação de massa (imagens, slogans, linguagens muitas vezes persuasivas e mistificadoras do sistema social contemporâneo)" (Marcucci, s.d.-b, para. 2).

Lucia Marcucci nasceu em Florença em 1933, no mesmo local onde ainda hoje se encontra ativa. É um dos expoentes máximos do movimento da poesia visual em Itália, particularmente do Gruppo 70. Foi criada numa família dedicada às artes, onde o seu pai dedicava o seu tempo livre à fotografia e o seu avô a contar as histórias das serata futurista (noites futuristas) em que tinha participado (Fiaschi, 2009, p. 25). A narração da Serata Futuriste (Noite Futurista; Marcucci, 2009) é vibrante e cheia de acontecimentos, uma série de narrativas tão impressas na memória da jovem Marcucci que lhe moldaram definitivamente a sua experiência sentimental e artística.

Eu costumava ouvir as suas histórias e, aparentemente, construir a minha formação cultural: eu tinha 5 anos de idade. Na biblioteca da família, havia revistas e alguns livros futuristas que eu folheava atentamente com ele, porque ele não confiava na minha mãozinha que segurava, bem apertada, um lápis, pronto a intervir em algum desenho que incendiasse a minha imaginação infantil e libido. (Marcucci, 2009, p. 209)

Após estudar alguns anos na Academia de Belas Artes, Marcucci decidiu mudar-se juntamente com o marido para Livorno em 1955, onde começou a colaborar no pequeno, mas muito importante, teatro de vanguarda Il Grattacielo, assumindo o papel de desenhadora de cartazes, encenadora e assistente de realização.

Durante estes anos formativos no Il Grattacielo, dirigido na época por um jovem Andrea Camilleri, Marcucci foi inspirada a produzir as suas primeiras obras de poesia-colagem, experimentando linguagens que confrontavam a dramaturgia e o vernáculo. Em 1963, a artista criou o seu primeiro poema tecnologico (poema tecnológico) — que permanece não publicado — L'Indiscrezione È Forte (A Indiscrição É Forte). Inclui uma série de artigos impressos que elaboram secções linguísticas dos livros de ópera do século XIX, revistas de publicidade e excertos de jornais. A própria Marcucci definiu-o como "uma espécie de livro de artista, com páginas cheias de colagens, muito experimental, uma atrás da outra, mandei fotocopiar, pelo que ficou um protótipo bastante irónico e desorientador" (Saccà, 2003, p. 23).

Nesse mesmo ano, Marcucci, que viajava entre Florença e Livorno, convidou os protagonistas do Gruppo 70, e em particular, Eugenio Miccini e Lamberto Pignotti, a juntarem-se a ela na primeira representação de Poesie e No (Poemas e Não), uma "experiência de colagem multissensorial" (Fiaschi, 2009, p. 27): o acontecimento integrou diferentes sons, desde valsas a cantigas populares, que tocaram durante performances recitativas e mais gestuais, tais como a criação e o rasgar de peças de cartazes de artistas1 Lucia Marcucci decidiu mudar-se permanentemente para Florença em 1965, tornando-se, para todos os efeitos, uma voz do Gruppo 70 e participando na primeira exposição de poesia visual em Nápoles na Galleria Guidi, organizada pelo Gruppo 63: "todos estes eventos, que tiveram lugar sucessivamente em 1965, foram marcados pela grande experimentação do acontecimento, sendo a nota dominante sempre o entrecruzamento de línguas" (Marcucci, s.d.-a, para. 9).

É importante salientar que, apesar de estar próxima do grupo desde a sua origem, Marcucci não foi um dos membros fundadores: a sua primeira produção data dos 2 anos anteriores à sua participação ativa no Gruppo 70.

A sua primeira produção foi assim produzida num período de contacto direto com os poetas visuais, mas antes da sua filiação com o coletivo. Ao período de dois anos entre 1963–1964 remontam, por exemplo, os manifestos tecnológicos publicados na revista "La Battana" em 1965 e parcialmente reutilizados na mostra Poesie e no 3, apresentada no mesmo ano na Livraria Feltrinelli em Florença, na Libreria Guida em Nápoles e na III Convenção do Gruppo 63 em Palermo. Uma história semelhante aplica-se a algumas colagens publicadas no Poesie Visive, a primeira antologia do movimento com curadoria de Pignotti em 1965; um texto que atesta como, nesta época cronológica, Isgrò, Balestrini, Giuliani, Bonito Oliva e outros também contribuíram ativamente para a poética do grupo. Assim, a transição de poemas 'lineares' para poemas tecnológicos e colagens de poesia visual ocorre para Marcucci ao longo de um caminho autónomo que é apenas parcialmente afetado pela influência dos seus colegas. (Perna, 2015, p. 112)

Marcucci sempre perseguiu uma poética própria de desconstrução da mensagem publicitária que permeia os espaços da vida social e privada, alcançando algumas das suas maiores realizações em poesia visual com as colagens, que são o resultado de uma ousada, irreverente e irónica combinação de imagens e palavras, roubadas dos meios de comunicação de massa e descontextualizadas do seu significado tradicional. Nestas experiências, ela preocupa-se sobretudo com a mulher e a condição feminina, dando particular atenção ao uso do corpo feminino e à exploração do mesmo e à difícil justaposição do masculino e do feminino nas várias esferas existenciais, incluindo a artística, mas também a política, e os acontecimentos mais trágicos da história contemporânea.

As reflexões sobre a linguagem contemporânea levadas a cabo pelos grupos neovanguardistas, tanto no campo puramente e categoricamente literário, como de uma forma mais ampla, são radicalmente baseadas no género pelos sujeitos não-masculinos que abordam estas novas formas de arte poética. Lucia Marcucci, e algumas das suas associadas — por exemplo, Ketty La Rocca, que também era filiada no Gruppo 70 — metaboliza uma série de outros mecanismos opressivos e assimiladores que conduzem a uma reflexão especificamente baseada no género.

A investigação extensiva sobre os efeitos psicológicos do uso de publicidade sexista foi examinada anteriormente (por exemplo, Lanis & Covell, 1995; Taylor, Miyazaki, & Mogensen, 2013; Vezich, Gunter, & Lieberman, 2017). Sugere-se que a forma como as mulheres são retratadas na publicidade afeta a forma como o papel da mulher na sociedade é visto, e como uma mulher deve agir e comportar-se (Lafky et al., 1996; Lindner, 2004). Um anúncio sexista funcionaria, portanto, contra a igualdade. (Andersson & Schytt, 2017, p. 3)

Mais extensivamente do que alguns dos seus colegas, Lucia Marcucci empenhou-se numa espécie de expropriação da linguagem dos meios de comunicação social, concentrando-se principalmente na publicidade e na retórica sexista que permeava todos os seus aspetos: desde a conceção à produção e ao alvo de vendas.

Mulher e/na Publicidade

Uma definição geral e, no entanto, muito pontual de publicidade é a oferecida por Harris e Seldon (1962), que a observaram como um fenómeno "destinado a difundir informações com o objetivo de promover a venda de bens e serviços comercializáveis" (p. 40). A intenção é, portanto, partilhar noções com o consumidor sobre um produto para persuadir o destinatário da mensagem a tornar-se um comprador. Assim, a retórica necessária deve ser convincente ao acrescentar valor ao próprio produto, tornando-o em algo desejável ao ponto de se transformar numa necessidade; imagens, símbolos, logótipos e fragmentos verbais inserem-se na vida quotidiana das pessoas atuando em conjunto com mecanismos já estabelecidos e ultrapassando os limites do mesmo para tornar os produtos reconhecíveis e desejados. Mais do que pura informação, a publicidade constrói-se a partir do conceito de aparência e produz uma forma de persuasão através dos desejos de apropriação. O que escolhemos comprar tem consequências específicas muito além da satisfação imediata de nós próprios: a violência produzida pelo imaginário publicitário é a reprodução da violência sociocultural à qual os sujeitos subalternos estão subjugados; reforça esse desequilíbrio de poder, e cria ainda mais espaço para mais discriminação.

Esta forma de comunicação difundida tornou-se a nível global no novo normal no pós-Segunda Guerra Mundial, e o caso italiano não foi diferente; os poeti visive (poetas visuais) debateram extensivamente as mensagens sociais, de resto semi-inquestionáveis, transmitidas através destes novos meios de comunicação. O impacto social da publicidade, agora vastamente investigada, era evidente para Marcucci, que decidiu aprofundar a sua própria investigação sobre a especificidade do caso dos direitos das mulheres e o seu retrato não assim tão subtil. No caso das mulheres, a especificidade da condição feminina é aniquilada pela reproposta de estruturas confinantes como a imagem da mãe (ou boa dona de casa, angiolo del focolare [fada do lar] de acordo com a tradição fascista) e a femme fatale (estimulando um desejo de identificação ou posse; Goffman, 1976; Kang, 1997; Umiker-Sebeok, 1996).

Como extensivamente investigado e argumentado por Arvidsson (2003), através do novo instrumento das pesquisas de mercado, o medo da mulher de entrar na era moderna e se emancipar da visão da dona de casa afetivamente perfeita dos anos 50 foi aproveitado a favor do mercado. A teoria do mercado aplicada a este receio tinha uma raiz sexista que considerava o desejo natural e a propensão das mulheres para o papel de dona de casa e da ordem social moderna um obstáculo que as impedia de realizar plenamente este impulso primordial. Satisfazendo este fenómeno, os publicitários vão de encontro a uma suposta necessidade, criando à sua maneira uma nova dona de casa e tornando-a ainda mais alvo de vendas, através da criação de novas revistas especificamente dirigidas às mulheres (Amica, fundada em 1962, mas também Grazia e Annabella; Arvidsson, 2001).

Ao mesmo tempo, as mulheres foram também apresentadas como objetos úteis para a gratificação dos homens (um retrato ainda duradouro, e que tem sido utilizado como argumento para justificar a violência sexual contra as mulheres aos olhos do perpetrador; Kilbourne, 1999). Grande parte do conteúdo publicitário dirigido explicitamente aos homens incluía referências às mulheres como objetos sexuais, acompanhando o produto em vez de o apresentar. As características e posturas sexualmente apelativas explícitas das mulheres foram utilizadas em produtos sem qualquer ligação com as próprias, com o único objetivo de criar uma ligação entre a oportunidade de possuir o objeto comercializado e a de possuir a mulher que o publicita (Stankiewicz & Rosselli, 2008).

Na sua obra, Marcucci enfatiza constantemente a dupla opressão, pessoal e coletiva, à qual o feminino está condenado no mundo capitalista: por um lado, o corpo feminino é reproduzido de acordo com cânones estéticos dominantes que agravam a autoperceção de todos, através de uma padronização das características particulares e variadas dos sujeitos, reduzindo-os a uma singularidade estéril; por outro lado, esta mulher construída segundo o imperativo do olhar masculino tem frequentemente como referência de mercado a própria mulher, reduzindo-a a uma pura consumidora de acordo com os desejos inerentes aos meios de comunicação social.

A escolha de utilizar essa linguagem específica dos meios de comunicação de massa de uma forma falsamente inalterada é a forma de Marcucci mudar a partir de dentro esse mesmo código que estava a dar "informação desinformativa": "mudaríamos o código e o significado e dispararíamos [sic] o mesmo tipo de linguagem ao alterar o sinal" (Fiaschi, 2009, p. 28). Através da justaposição de textos e imagens estereotipadas dentro da composição, Marcucci pratica um choque extralinguístico: este sentimento de estranheza tem lugar a nível visual e mental, através de uma montagem ousada de elementos estereotipados que destroem todos os clichés que os meios de comunicação social assumem e reproduzem sobre o universo feminino.

O formato da montagem, sobrepondo idiossincraticamente os vários elementos que a compõem, permite a experiência simultânea de diferentes elementos desde o momento da criação até ao da receção auditiva. Na complicada tensão da ressignificação simultânea do signo linguístico e iconográfico, Marcucci participa crítica e conscientemente daquilo que Carla Lonzi (1970) afirmou como a interrupção do monólogo patriarcal2.

Nesta fase, o que até então era objeto de especulação por parte de uma pequena elite académica transforma-se num fenómeno de massa, e os meios de comunicação de massa são objetos de especulação por parte de uma estreita elite académica, e os meios de comunicação de massa atuam como propagadores de um novo ideal de mulher e novas expectativas sociais: o feminismo aguça as suas armas ideológicas e propagandísticas para analisar de uma forma cultural e filosoficamente irrepreensível as causas da discriminação e as reivindicações das mulheres e para formular propostas políticas. (Gajeri, 2002, p. 236)

A relação de Lucia Marcucci com os movimentos feministas contemporâneos locais (femminismi)3 é muito complexa e não pode ser reduzida a uma aderência tout-court ou não à ideologia. Acima de tudo, deve notar-se que Marcucci sempre denunciou a assimilação acrítica a todas as formas de ideologia, sejam políticas ou culturais.

A visão substantiva de Marcucci sobre as questões de género pode definitivamente ser incluída nessa fração de pensadores e artistas que foram capazes de questionar criticamente e enfatizar uma necessidade de diferenciar o termo "feminino", muitas vezes indevidamente utilizado com o único propósito de constituir um gueto cor-de-rosa e instigar o pensamento sexista que vê uma propensão natural dos sujeitos femininos para certas formas e temas (em vez de investigação e prática), e o feminismo, para ser entendido como pensamento crítico ativo que leva a escolhas temáticas e formais destinadas a rever, derrubar, ou mesmo desmantelar aquelas predeterminadas pelo discurso sociocultural patriarcal.

Embora a construção social do género não seja recente, esta perspetiva foi formalizada mais recentemente na teoria da objetificação (Fredrickson e Roberts 1997). Assim, ser criada numa cultura que objetifica o corpo feminino e sexualiza as mulheres, leva-as a interiorizar esta objetificação. A isto chama-se auto-objetificação. (Cortese, 2004, p. 61)

Como Re (2004) salientou, Marcucci é, sem dúvida, um exemplo de como as práticas estéticas experimentalistas feministas e politicamente informadas desenvolvidas por mulheres promovem o ativismo do leitor. Tendo isto em mente, a última secção deste artigo propõe uma leitura informada das obras selecionadas de Marcucci através de uma lente de desestabilização consciente do sistema patriarcal, dentro e fora da dimensão artística da contracultura.

Uma Leitura Feminista

A colagem "Il Fidanzato in Fuga", datada de 1964, apresenta três fatos de astronauta vazios pendurados em cabides. A referência política imediata é a corrida espacial desses anos, que viu os Estados Unidos e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas enfrentarem-se, propondo frequentemente por meio de informações condicionadas duas versões não muito diferentes de "super-homens". Em vez disso, no centro da colagem, encontramos os fatos vazios de homens que já partiram, não para uma missão, mas para um voo. De facto, a camada verbal obtida por Marcucci através da distribuição de uma frase fragmentada na imagem, mas mantida muito legível pela decisão de organizar os fragmentos totalmente na horizontal, mostra na sua totalidade "o paraíso extraterrestre/da mulher/do namorado/da fuga/no espaço". A crítica política é combinada com uma denúncia irónica da covardia masculina (cujo machismo é apenas uma forma de manifestação). No entanto, como sempre no caso de Marcucci, a ironia é também uma forma de autocrítica social. O paraíso referido na colagem e pertencente às mulheres não é terrestre, indicando assim uma certa necessidade do feminino perseguir, mais uma vez, o masculino na dimensão extraespacial (para onde fugiu). A simplicidade da linguagem captada e remontada e a sua conotação aparentemente muito superficial também interagem ironicamente com o glorioso progresso da ciência, apregoado pelos meios de comunicação, que conduziria a humanidade à conquista do espaço sideral, criando uma narrativa hipertextual que questiona esse mesmo alegado valor progressivo.

Ainda mais iconográfico é o painel poético intitulado "Noxin". Uma mulher sedutora de cabelos volumosos, segurando uma escova e numa pose plástica de uma verdadeira diva dramática, destaca-se no centro da página, em pé, na vertical, com roupas aparentemente simples, mas muito sensuais. Apesar da pose incómoda e artificial, o rosto da jovem parece extasiado: da boca da modelo sai o que é vulgarmente chamado de "balão de fala" em banda desenhada. No interior, reproduz-se uma única palavra; a mesma palavra que dá título ao poema: "Noxin".

Esta palavra não passa de um erro de pronúncia do nome do presidente americano Richard Nixon, um político conservador que tinha renovado o seu compromisso contra o Vietname do Norte. Desta forma, Marcucci troça dele e das suas posições, continuando o seu compromisso antiguerra e de idealização dos líderes. Além disso, ao escolher usar uma figura feminina num estado de veneração por este falso mito (Nixon/Noxin), a autora desafia toda uma série de dinâmicas de poder. Numa postura desconfortável, com braços e pernas cuidadosamente dobrados para mostrar a figura debaixo do vestido, a mulher é reduzida à identificação total com essa palavra. Por muito que o valor iconográfico do painel seja predominante, o facto dessa palavra estar, em última análise, a clarificar a intenção da obra confere à linguagem semântica um poder decisivo, mas não decisório. A palavra é enganada, manipulada e devolvida ao mundo concreto de uma forma diferente: na prática, pois interage ativamente com um campo cognitivo diferente do sintático, e em teoria, porque o seu significado é esvaziado e ressemantizado através de um lapso aparente.

A função do balão de fala na obra de Marcucci assume frequentemente uma chave irónica de desestabilização e inversão de sentido, sendo outro exemplo o poema visual intitulado simplesmente "AH!" (1972). Como é do conhecimento geral, os balões em banda desenhada são sobretudo utilizados para expressar o pensamento ou as palavras de uma determinada personagem. Um homem refinado e de aparência bastante séria (apesar do sorriso quase impercetível) está ao lado de uma menina loira. O homem está sentado numa grande cadeira com as mãos cruzadas, e na fotografia a preto e branco destaca-se a sua camisa de trabalho — muito branca em contraste — e a gravata com um nó perfeito. O homem olha para fora do cartaz e a menina não se senta com ele, mas sim de frente para ele, imitando os gestos das mãos do pai, oferecendo porém, sempre com o olhar voltado para o destinatário pretendido, um doce sorriso. A inscrição que acompanha este anúncio (o produto do qual não é claro) diz: “nos negócios ele é um homem de gelo, mas há alguém que sabe como amolecê-lo”.

A intervenção na imagem — automaticamente, no sinal de texto do texto — recomeça através do discurso de balão de fala, mas desta vez, ao contrário do que acontece em "Noxin", manualmente. É, de facto, diretamente a caligrafia da autora que atribui o simples som "ah!" a um voice-over, reproduzido em vermelho e negrito num balão da mesma cor.

Tal como o sistema persuasivo de comunicação da publicidade penetra no quotidiano das pessoas, o voice-over insere-se na representação do cartaz comercial. Há aqui um duplo mecanismo de apropriação que se torna claro aos olhos dos recetores: um é a manipulação do próprio material publicitário; outro é a manipulação do modo de linguagem subtil de articular a mensagem.

Os últimos anos da década de 1970 caracterizam-se por uma nova prática. Embora se enquadre numa corrente de utilização do corpo usada pelos seus contemporâneos, desenvolve-se de uma forma muito original. De facto, ao contrário das obras analisadas até agora, que foram construídas a partir de painéis que já tinham sido preparados de certa forma (cartazes, anúncios, imagens retiradas de jornais) de acordo com a tradição do objet trouvé (objecto encontrado), começa agora uma época em que o próprio corpo de Marcucci é impresso — literalmente — na página.

Na tela em branco, Marcucci usa a têmpera para imprimir partes do seu próprio corpo, tais como o peito, a barriga e o rosto. A intervenção física e gestual torna-se assim material a todos os níveis. A impressão do corpo torna-se a própria tela e substitui o objet trouvé (ou talvez o próprio corpo seja finalmente encontrado?), tornando assim a sua fisicalidade a própria matéria da obra, substituindo-a — e assim também equilibrando o seu valor — com os materiais até agora recolhidos e utilizados, que variavam entre a comunicação quotidiana e as representações artísticas icónicas.

Na sua obra "Aa Bb Cc" (1977), a impressão corporal de Lucia Marcucci é intercalada com a transcrição do alfabeto. As letras, escritas em maiúsculas e minúsculas, como num exercício escolar, percorrem o corpo, incluindo-o nesta nova forma de abecedário (livro de ortografia). A relação entre o corpo feminino e a reapropriação do alfabeto é um tema que Tomaso Binga4, pseudónimo da artista Bianca Menna, já tinha abordado no ano anterior, numa série de fotografias onde reproduzia as formas das letras com o seu próprio corpo. No caso de Binga, o corpo feminino presta-se plasticamente a uma reinvenção material da palavra através da sua menor fração (a letra); no caso de Marcucci, o corpo feminino é sobreposto e intercalado por esta sucessão de letras. No caso de Marcucci, o elemento de imposição de uma linguagem falocêntrica é ainda mais evidente, pois as letras são impressas por cima da imagem do seu corpo. Podem ser feitas duas leituras críticas da redação manual das letras pela autora, as quais não colidem entre si, mas que se envolvem criticamente. Por um lado, a repetição de exercícios típicos das escolas primárias parece indicar um caminho que não é diferente do praticado até aquele momento, envolvendo a imposição do sistema cultural representado pelo alfabeto sobre o feminino. Por outro lado, a habilidade manual específica de Marcucci, em vez da alteração da tela através da colagem de letras retiradas da imprensa, oferece uma esperança de interpretação que vê as mulheres finalmente capazes de imitar aquele sistema de escrita patriarcal e torná-lo seu. A questão permanece, no entanto, em aberto: vale a pena? Poderá o alfabeto satisfazer as necessidades de um sujeito que sempre foi marginalizado e oprimido por esse mesmo sistema linguístico?

A reforçar a tese da ambivalência em relação à função cultural como possível via de fuga para os sujeitos subalternos está uma segunda obra produzida no ano seguinte, "Culturae" (1978). Também aqui encontramos a já reconhecível prática de imprimir o corpo em tela. Desta vez, no entanto, a intervenção da têmpera torna-se quase macabra e não infantil. Na têmpera vermelha, de facto, a palavra "CULTURAE" domina o corpo feminino ao qual é acrescentado um livro. A têmpera vermelha escorre como sangue por toda a figura, criando uma série de pinceladas verticais que lembram as jaulas de uma prisão. Além disso, a palavra é traduzida em latim: uma língua da elite, uma língua da cultura tradicional ocidental que indica opressão secular. No entanto, a figura feminina segura num livro, revelando um acesso à cultura estabelecida como sendo dela própria.

Estes dois exemplos mostraram-nos que não é possível oferecer uma resposta inequívoca, e certamente não inequívoca é a resposta que Marcucci quer oferecer, sendo uma artista que sempre lutou lado a lado com a linguagem, alimentando a sua arte com novas questões e ideias para pensar.

Conclusões

A académica Maria Antonietta Trasforini (2000) entrevistou 15 artistas nascidas entre 1930 e 1940, observando como estas mulheres, cujo encontro com o feminismo aconteceu numa fase das suas vidas em que já atuavam como artistas e que já tinham travado as suas próprias batalhas por reconhecimento antes da formação explícita dos movimentos em Itália relacionados com o termo e as práticas dos neofeminismos. Trasforini concluiu, baseando a sua reflexão em tais entrevistas, e como perfeitamente resumido por Perna (2015), que uma afiliação direta com os neofeminismos em Itália não pode ser declarada. Contudo, os elementos das instâncias protofeministas são evidentes no trabalho criativo de Marcucci, e uma lente de estudos feministas parece ser a mais frutífera para interrogar a especificidade dos temas escolhidos e as posturas assumidas.

Uma ajuda fundamental para uma interpretação correta da produção artística historicamente situada de Marcucci é o conceito do olhar masculino, que a estudiosa de cinema Laura Mulvey (1975) trouxe à luz através do seu, ainda hoje, famoso ensaio "Visual Pleasure and Narrative Cinema" (Prazer Visual e Cinema Narrativo)5. No ensaio de Mulvey é analisado e nomeado um princípio de expressão de formas desequilibradas de poder entre sujeitos masculinos: "o olhar masculino". O olhar masculino, ou mais especificamente, "o olhar heterossexual masculino", é o resultado dos meios visuais terem uma tendência social para responder ao desejo voyeurista de sexualizar sujeitos não-masculinos para o prazer dos observadores masculinos. Esta forma específica de escopofilia está enraizada na distinção secular que vê os sujeitos masculinos como protagonistas nos iões do mundo e os sujeitos não-masculinos como existindo para "serem olhados", cujo papel é passivo. Desta forma, a agência dos sujeitos não-masculinos é completamente anulada, e o único objetivo da sua existência é serem representados para o prazer masculino, através de várias formas de desumanização.

Apesar da capacidade evidente de Marcucci de incluir todos os aspetos da crítica e da reflexão social na sua produção artística, e apesar de visar um público amplo e não específico do género com estímulo crítico, o impacto que as suas obras — em tema e forma — alcançam é marcadamente feminista, uma vez que coloca temas não-masculinos no centro da reflexão e, acima de tudo, oferece-lhes as ferramentas para reconhecerem (se não mesmo repudiar) o processo de auto-objetificação (Cortese, 2004).

As ferramentas oferecidas pelas teorias feministas permitem-nos ativar o pensamento crítico que coloca o trabalho de Marcucci no centro de um debate estético e político feminista. A qualidade indiscutível dos trabalhos de Marcucci corresponde à originalidade dos temas, como o foco no feminino na publicidade e a exposição do corpo feminino como instrumento de propaganda (como provado na análise aqui dedicada às colagens dos anos 60). Elementos que as suas colegas têm sido capazes de explorar em paralelo de forma autónoma e uma tarefa que os seus colegas masculinos, na sua maioria, têm faltado, não compreendendo totalmente o seu peso sócio histórico.

Ao mesmo tempo, como demonstrado pela análise dos painéis do final dos anos 70, o uso direto do corpo no trabalho artístico parece estar perfeitamente em linha com as teorias feministas contemporâneas promovidas, sobretudo, por Carla Lonzi (que recordamos ter sido uma historiadora de arte), centrada na necessidade da presença corporal do feminino: mais especificamente, de envolver-se diretamente com todo o entorno e partir da própria experiência, do próprio corpo, uma vez que o pessoal é político.

Agradecimentos

Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e Tecnologia, I.P., no âmbito do projecto UIDB/00509/2020.

REFERÊNCIAS

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Notas

1Apresentado pela primeira vez em abril de 1964 no Gabinetto Scientifico Letterario, G. P. Vieusseux, Poesie e No consiste em leituras de autores contemporâneos e clássicos — tais como Esopo e Shakespeare — livremente combinadas com "excertos" retirados de revistas e jornais, todos acompanhados de clipes de filmes, canções da moda e excertos musicais. A réplica apresentada em Il Grattacielo foi encenada em maio de 1964, dirigida por Enrico Sirello (Spignoli, s.d.).

2Carla Lonzi foi uma filósofa e crítica de arte. A sua carreira como ativista e escritora no movimento feminista italiano é melhor lembrado pela fundação do grupo político Rivolta Femminile (que elaborou o Manifesto di Rivolta Femminile [Manifesto da Revolta das Mulheres]), que também deu nome a uma pequena editora. Para estas edições, Lonzi publicou considerações críticas importantes sobre a diferença sexual e a prática da autocoscienza (autoconsciência). Em Sputiamo su Hegel (Cuspindo em Hengel; Lonzi, 1970), a autora critica ferozmente a abordagem patriarcal do governo, da sociedade, e mesmo o movimento político e cultural comunista marxista

3Para uma visão geral da necessidade específica de utilizar o plural no caso italiano, ver Guerra (2004), Femminismo/Femminismi: Appunti per una Storia da Scrivere (Feminismo/Feminismos: Notas Para uma História a Escrever).

4Tomaso Binga é o pseudónimo de Bianca Menna (nascida Pucciarelli). A artista "explicou que escolheu um homem como pseudónimo para parodiar os privilégios culturais reservados aos homens. Esta manobra para desacreditar o mundo da arte, passando por uma identidade sexual dissimulada (um tema recorrente ao longo da sua obra), começou com uma desmistificação da diferença entre os sexos na escrita e na linguagem. Vive em Roma, onde, desde 1970, desenvolve a sua incansável atividade de organização de eventos de vanguarda com performances, colagens, trabalhos em vídeo e poesia sonora, e pintura, envolvendo nada menos do que uma contaminação de códigos — escrita, gestos, corpos, signos, sons e imagens —, muitas vezes empurrados para os limites da insignificância" (Biagini, s.d., para. 1).

5Amplamente discutida e debatida, a teoria do olhar masculino de Murvey ainda hoje se mantém como uma das mais influentes críticas. Ver Gribaldo e Zapperi (2012), Lo Schermo del Potere (O Ecrã do Poder) e Oliver (2017), “The Male Gaze Is More Relevant, and More Dangerous, Than Ever” (O Olhar Masculino É Mais Relevante, e Mais Perigoso, do que Nunca).

Recebido: 24 de Novembro de 2022; Revisado: 28 de Novembro de 2022; Aceito: 30 de Novembro de 2022

Tradução: Sofia Salgueiro

Marzia D’Amico integra o Centro de Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa (Fundação para a Ciência e a Tecnologia). A sua pesquisa explora a interação entre a tradição e o experimentalismo nas suas formas, expressões, linguagens e códigos, com foco na implicação sociopolítica por trás da produção de poesia verbivocovisual por sujeitos não-masculinos. Email: marziadamico@edu.ulisboa.pt. Morada: Faculdade de Letras, Alameda da Universidade, 1600–214, Lisboa, Portugal

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